“Você vai lá visitá-la mais uma vez, não vai?” Diz a Ambrellin, de pé na soleira da porta do meu quarto. Tecnicamente o quarto é dela, mas ela vem me deixando ficar aqui nesses últimos meses, desde o acidente. A voz dela é calma, mas os olhos dela estão enrugados nos cantos, aprofundando até as têmporas onde a pele macia dá lugar a casca de árvore. É uma indicação óbvia da frustração que ela está nutrindo, um tique que ela tem desde que éramos crianças.

“Eu vou só levar um pouco de dinheiro para o orfanato,” digo eu. É o mínimo que eu posso fazer.

“Que bom, Terrik. Mesmo. Mas em algum ponto vamos ter que conversar sobre onde acaba o luto saudável e onde começa a obsessão. Eventualmente, você vai ter que se perdoar e seguir com a vida, e vai ser muito mais fácil se as suas emoções não estiverem ligadas com o destino de uma órfã.”

“Sim, claro, você tem razão,” digo eu, e as palavras saem por reflexo. Vinte e oito anos de treinamento selesnyano me ensinaram a manter a harmonia com meus amigos e minha comunidade acima de tudo, mas como eu posso me perdoar por causar o desabamento de um edifício que matou duas dúzias de pessoas? Eu forço um sorriso, puxo meu gorro sobre as pontas de minhas orelhas élficas, e puxo meu cachecol para cima, escondendo a maior parte do meu rosto. Vou precisar de anonimidade aonde estou indo. “É a última vez que eu vou vê-la, prometo.”

“Eu agradeço. Ah, tem mais uma coisa. Infelizmente os vizinhos andaram reclamando de novo.” Ambrellin inclina a cabeça, e o movimento faz com que os tentilhões sacudam suas penas dentro do ninho nos cabelos dela. “Tem certeza que você não ouviu nenhum barulho estranho?”

“Mais ‘barulho de vorme’?” Eu reviro os olhos.

“Eu sei, eu sei. É que são meus vizinhos, e se tiver algum problema eu quero resolver.” Os dedos dela passam pela madeira envernizada da carruagem que eu transformei em guarda-roupa. Ela abre as portas e chuta minhas velhas botas de evocador de vorme para o outro lado do cômodo. Já tem uma camada de poeira acumulada sobre o couro preto e desgastado. Ela espia atrás dos uniformes e armaduras, restos da minha vida pregressa como instrutor-líder de vormes para o exército Selesnya, antes de eu cometer o erro que mudara tudo. “Eles dizem que viram o vorme também, espiando pelo teto de pedra. Disseram que cada dente é do tamanho de um cutelo!”

“Não estou tentando causar desacordo, Ambrellin, mas você acha que talvez seja possível que seus vizinhos estejam meditando demais? Xamãs andam chamando os fieis para acolhidas cada vez mais frequentes. Talvez seus vizinhos estejam vendo e ouvindo coisas naquele estado elevado.”

Ela considera a ideia por um momento, e então ela se inclina e ergue a beirada da minha colcha.

“Ambrellin,” digo eu, com a voz bem no limite entre a polidez e a irritação. “Eu aprecio sua generosidade em me acolher na sua casa, mas você realmente pensa que eu conseguiria esconder um vorme em crescimento embaixo da minha cama?”

Ilustração: Wesley Burt

Ambrellin larga a colcha e suspira. “Você tem razão. Estou sendo ridícula. Que tipo de pessoa seria delirante o suficiente para manter um animal perigoso dentro de uma cooperativa residencial?”

Eu assinto. Que tipo de pessoa, mesmo...


As torres altas e escuras das catedrais Orzhov se assomam, criando tensões pelo meu corpo todo. O horizonte inteiro parece sujo de fuligem, com janelas de vitrais em arcos brilhando em laranja enquanto o sol começa a se pôr. O tipo de opressão muda do território de um cartel para o outro, mas eu mantenho a cabeça erguida, meus olhos concentrados à frente, e meus punhos fechados. Eu estaria melhor na via pública principal a algumas ruas daqui, que é bem iluminada — mas daí eu passaria pelo local onde a Basílica dos Oportunos ficava, uma das igrejas mais antigas do Sindicato Orzhov. Bom, ficava até que eu passei meu vorme por baixo dela, comprometendo sua estrutura e desabando o edifício inteiro para formar uma pilha de escombros. Ela estava sendo recuperada, com quase cinquenta trabalhadores recolocando vitrais quebrados, rebocando pedras esburacadas, e nivelando os porões para que as inundações da primavera não se acumulassem sob o edifício, molhando as catacumbas abaixo. Às vezes, eu fecho os olhos e ainda consigo ouvir os gritos das pessoas presas nos escombros. Eu preferiria me arriscar com alguns rufiões do que reviver aquele dia.

“Opa!” Diz uma voz. Eu olho para trás e vejo um cara usando couro preto, com várias fileiras de moedas prateadas penduradas em volta do pescoço. “Vejo você andando por aqui um bocado,” diz ele, como se mordesse um pedaço de cada palavra ao pronunciá-las. “Talvez tenha interesse em comprar um seguro? Sabe, para chegar em segurança onde você precisa chegar.”

“Não, agradeço,” digo eu, com meu tom de voz menos afrontoso. “É rapidinho.”

“Talvez. Mas ainda assim, tu não sabe quando algo pode acontecer.” Ele esfrega o punho fechado na palma da outra mão. “Tenho preços bem razoáveis.”

De repente, o peso das moedas no meu bolso parecem um risco. Ele já está de olho no volume.

“Tô bem,” digo eu, “Trouxe proteção.” Eu abro o casaco, revelando a empunhadura no meu quadril.

O capanga dá de ombros. “Uma faquinha dessas não te leva muito longe num lugar desses.”

“Não é uma faca,” digo eu. Eu abro a fivela de couro e puxo tesouras de metal. “Essas belezinhas cortam até o espinheiro mais denso e mais encantado. Sabe que tipo de dano um espinheiro encantado faz na pele?”

Mas ele está concentrado demais no meu bolso para responder. Eu me viro e ando mais rápido, cruzando a rua, mas ele me segue. Eu passo a mão no meu colete, puxo um bolsinho de couro cheio de sementes de espinheiro, e solto um punhado delas aos meus pés. Quando o capanga pisa nelas segundos depois, eu invoco a magia imbuída em todas as coisas, forço a magia atrás de mim e me viro para ver as vinhas cheias de espinhos irromperem da calçada, enleando o perseguidor em um abraço de arranhões.

Eu o deixo lá aos gritos e ando ainda mais rápido até chegar no orfanato. É um lugar horrível — um edifício opressor, caindo aos pedaços, que serviria melhor como fundição de moeda velha do que como refúgio para crianças. Mas aos pouquinhos eu venho doando meus ganhos ínfimos para ajudar a melhorar a infraestrutura.

Tem um espaço pequeno entre dois prédios onde os escombros da basílica ficam visíveis. Eu tento muito não olhar, mas como sempre, não consigo. Torres serrilhadas irrompem de tremendas colinas de escombros enegrecidos, como os restos de uma fogueira há muito apagada. Tudo o que havia de valor fora saqueado. Parece crueldade que a Bazda tenha que viver aqui, tão perto de onde ambos os pais morreram. Eu mordo o lábio e subo as escadas cinzas e empoeiradas, entrando pela porta. Um tia eu terei coragem de falar com ela, pedir desculpas... Mas não será hoje. Minha mente está tão preocupada que eu esbarro em uma das crianças com tanto impacto que meu cachecol cai de perto do rosto. Eu tenho recolocá-lo no lugar, mas já é tarde. Ele me reconheceu. Com um salto ele puxa o gorro da minha cabeça, e as pontas das minhas orelhas aparecem. Se havia alguma dúvida da minha identidade, não há mais.

“É o evocador de vorme!” diz o garoto, jogando meu gorro para um dos amigos. “O thrullzão que destruiu a basílica! Não admira que ele ainda não preste atenção por onde anda!”

E para o meu azar, a Bazda está perto o suficiente para ouvir, pequenina demais para sua idade, quase afogada dentro do uniforme cinza que lhe foi entregue. Seus cabelos negros estão em dois bolinhos. Ela vira e me vê. Eu me viro para o outro lado, procurando um cuidador com quem possa deixar o dinheiro e seguir meu caminho, mas como sempre, não encontro ninguém.

“Teu nome é lama por aqui,” o garoto me diz. “Dinheiro nenhum vai pagar a tua dívida!” Ele cospe na minha bota.

“Eeei,” diz Bazda, pegando o gorro das mãos do amiguinho e se aproximando de nós. “Deixa ele em paz.”

“E quem vai me forçar?” Pergunta ele.

Bazda puxa um grampo comprido dos cabelos e ataca o garoto, ficando a centímetros da garganta dele.

“Ah, esquece,” diz o garoto, saindo amuado.

Bazda olha para mim, entrega meu gorro, e depois reorganiza a metade direita do cabelo em um bolinho perfeito. “Eu já vi você por aqui,” diz ela. “Você traz um saco de zibs toda semana e depois fica me olhando. É esquisito. Você é um esquisitão?”

"Não! Não sou um esquisitão,” digo eu. “Só um cara normal. Pode perguntar pra todo mundo no meu bairro.”

Bazda aperta os lábios. “Parece algo que um esquisitão diria.”

“Olha, eu causei um acidente terrível. Só estou fazendo o possível pra acertar as coisas.”

“Você consegue me devolver os meus pais?” Pergunta ela.

“Não, mas tenho certeza de que estão em um lug—”

“Eles não estão ‘num lugar melhor’, se é isso que você ia dizer. Eles estão no mesmo lugar, só que é pior porque são espíritos agora. Estão tão ocupados pagando suas dívidas que não têm tempo de vir me visitar.” Ela cruza os braços.

“Ah.”

“Parece que é melhor você tentar se consertar ao invés de vir aqui, estragando o lugar com essa atitude pessimista. O que tem de errado contigo?"

“Nada,” gaguejo eu.

“Sem emprego, sem amigos, sem vida pessoal. Mais ou menos isso?”

“Eu tenho amigos,” digo eu. Eu sinto um formigamento. É estranho ser interrogado por uma criança de doze anos, mas ela tem muitos motivos para ter raiva. Ainda assim, sinto necessidade de defender minha honra. “Amigos ótimos! O Savaryn é um loxodonte, forte sem igual, e não tem medo de nada. O Kellim é arquiteto e projeta os santuários mais tranquilos. Ele é humano, mas não temos preconceito. E a Ambrellin é uma dríade corretora de artefatos, especialmente antiguidades. Toda semana a gente se encontra—”

“Espera. . .ela entende de artefatos? Tipo, daqueles bem velhos?”

“Sim. . .

Bazda me olha de cima a baixo, e depois tira um pano do bolso. Ela o desdobra para me mostrar um pedaço de pedra entalhada na forma de uma lua crescente, com um buraco no centro e símbolos dourados entalhados nele todo. Até eu sei dizer que é antiquíssimo. “Meu pai me deu isso aqui alguns dias antes de morrer. Ele encontrou durante a construção da basílica. Quero saber o que é.”

“Eu posso mostrar pra Ambrellin, se você quiser. Com certeza ela gostaria de ajudar.” Até mesmo com o pessimismo deste lugar e dentro do meu coração, eu sinto uma chance de me redimir. Eu só consigo imaginar como esse artefato é importante para a Bazda, talvez a última coisa que o pai lhe deu.

Ela ergue uma sobrancelha. “Posso confiar em você pra me trazer de volta?”

“Você tem minha palavra que o devolverei intacto,” digo eu. “Eu juro pelas raízes de Vitu-Ghazi.”


As florestas selesnyanas me acolhem de volta, e quando os sons da natureza pacífica entram na minha mente, o peso do Sindicato Orzhov vai se soltando dos meus músculos. Meus ombros relaxam e meus punhos se soltam. Os cultos noturnos já estão na metade, e eu passo por vários xamãs que convocam o poder de congregantes fieis para encantar uma série de sinetes entalhados com o símbolo abençoado do Conclave.

Estou quase em casa quando tenho a sensação de estar sendo seguido. Pode ser qualquer um dos capangas Orzhov que tentaram me intimidar para conseguir vender um seguro no caminho de volta do orfanato. Eu solto outro punhado de sementes e dobro a esquina. Eu conjuro a mágica, mas acho que o assaltante evitou o espinheiro, porque os passos continuam vindo. Eu tento puxar minhas tesouras de jardinagem como segunda opção, mas a fivela está vazia. Eu olho para a frente quando a figura vira a esquina, e depois suspiro de alívio. É a Bazda.

“Procurando por isto?” Pergunta ela, mostrando minhas tesouras.

“Que ladrazinha!” Digo eu, pegando-as de volta. “Como você conseguiu roubar?”

“Você achou que eu ia confiar na palavra de um esquisitão? Você tem uma coisa valiosa que é minha. É justo que eu tenha uma coisa valiosa que é sua.”

“Toma. Pega o seu artefato e vai para casa. Não vou contribuir para a delinquência de uma criança!”

“Casa? Ninguém vai nem notar que eu saí, muito menos se importar. Além disso, você vai me mandar andar na rua a essa hora? Sozinha?”

“Eu vi você usar grampos de cabelo como arma. Vai ficar bem.”

Bazda cruzou os braços. “Provável. Mas eu ainda quero saber do artefato. É aqui que você mora?” Pergunta ela, olhando para nossa cooperativa residencial - uma combinação de pedra branca e polida com jardins em camadas, cuja cobertura foi projetada por Sadruna, madeireiro do famoso bosque topiário. “Bastante galhos e folhas.”

“É uma coisa selesnyana,” murmuro eu. “Pode subir, então.”

Passamos pelos jardins, subimos as escadas de pedra, por dois átrios, e pelas portas abertas de alguns residentes. Nosso vizinho de baixo acena. Eu aceno também e aperto o passo, para que não tenham a chance de falar comigo sobre o barulho de vorme.

“Por que não tem portas no seu prédio?” Indaga Bazda.

“Por que precisaríamos de portas?”

“Para manter as pessoas do lado de fora.”

“Todos são bem-vindos no nosso lar.”

“Aham,” diz Bazda, com seu olhar deslizando, “mas e se alguém tentar roubar alguma coisa?”

“Não é uma coisa que nos preocupa,” digo eu enquanto subimos o último lance de escadas. É fácil esquecer que muitos em Ravnica se concentram apenas em vontades e ganhos individuais.

A soleira se abre para uma vista espetacular da planície. O sol está logo abaixo do horizonte, e os últimos resquícios do dia criam silhuetas dos santuários galopando ao longe. À direita, onde a noite já se estabelecera, os galhos de Vitu-Ghazi estão acesos com as luzes dos vaga-lumes. Quero mostrar o artefato para Ambrellin, mas eu demoro um pouco para que Bazda tenha a chance de absorver a paisagem. Finalmente, ela está sem fala.

“Venha,” digo eu, puxando-a gentilmente pelo arco de galhos entrelaçados que serve como soleira do nosso lar. “Ambrellin,” grito eu. “Tenho que te mostrar uma coisa!”

Ambrellin me recebe com um sorriso largo. “Terrik! Você nunca vai adivinhar quem veio—” Ela para e olha para Bazda. “Ah, olá, querida. Bem-vinda ao nosso lar. Eu sou Ambrellin.” Ela faz uma mesura, e suas folhagens quase tocam o chão. Seus tentilhões revoam em volta de Bazda para cumprimentá-la, chilreando contentes.

“Eu sou Bazda,” diz ela, com uma mesura adorável também.

Os olhos de Ambrellin volteiam para os meus, buscando uma explicação sem parecer rude com nossa visita.

“Está tudo bem,” eu a garanti. “Ela tem um artefato que quer mostrar a você. Talvez você possa dizer mais sobre ele?”

Ambrellin pega o artefato embrulhado em pano e desdobra cada canto até que ele fica exposto. Ela perde o fôlego.

“Meu pai achou ele enquanto cavava na basílica,” diz Bazda. “É antigo?”

“Muito. Estes símbolos dourados, eu já vi antes em maquinários Izzet antiquíssimos, tecnologia de milhares de anos atrás, quando ainda trabalhavam muito com pedra e circuitos de mana. Já são raros normalmente, é um mistério como um desses acabaria enterrado sob uma basílica Orzhov.”

“Valioso?” Indaga Bazda.

“Inestimável,” diz Ambrellin com um suspiro pesado.

Bazda meneia a cabeça. “Tudo tem seu preço.”

“Eu falarei com o magistrado de corretagem amanhã para ver que guilda têm a reivindicação mais forte disso,” diz Ambrellin. “É apenas uma peça de algo muito maior.”

“Talvez alguém já tenha encontrado o resto,” digo eu.

“Duvido. A fofoca anda rápido no meio dos corretores de antiguidades. Eu já teria ouvido alguma coisa.”

“Terrik!” Diz uma voz vinda da sala de jantar. De lá sai Savaryn, de tromba erguida com a empolgação. Ele se apressa na nossa direção, de braços abertos. “Paz e tranquilidade a ti, meu amigo.”

“Paz e tranquilidade a ti também,” digo eu, manobrando cuidadosamente entre suas presas e me jogando em um abraço afetuoso. “Como está? Faz quase uma semana!”

“Kellim e eu viemos com boas e abençoadas notícias. Eu fui promovido. O campo de treinamento de Kasarna atingiu sua capacidade máxima, então estão planejando um novo local no outro lado da Floresta do Cume Norte. Eu serei o diretor, e Kellim foi contratado para projetá-lo.”

“Parabéns,” digo eu. “No Cume Norte? É bastante transporte diário! Vai passar pelo menos uma hora, fácil, para atravessar o eixão.”

Savaryn troca um olhar ansioso com Ambrellin. Depois de um momento longo e pensativo, ela assente com a cabeça.

“Não vamos fazer esse trajeto,” diz Savaryn. “Vamos nos mudar, para ficar perto d—”

“Mudar?!” Grito eu. Eu mordo a língua e tento ser um bom selesnyano, ignorando a dor no meu coração, e ao invés disso, gerando tranquilidade dentro de mim. “Ahem, mudar. É claro. Com certeza seria mais conveniente para vocês.” Meu sorriso é tão forçado que parece que meus dentes vão se despedaçar. Por fim eu não aguento mais, e vou correndo para o meu quarto.

“Terrik,” chama Ambrellin, passando cuidadosamente pelos outros que estavam amontoados na soleira. “Vai ficar tudo bem. Podemos visitar qualquer dia.”

“Eu sei. Mas não vai ser a mesma coisa.” Nosso grupinho está se desfazendo. Essa notícia tem mais impacto em mim do que perder o emprego ou a reputação. Não posso deixar que esse seja o fim da nossa amizade.

“E se pudéssemos fazer uma última aventura juntos?” Eu pergunto a eles. “Antes que acabemos espalhados por toda Ravnica.”

“É uma ótima ideia,” diz Ambrellin. “Podemos visitar o bosque topiário na semana que vem. Faremos um piquenique e—”

“Isso é só um passeio. Quero fazer algo inesquecível. Acho que devíamos descobrir o que mais está escondido embaixo daquela basílica. Por que não podemos ser o grupo que vai fazer a descoberta?”

Ambrellin meneia a cabeça e senta na beira da minha cama. “Algo velho assim deve estar enterrado bem fundo. Seria impossível cavar sem fazer o Sindicato Orzhov inteiro convergir na nossa posição.”

“E se usássemos um vorme?” Pergunto eu. “Podemos mergulhar no solo, o mais profundo possível. Sem cavar.” Eu canalizo um feitiço de chamado, algo que aos nossos ouvidos parece um assobio, mas parece um farol para um vorme. O colchão se mexe embaixo de Ambrellin e ela se levanta em um salto, vendo minha cama se transformar em uma bagunça encaroçada.

“Você estava mesmo escondendo um vorme debaixo da cama!” Diz ela.

Eu sacudo a cabeça. “Não exatamente. O vorme é a cama.” A colcha é jogada longe, e também cobertas grossas que cobriam paletas de madeira. “Mantenham a calma,” digo eu enquanto o vorme se desenrola entre lençois emaranhados. Seus olhos redondos estão treinados para me encontrar, e sua boca está aberta com saliva pingando de fileiras e mais fileiras de dentes afiadíssimos. “Boazinha,” digo eu, jogando um pedaço de raktusk seco dentro das mandíbulas abertas. Ela é jovem, mal tem um ano e já pesa uma tonelada de puro músculo.

“Incrível. . .” diz Bazda, ousando se aproximar. “Pode fazer carinho?”

“Claro,” digo eu.

“Ah, com certeza não!” Diz Ambrellin, puxando-a.

“Ela é inofensiva,” digo eu. “Para amigos, no caso. Eu a criei desde que saiu do ovo.”

“Eu não acredito que você andou escondendo essa coisa na minha casa!” Diz Ambrellin, com uma irritação muito real em sua voz. “E agora você quer que sigamos você para dentro de uma das áreas mais corruptas de Ravnica em busca de um tesouro com uma órfã perdida.”

“Eu vou,” diz Savaryn. “Terrik tem razão. Um grande evento na forma de uma aventura nos daria ligação suficiente, estruturando a transição para uma amizade à distância.”

“Eu também vou,” diz Kellim. “Tenho que admitir, fiquei curioso com o que está debaixo daquele edifício. Vamos, Ambrellin. Você sabe que os Izzet vão pegar a sucata para fazer alguma invenção maior, e os Orzhov vão vender para quem der mais.”

Ambrellin segura o artefato com um brilho nos olhos. “Certo, vamos dar uma olhada. uma olhada. Se qualquer coisa parecer errada, saímos imediatamente.”

Eu abro um sorriso largo. “No primeiro sinal de problema, saímos de lá; eu prometo.”


O vorme corta caminho pela rocha sólida, com frequências subsônicas transformando rocha temporariamente em lava, permitindo que evitemos o trânsito noturno e intimidações de gangues Orzhov. Tenho armadura até os dentes com meu uniforme de evocador, e ela me protege de queimaduras da rocha derretida à nossa volta. Os outros estão apertados dentro da carroça fortificada que servira como meu guarda-roupa.

Estamos perto do local da basílica desabada, mas a vorme está voltando aos poucos para perto da superfície. Eu puxo as rédeas, pedindo a ela que vá mais fundo, mas ela está resistindo. Eu faço carinho no lado dela, logo atrás do sulco da orelha. Ela ronrona e se acalma um pouco, e apesar da tensão que ela transparece, eu sei que ela ainda está hesitando. No final não importa, porque ela nos leva até uma catacumba longa e retangular embaixo da basílica desabada.

“O que houve, menina? Alguma coisa te assustou?” Eu faço carinho no focinho da vorme, e dou um agrado enquanto os outros desembarcam. Savaryn está se recuperando do enjôo, e... bem, agradeça se você nunca ouviu um loxodonte tendo ânsias. Kellim está encantado com as esculturas de gigantes de pedra, de costas apoiando o teto abobadado como se impedissem que o lugar cedesse sobre nós. Rachaduras de desgaste serpenteiam pela pedra, talvez devido ao desabamento acima, mas Kellim não parece muito preocupado com a integridade estrutural. Ambrellin está enlevada com as milhares de urnas de cerâmica em prateleiras ladeando as esculturas, cada uma delas decorada com moedas de ouro.

“A Basílica dos Oportunos tem milhares de anos, e as catacumbas são ainda mais antigas,” diz ela, olhando em volta, perdida em reverência. “Algumas dessas urnas podem ter quase—” os olhos dela se prendem em algo do outro lado da câmara. Ela começa a andar naquela direção, e a apertar o passo. Nós a seguimos.

Swamp
Pântano | Ilustração: John Avon

É outra estátua de pedra, dessa vez um thrull sentado nas patas traseiras e com a cabeça baixa em servidão, braços estendidos, segurando um cálice. O cálice está coberto por camadas de poeira, mas eu consigo sentir o mana que emana dele. É um artefato. Ambrellin assopra a poeira, revelando pictogramas em entalhes finos, com esmeraldas na beira da taça. Cuidadosamente, ela tenta deslocar o artefato das mãos da estátua, girando-o de um lado para outro. Sem aviso algum, a estátua inteira se inclina para trás e entra na parede, levando Ambrellin.

Kellim está mais perto e se estica para alcançar Ambrellin, e agarra a perna dela, mas ele também está sendo puxado para dentro da abertura escura. Savaryn os segura bem com suas mãos enormes, e eu e Bazda ajudamos a estabilizá-lo. Trabalhando juntos, nós puxamos, puxamos, puxamos, e Ambrellin quase sai, mas o vigor do nosso resgate fez a pedra em torno da estátua rachar. O chão também começou a desmoronar. Eu olho para minha vorme e conjuro um feitiço rápido para chamá-la. Ela é forte o suficiente para puxar a todos nós.

Assim espero.

Mas ela não está respondendo. Eu assobio mais uma vez, e ela se eriça, sacudindo a cabeça como se estivesse tentando se livrar dos arreios. “Vem, garota! Tenho carne seca pra você.”

Ela vem para perto aos poucos, com olhos arregalados, mas logo antes de ficar ao alcance do meu braço ela se retrai e salta para o teto. A pedra se liquefaz e ela some com a cauda balançando, e a pedra solidifica novamente meio segundo depois. Eu a chamo mais duas vezes, mas algo a assustara, e ela não vai voltar.

E então o chão inteiro cede, e não há nenhum outro lugar para irmos além de para baixo.


Estamos tossindo alvenaria há cinco minutos, mas as únicas baixas foram hematomas nas costelas, uma presa lascada, e o nosso orgulho. Caímos por cinco metros, talvez mais, para algum tipo de corredor. Eu me sinto péssimo e conjuro uma cura em área para ajudar com os cortes e arranhões. Eu prometi que iríamos embora no primeiro sinal de perigo, e agora olha como estamos. Presos.

“Vai levar algum tempo, mas se empilharmos as pedras quebradas podemos montar escadas de volta,” diz Savaryn erguendo um pedregulho como se fosse de vento.

Eu ergo uma pedra menor e menos impressionante, e a empilho ao lado da dele. “Parece um plano sólido.”

Ambrellin me lança um olhar cortante, com um “eu te avisei” inequivocamente formado nos lábios. Mas até mesmo estando completamente fora do seu elemento, ela se mantém dentro dos princípios harmoniosos do Conclave. “Sim,” diz ela, se esforçando para evitar que seu sorriso se transforme em um rosnado. “Parece um bom plano.”

“Você está brava comigo,” digo eu, para ela. “Eu entendo. Você não foi nada além de bondosa comigo, e eu não fui nada além de uma decepção.”

A casca de árvore perto das têmporas está tão enrugada que parece estar avançando. “Eu não estou brava.”

“Nem um pouco? Eu sei que valorizamos a serenidade e o sacramento da amizade, mas se estiver incomodada você tem que dizer algo. Eu passei os últimos três meses na sua casa, comendo sua comida, guardando em segredo um vorme que incomodou seus vizinhos, talvez tenha meio que quase sequestrado uma criança, e acabei prendendo você sob um edifício desmoronado no meio do Sindicato Orzhov—”

“Certo, estou brava com você, feliz agora?” Ambrellin caminha na minha direção e bate com o dedo no peitoral da minha armadura. “Nós esperamos pacientemente que você chegasse no fundo do poço para poder ajudar a voltar, mas ao invés disso, você deu um jeito de nos arrastar com você! Nossas festas acabam girando em torno dos seus sentimentos, e você desequilibrou a química do grupo, e agora o Savaryn e o Kellim estão se mudando porque você anda insuportável!” Ela para, olha para mim com alívio por apenas um instante antes do remorso se instalar.

“Estão indo embora por minha causa?” Pergunto eu.

Ambrellin meneia a cabeça e suas folhas farfalham. “Desculpe, Terrik, eu não queria—”

“Não, sou eu quem pede desculpas,” digo eu. Eu achei que teria o apoio deles, mas acho que em momentos assim você aprende quem são seus amigos de verdade. “Cuidem da Bazda. Levem-na de volta ao orfanato. Você não precisa se preocupar em ser arrastada para o fundo do poço, nunca mais.”

Eu sigo pelo corredor sozinho, na companhia de dúzias de gárgulas empoleiradas em nichos em ambos os lados, olhando para cima boquiabertas. Estão dormindo há séculos, talvez milênios, mas eu não ouso arriscar acordá-las. A culpa mordisca meu cérebro. Eu coloquei meus amigos nesse caos, e eu devia estar ajudando a encontrar uma saída, mas nesse ponto eu não confio em mim para não piorar tudo. Então eu continuo a aumentar a distância entre nós até chegar em uma escadaria que leva mais para dentro das profundezas das catacumbas.

Eu desço um degrau timidamente, e depois outro, e de repente sou tomado pelo aroma familiar de estrume de vorme, o fertilizante mais valorizado entre jardineiros selesnyanos. Por um momento, sou arrebatado pelas memórias de minha vida pregressa, perambulando pelas florestas no fim do outono, cavando terra fértil e escura em busca de casulos de vorme. Os casulos translúcidos eram mais ou menos do tamanho de um punho de loxodonte, e dava para ver cinco ou seis vormezinhos serpenteando lá dentro. Eu treinara centenas de vormes ao longo da minha carreira, transformando-os em armas letais para proteger nosso estilo de vida, mas aquele momento na mata era minha parte favorita do serviço, segurando nas palmas das mãos todo aquele poder em potencial, com futuros ainda não escritos.

Os sentimentos agradáveis se jogam para o fundo da minha mente quando chego no fim da escadaria e espio para dentro, vendo três vormes adultos estourando as paredes do cômodo com suas emanações subsônicas. Espíritos, criaturas imunes às vibrações, varrem a rocha liquefeita antes que ela solidifique.

No centro do cômodo há um mecanismo de pedra circular com uma alavanca na altura do meu peito, parecido com uma moenda antiga, com marcações similares às do artefato de Bazda. Com certeza era a tecnologia Izzet que Ambrellin mencionou. Moedas de cobre estavam empilhadas em torno do mecanismo. Um homem corpulento com um olhar inegável de desespero orquestra os trabalhadores. Ele está usando robes brancos com cordas pretas, apesar da poeira ter deixado suas roupas em tons de cinza. Um pontífice Orzhov, se eu me lembro bem da hierarquia deles. Há um tomo com capa de couro pendurado sobre o ombro dele com uma alça desgastada, e um thrull irrequieto o segue como se fosse sua sombra.

“Mais rápido! Tem que estar enterrado aqui em algum lugar,” diz o pontífice, cutucando um dos vormes com seu cajado, pontiagudo com um sol feito de âmbar precioso. O vorme solta um lamento de dor tão profundo que eu sinto no meu peito. Gritos assim correm por quase um quilômetro. Não me admira que a minha vorme tenha se assustado.

A grande mão de Savaryn desce sobre o meu ombro, me puxando gentilmente. “Não parece ser o tipo que trata com bondade quem não é convidado,” sussurra ele. “Vamos lá. Ambrellin quer pedir desculpas e então podemos trabalhar juntos para sair daqui.”

Outro toque atinge meu outro ombro. Mas não é a mão calmante de Savaryn dessa vez. Eu nem ouso virar para ver. Pelo olhar de Savaryn, eu nem consigo imaginar a criatura Orzhov que me pegou.

“É. . .é. . .é. . .” Savaryn fica repetindo sem sussurrar. Meus olhos pulam para a gárgula atrás dele. Acho que ela se mexeu muito levemente. “É. . .

Guinchos aparecem em meu ouvido. Eu me viro e suspiro. “É só um rato.”

Eu o puxo do meu ombro e mostro a Savaryn. As mãos dele estão sobre a boca, segurando um grito, mas um bramido miúdo de medo escapa de sua tromba. Agora a gárgula atrás dele está abrindo um dos olhos. Ela nos vê, intrusos, e começa a guinchar. E então todas as gárgulas começam a emitir sirenes de perfurar os tímpanos que ecoam pelas catacumbas. Antes de poder reagir, espíritos já nos cercaram. O pontífice se espreme entre eles.

“Espíritos abençoados, o que temos aqui?” Devaneia o pontífice.

“Parecem intrusos, Mestre,” diz o thrull, se agachando ao lado do pontífice. A voz é raspada, úmida e oca - exatamente o que eu esperava de uma criatura moldada com carne morta.

“E quem sabe o valor da multa por invadir estas catacumbas sagradas?”

“Vinte mil zibs, Mestre,” diz um dos espíritos olhando para baixo. “Ou dez mil horas de trabalho.”

“Imagino que vocês não tenham vinte mil zibs consigo,” diz o pontífice ao apontar seu cajado para mim, e quando o âmbar se acende tudo o que tenho de valor é arrancado dos meus bolsos. Minhas sementes de espinheiro encantado, minhas tesouras, e algumas moedas.

“Essas coisas são minhas,” eu protesto.

“Ah, mas o Sindicato Orzhov considera a posse como noventa e nove centésimos da lei. E agora eu as possuo.” Ele entrega o cajado e meus pertences ao thrull e depois abre seu livro de couro, folheando por dúzias de contratos assinados até chegar em uma página em branco. Ele toca o pergaminho impecável e palavras sangram, ditando os termos da minha servidão contratual e um local para a data e minha assinatura. “É assinar, ou virar comida de vorme.”

Comida de vorme parece a solução mais fácil, mas eu assino um nome falso e espero o melhor, sabendo que os outros ouviram as sirenes e estão alertas do perigo. Eu sei que Ambrellin está com raiva de mim, mas nossa amizade tem raízes profundas e ela não vai parar até encontrar um meio de nos libertar.

Depois que Savaryn assina também, o pontífice nos entrega um balde e comanda que comecemos a trabalhar.


Os espíritos parecem se esquecer que pessoas vivas precisam fazer pausas, e empilham baldes e mais baldes de cascalhos antes que consigamos carregá-los. Eu carrego um em cada braço por um corredor pequeno que se abre para outra câmara de catacumbas, com ossos empilhados ordenadamente em prateleiras, e caveiras com moedas encaixadas nos sulcos dos olhos - práticas funerárias de uma era ainda mais antiga. Estátuas também contornam o cômodo circular - algumas de humanos, outras de thrulls, e até um vampiro com presas à mostra. No centro da câmara é onde largamos o pedregulho, em um buraco agourento que leva mais para o fundo das histórias esquecidas de Ravnica. Eu ouso espiar escuridão adentro, me perguntando até onde vai, se cair me mataria ou só me deixaria com ossos quebrados e arrependimentos.

“Não pode demorar,” diz a espírito que veio atrás de mim. Ela joga o conteúdo de seu balde buraco adentro — saliva de vorme, um fluido cinza pálido com espuma amarelada. Sinal forte de um vorme estressado.

“Desculpe,” digo eu, me apressando atrás dela. “Então, o que o mecanismo faz?”

Ela olha para os lados e fala com uma voz tão suave e arranhada que me dá arrepios. “Ela cunha moedas de ouro a partir do cobre - é uma invenção dos Izzet que foi roubada pelo trisavô do Mestre há doze gerações atrás. Ele a usou para fazer uma grande fortuna, que o levou a tomar um cargo na elite, e era o segredinho sujo da família.”

“Mas está faltando um pedaço,” digo eu, e me arrependo imediatamente. Mas ao invés de ela parecer suspeita com o que eu sei, ela parece tomada pela culpa. De algum modo, apesar de ser uma aparição, ela consegue ficar pálida. “Você sabe onde está, não sabe?” Pergunto eu.

Ela sacode a cabeça rapidamente, e então eu noto. . .a semelhança. O mesmo rosto miúdo e estatura magra, cabelo cinza-escuro que provavelmente fora preto em vida. “Você é a mãe da Bazda?”

“Por favor, nós já demoramos demais!” Ela corre à minha frente e eu corro atrás dela.

“Ela sente sua falta. Ela está aqui, na câmara logo acima. Vamos sair de fininho quando o pontífice não estiver olhando.”

“Nós não podemos. Estamos vinculados pelo contrato. A magia de lei nos puxaria de volta se tentássemos fugir.”

“Kadin! Zavora! Estão demorando!” Diz o pontífice quando voltamos. Ele passa seu cajado ao seu aio thrull, e abre seu tomo novamente. “Um dia a mais em seus débitos.” Zavora faz um pequenino arranhão em uma fileira longa de marcas. O pontífice passa para a minha página. Eu sinto o puxão da magia de lei, forçando minha mão para fazer a marca.

“Tem muito mais de onde veio essa!” O pontífice gargalha.

Eu fico tenso, e de repente o peso do contrato se concretiza. Eu vou ficar em dívida com ele para sempre, e nem a morte (muito menos a morte) vai me libertar, a não ser que eu faça algo agora mesmo. Eu agarro o livro e corro na direção de Savaryn, que está carregando três baldes em cada mão. Ele os larga quando eu jogo o livro. “Rasgue!” Digo eu. “Rasgue o livro todo e vamos libertar a todos.”

Savaryn obedece, e suas mãos enormes partem a brochura do livro enquanto eu seguro o pontífice. Páginas se rasgam em seguida, e o livro se despedaça completamente. Eu sinto as amarras do contrato se enfraquecendo.

“Quem é você afinal, ‘Kadin’?” Pergunta o pontífice, olhando no fundo dos meus olhos como se tivesse me reconhecido. “E o que você estava fazendo aqui embaixo?”

“Ninguém, e nada,” respondo.

“Hmm. Vamos ver.” Ele arranca o cajado das mãos de seu aio, e arranha a ponta de âmbar no chão de pedra enquanto risca um círculo em volta dos meus pés. De repente eu me estico como uma tábua, e minha língua parece ter sido transformada em uma arma. “Vou perguntar novamente. Quem é você, e o que está fazendo aqui?”

“Meu nome é Terrik, e eu vim com meus amigos procurando por tesouros para solidificar nossa amizade depois que eu estraguei tudo, passando um vorme embaixo dessa basílica e causando o desabamento!” Eu não quis dizer nada daquilo, mas ele me pôs sob influência de um feitiço de veracidade, um muito forte, e minhas próprias palavras me traem. Mas eu seguro uma informação com todas as minhas forças, a nossa única saída, que Bazda está com o pedaço do mecanismo que está faltando. Eu medito, cercando aquele pensamento com uma armadura mental.

“Eu achei você familiar, mesmo,” diz o pontífice. “Você pode relaxar sua consciência, Terrik. Você e o seu vorme estavam apenas no lugar errado, na hora errada. Parece que eu fiquei ambicioso demais com a escavação aqui embaixo, e derrubei algumas estruturas de suporte que não devia. Mas é bom saber que você tem mais amigos por aqui. Vou poder usar todos os braços que conseguir.”

O pontífice envia um grupo de espíritos para trazer meus amigos, e depois balança o cajado no ar, de onde sai uma fumaça cinza. A fumaça desce até o chão, cobrindo os pergaminhos esfarrapados e a capa de couro em uma bruma com um brilho fantasmagórico. E então o pontífice puxa da névoa um livro em perfeito estado, com todas as páginas intactas.

Ele olha para mim e sorri. “Ah, mas você vai ficar em dívida com a minha família por gerações inteiras.”


Meu estômago afunda quando os espíritos voltam, empurrando Ambrellin, Kellim e Bazda. Seus olhos se arregalam quando vêem os vormes e o mecanismo. Bazda se solta do espírito e corre com tudo na minha direção, com um abraço apertado.

“Está tudo bem,” eu garanto. “Vamos encontrar um jeito de sair dessa."

“Venha aqui,” diz o pontífice, arrancando-a de mim. “Vamos ver o que temos aqui.” Ele passa o cajado por Ambrellin primeiro, mas ela não carrega nada que o pontífice veja como valioso. Seus únicos adornos são os galhos que serpenteiam por seus braços, e um colar feito com folhas de outono. Ele pega uma adaga de Kellim, então ele se vira para Bazda. Eu fecho os olhos. Ele vai encontrar o artefato dela, e o mecanismo estará completo. Nossa utilidade aqui acabará, e não tem como ele nos deixar ir embora com o que sabemos.

“É assinar, ou virar comida de vorme,” diz o pontífice para meus amigos.

Eu abro os olhos, e ele entrega o cajado para o thrull que está segurando apenas a adaga e os grampos do cabelo de Bazda. Onde esconderam o artefato? Bazda assente para mim e eu olho para baixo, notando um volume novo no lado da minha armadura. Discretamente eu tateio o objeto, na forma de uma lua crescente com um buraco no meio. Suas mãos ladinas plantaram o artefato em mim sem que eu notasse.

“Mestre!” Grita um dos espíritos. “Esse vorme parou de se mexer.”

O pontífice agarra seu cajado e bate os pés a caminho do vorme, que está com o corpo mole no chão de pedra fria. Ele estoca a carne do vorme, e o sol de âmbar se acende, lançando um raio de magia de dor no animal. Ele treme por um momento, e uma rede preta irradia por toda a pele. O pontífice dá outro choque no vorme, mas desta vez não há resposta.

“O que vocês estão olhando?” Grita o pontífice. “Ainda temos dois vormes. Encontrem o pedaço que falta até o final do dia, ou vou adicionar um ano à dívida de cada um!”

Assim que o pontífice sai, eu corro até o vorme. Eu coloco as mãos atrás da mandíbula para sentir o pulso mais fraco que já vi. O olho dele vira para mim, e eu fico impactado pelo olhar de reconhecimento que ele me dá, e uma lágrima escura e espessa corre pela sua face. É um dos meus, eu sei. Talvez os outros também sejam. Mas não importaria de qualquer modo, porque o pontífice vai pagar por isso, com juros.

“Não demore,” vem a voz da mãe de Bazda novamente. Ela está com o balde cheio de saliva de vorme. Eu pego dois baldes cheios de cascalho e ando rapidamente na frente dela até chegarmos no cômodo da catacumba, longe de ouvidos bisbilhoteiros.

“Moça. Preciso da sua ajuda,” peço. “Eu tenho um plano para liberar a mim, a você, e todos os outros que o pontífice amarrou por contrato. Só peço que faça duas coisas simples. . .


A mãe de Bazda está sobre o buraco no centro do cômodo, olhando para as profundezas abaixo. O pontífice está ao lado dela, olhando para baixo também.

“Ele simplesmente pulou,” diz ela. “Acho que o trabalho era pesado demais para ele. Sabe como os elfos são.”

“Pena,” diz o pontífice. “Pelo menos ainda temos o loxodonte. Certamente era o melhor trabalhador dos dois.” Ele entrega o cajado ao thrull, como sempre faz antes de abrir o livro de contratos, e vai até a página que eu assinei. O pontífice ergue as mãos e, ao conjurar a mágica, estou perto o suficiente para ver onde a data de encerramento sangra para dentro do papel, e ainda assim o pontífice não me nota.

A primeira coisa que eu pedi à mãe de Bazda era que chamasse o pontífice, e contasse que eu tinha pulado. Não havia outra entrada ou saída do cômodo, então era óbvio que era para lá que eu tinha que ir.

A segunda coisa que pedi foi o balde de saliva de vorme emprestado. Eu encharquei meu corpo inteiro com ele. Não posso dizer que foi uma experiência positiva, mas me deu uma cobertura pegajosa o suficiente para grudar cascalho. Depois de duas aplicações, eu parecia uma estátua de pedra igual às outras ao longo das paredes. Eu fiz uma pose, e esperei.

E esta é a minha chance de atacar. Eu me lanço contra o pontífice à toda velocidade, e bato o livro de contratos para longe dele com uma das mãos. Eu o pego de surpresa, e o livro sai voando. Eu o agarro, e lutamos na direção do buraco. Ele é determinado, mas eu passei a vida sobre os dorsos de feras mil vezes maiores, e com duas derrubadas eu o jogo para dentro do buraco. Quatro segundos se passam antes que eu ouça um impacto de carne, e ossos se quebrando. Eu me retraio e corro até o livro, rasgando um contrato após o outro. Eu olho para o thrull que ainda está lá, segurando o cajado.

“Vamos,” digo eu. “Me ajude aqui, e todos ficaremos livres. Isso inclui você! Ele não vai conseguir remontar o livro sem o cajado.”

Lentamente o thrull se vira para mim. Do buraco, ouvimos o pontífice gemendo. Há um lampejo na face do thrull, e antes que eu consiga pedir para que parasse, ele se joga atrás do pontífice. Momentos depois, eu ouço músculos e ligamentos rasgando. A luz âmbar se acende nas profundezas, onde o pontífice faz sua magia de carne.

“Mudança de planos,” digo eu para a mãe de Bazda, e então eu corro na direção dos outros. Eu puxo o artefato da minha armadura e o entrego para Ambrellin. “Você acha que consegue ligar o mecanismo?” Pergunto eu.

“Creio que sim,” diz ela. “A magia é forte, mas as mecânicas são simples. Eu só preciso que alguém empurre.”

“Eu consigo,” diz Savaryn, mostrando o muque. Dez minutos depois o artefato está no lugar, Kellim e Bazda estão jogando moedas de cobre dentro da máquina, Savaryn está girando a alavanca, e quando a pedra de cima esmerilha na de baixo, fagulhas roxas voam e eu fico arrepiado. Eu olho para trás o tempo todo, mas o corredor continua silencioso. A primeira moeda cai pela calha e eu a pego nas mãos. Eu a mordo. Parece de verdade. Mais uma dúzia cai, depois mais cinquenta. Os espíritos as contam e enchem baldes com quinhentos zinos cada.

Eu pergunto a cada um deles quanto ainda devem, e divido o dinheiro entre eles, prontos para comprar sua alforria. Tudo fica imóvel quando ouvimos clique, clique, clique vindo na nossa direção. Momentos depois, o pontífice emerge no cômodo, com um braço mais longo do que o outro e o maxilar mais para frente do que devia. A carne cinza-azulada dependurada aparece sob os robes com cada passo, e leva um momento para eu notar que ele fundiu o thrull à própria perna, e a cabeça dele está onde o pé do pontífice ficava. A placa facial dourada do thrull bate no chão de pedra a cada passo.

“Acabou,” eu digo a ele, soltando um balde de zinos aos pés dele. “Estou quitando todas as nossas dívidas. Não estamos mais amarrados aos seus contratos.” Com as minhas palavras, eu sinto a magia de lei se soltando.

“Não!” Grita ele com um gargarejo. “O mecanismo é meu. As moedas pertencem a mim! Você não tem posse!”

“Temos, sim. Você mesmo disse. A posse é noventa e nove centésimos da lei.” Eu abro um sorriso largo.

Bazda acena para ele, sentada sobre a cunhagem.

“Eu farei mais dinheiro,” diz o pontífice. “Dinheiro para injetar no Sindicato. Dinheiro para financiar guerras. Todas as outras guildas vão cair, a começar pelos Selesnya.”

“Estamos indo, então,” digo eu, com um cumprimento de cabeça. “Foi bom fazer negócios com você.”

E com isso os espíritos se esticam e seus corpos etéreos (que até parecem mais leves de repente) desaparecem através da parede. Eu e meus amigos subimos as escadas novamente, na direção do cômodo e do lance de escadas pela metade.

Eu assobio, chamando os vormes logo abaixo, esperando que se lembrem do treinamento. Eles aparecem momentos depois. Eu tiro minha armadura e a entrego para Bazda. “Vista essas peças. Vai ficar quente aqui.”

Ambrellin olha para mim. “Você espera que andemos de vorme para longe daqui? Sem proteções? Vamos derreter!”

“Não estamos longe da superfície. Cinco, dez segundos, no máximo.”

“Cinco segundos de lava derretida na cara.”

“Ou dez,” lembro eu. “Sozinhos nós não podíamos, mas se trabalharmos juntos... Ficando bem perto, conjurando magias de cura, e entrelaçando-as para formar algo maior do que a soma de suas partes, acho que vamos conseguir.”

“Eu acredito no Terrik,” diz Savaryn. “Acho que é um bom plano.”

“Eu concordo,” diz Kellim.

“Eu também!” Diz Bazda, usando o peitoral da minha armadura que praticamente a engole inteira.

“É um bom plano,” concorda Ambrellin.

Nós subimos em uma vorme e nos seguramos firmemente. Eu dou um tapinha carinhoso no dorso dela e falo com suavidade, na esperança de que todo o abuso que ela sofrera não tenha anulado por completo o seu treinamento. Eu ainda tenho algumas migalhas de carne seca no meu bolso. Jogo um deles na boca da fera. “Vamos lá, menina, vamos embora.”

Eu me inclino para a frente, com paciência como se treinasse um filhote, mesmo que eu tenha justamente pouco tempo. Ela se move para a frente, ganha um pouco de confiança, nela mesma e em mim. Ela vormeja pelo buraco da catacumba por onde caímos, e até chegarmos do outro lado da câmara ela já está a um passo estável. “Chegou a hora. Comecem seus feitiços,” aviso eu, e me retraio, direcionando a vorme para pular para o teto. Magias de cura perpassam pelos cinco, e os outros meditam com todas as forças enquanto eu a dirijo. O calor atinge meu rosto e queima, mas eu mantenho a firmeza e finalmente a cortina de lava se abre e a noite fresca refresca nossos ferimentos. Nunca fiquei tão contente em respirar o ar cheio de fuligem do Sindicato Orzhov.

Dois dos espíritos estão lá, nos esperando. Leva algum tempo para que Bazda entenda. “Mamãe? Papai?" Pergunta ela. A menina forte que eu achei ser incapaz de ternura irrompe em lágrimas. Depois que todas as dívidas foram pagas, sobrou um pouco de dinheiro. Eu o entrego para Bazda.”

“Aqui tem algo para vocês recomeçarem suas vidas,” digo eu.

“Obrigada,” diz Bazda. “Mas aquele homem... Ele não vai continuar a usar a máquina? Ele não vai criar uma guerra?”

“Não tão cedo,” diz Ambrellin. Ela devolve o artefato de Bazda para ela.

“Eu disse que o devolveria,” digo eu. “Eu sempre cumpro promessas.”

Nós quatro nos separamos da família de Bazda, nos arrastamos até a cooperativa de Ambrellin, mas ao ouvir gritos vindos do apartamento dos vizinhos de baixo, nós nos apressamos. Entramos no lar deles para encontrar minha pequena vorme enroscada na cama deles, babando o colchão todo. Parece que ela encontrou o caminho de casa, só errou um andar. Nós começamos a rir. Bom, menos os vizinhos.

“Que delícia,” digo eu, “todos nós juntos assim.” Eu não sei o que o futuro nos reserva, mas eu vou poder limpar meu nome e recuperar meu emprego, e se Savaryn e Kellim ainda quiserem partir... Eu sei que o futuro é cheio de possibilidades, e nossos laços nunca serão rompidos.


Guildas de Ravnica Arquivo das Histórias
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