O túnel despencava abaixo, mirando no coração de Nova Phyrexia. As paredes estreitas perpassavam rápidas demais para serem observadas, camuflando os horrores inomináveis e maravilhas espantadoras do plano transformado.

Elspeth agarrou-se ao carrinho, ciente de que um único solavanco poderia fazê-la tombar sozinha nas profundezas da hostil e asfixiante escuridão.

Arte por: Yeong-Hao Han

Pela primeira vez, ela desejou que estivesse pilotando com outros Planeswalkers, ao invés dos mirranianos. Alguém que a distraísse. Ao invés disso, havia apenas a descida ao escuro, e os elfos no controle, segurando tão firme quanto ela.

Havia pouco tempo para conversa entre a partida e o começo daquilo que em sua mente era uma queda livre. Os dois operadores estavam ansiosos para compartilhar o que sabiam sobre o plano avassalado com a pessoa dita ser sua possível salvadora. E como ela queria conquistar tal título! Eles eram tão estranhos para Elspeth quanto ela era para eles. Ela tinha vergonha de admitir para si mesma que estava grata por aquele desconhecimento. Era mais fácil para as pessoas enxergarem você como heroína se nunca tivessem visto você falhar.

Ela já falhara com Mirrodin uma vez, e este lugar arruinado era sua punição e pagamento por tal erro. Ela não podia ver o Multiverso sofrer do mesmo destino. Ela morreria para evitar isso, caso chegasse a tal ponto.

— Estamos passando pelo Labirinto do Caçador e pelo Centro Cirúrgico. — disse um deles. — Fique grata por isso. Estamos poupando-a das coisas que jamais deveria ver.

— O Labirinto do Caçador. . . ??

— Talvez você se lembre dele como o Emaranhado. Durante a grande transformação, Vorinclex transportou o pior dele para baixo da superfície, usando-o como semente de seu novo império. Aquele que respondeu parecia quase saudosista. Provavelmente havia nascido no Emaranhado, e devia se lembrar dele livre, vivo e belo, e pensava jamais poder vê-lo assim outra vez.

A queda livre começara logo em seguida, e os operadores ficaram ocupados demais para continuar a explicação da paisagem que ela não teria de ver. Elspeth fechou os olhos contra o vento célere — não havia nada ali além do leve brilho metálico do aparato de manobra no centro da vagoneta. A escuridão de Nova Phyrexia era onipresente, sem nem mesmo a magia gravitacional da lacuna para suavizar a descida deles — e agarrou-se com todas as forças.

E então, pouco a pouco, começaram a nivelar. Ela abriu os olhos, e, quase imediatamente, desejou que não o tivesse feito.

O céu, ou o que quer que fosse, era um mar de nuvens leprosas que se agitavam e mudavam sem cessar, assemelhando-se a uma podridão de dentro para fora, mesmo pairando no céu. A paisagem era dotada de piscinas de um líquido verde e brilhante, o qual ela reconheceu como necrogênio, que reluzia em um tom soturno. Mesmo antes de Phyrexia, isso já era mortal, capaz de transmutar desavisados em mortos-vivos. Agora, poderia fazer isso ou induzir phyresis, e ela não queria um nem outro.

Elspeth olhou para sua mão e tremeu. A luz do necrogênio a tornou pálida, como se estivesse apodrecendo. As expressões lívidas de seus companheiros eram análogas às suas. Aos olhos daquele lugar, eles já estavam mortos.

— Tudo apodrece aqui. — disse um dos operadores. Ele fixou sua atenção em pilotar a vagoneta até o fim da linha, onde os demais já aguardavam. — Se ficar respirando os vapores daqui por tempo demais, também apodrecerá.

— Não é tão ruim quanto o Centro Cirúrgico. — disse a outra, sua face mergulhada em preocupação. — Lá, se ficar perto demais das fontes, a phyresis pode iniciar só por ter respirado um borrifo. O vapor mata antes de você se transformar.

Elspeth destrancou os dedos da grade que vinha segurando e ali ficou, mexendo as mãos para aliviar a cãibra. — Isso é horrível.

— Isso é Nova Phyrexia. — disse o primeiro operador. — Muda o que pode, mata o que não pode, e converte as ruínas à sua própria imagem.

Eles ainda estavam desacelerando, agora quase parando. Os outros carrinhos não estavam muito longe, seus passageiros em vários estágios de preparar equipamento e desembarcar. A equipe de demolição de Koth estava testando o chão enegrecido entre as piscinas de necrogênio com longas estacas de metal, em busca do caminho que mais pudessem chamar de seguro para sair daquele pesadelo.

— Temos um túnel, não muito longe daqui, que deve nos levar direto à Basílica Alva. — disse Koth, de voz solene, mas não sombria.

Se, até agora, ainda não havia perdido as esperanças, Elspeth achava que ele jamais iria.

— Você faz parecer muito fácil. — disse Nahiri, descendo de seu carrinho, os calcanhares batendo no chão. Parecia impossível ela ter conseguido evitar o necrogênio, mas ela falava a língua do metal e da pedra; a esfera provavelmente lhe contava todos os seus segredos, até mesmo agora. Não havia por que se preocupar com Nahiri, que estava indo até Koth sem hesitar. — Mas não vai ser, vai?

— Não. — respondeu Koth. — Se formos pela rota mais direta, talvez consigamos evitar a maior parte das forças de Thrissik. Se não pudermos evitá-las, tentarão levá-los com vida, se puderem. Ele está construindo marcos tumulares para trazer seu Destruidor, e os magos mais poderosos são os melhores materiais de construção.

Nahiri ergueu uma sobrancelha. Kaya, que havia solvido o problema do necrogênio transformando a parte de baixo das pernas em translucidez púrpura, bufou. — Sim, sim, somos sempre os melhores alvos.

— Pelo menos a confusão deve nos dar alguma cobertura. Recebido com olhares vazios dos Planeswalkers, Koth deu um leve e medonho sorriso. — Sete thanes governam os Poços de Dross, mas nunca foram unidos. Quatro foram para o lado de Urabrask. Roxith, Geth, Vraan e Sheoldred estão emprestando forças para a rebelião contra a Phyrexia de Norn. Os outros três devem estar distraídos, caçando território e de olho em traições. Temos mais chance em nosso objetivo. Mas temos que ir agora mesmo.

— Se este é o momento em que podemos ir sem sermos vistos, temos que sair logo. — disse Kaito, saindo do carrinho. Tyvar estava logo atrás dele, girando seu pedaço de Vácuo Tremeluzente entre os dedos como uma moeda e sorrindo em ironia para Kaya.

— Meu amigo gosta de ser esquecido. — disse ele. — Um desejo incompreensível, mas admirável.

Elspeth pegou sua sacola e foi se juntar ao grupo. Eles eram o que restava da equipe de ataque: eram a única esperança que o Multiverso tinha de não sucumbir ao apocalipse phyrexiano. Eles precisavam vencer.

— Tome. — disse ela, abrindo o saco e removendo uma sequência de garrafas de vidro com Halo, doses individuais amarradas juntas com uma faixa de couro, suas rolhas bem emperradas. Isso vai nos proteger do necrogênio no ar por algum tempo.

Ela foi entregando as garrafas, esperando até que todos tivessem uma para destampar a sua própria e beber o conteúdo. Como sempre, o gosto era efervescente e limpo, cítrico e doce, mas não enjoativo. Ela limpou a boca e olhou em volta, observando os outros fazerem o mesmo.

Jace engoliu o resto do Halo e respirou de forma ríspida, a garrafa escorregando dos dedos logo antes dele mesmo cair de volta na vagoneta atrás dele. Os mirranianos ao redor dele exclamaram de medo e Kaya correu até ele, pegando seu pulso para senti-lo.

Após um instante, ela olhou para cima, atônita. — O pulso dele está descontrolado. — disse. — Elspeth o que você fez?

— Nada... a não ser que o necrogênio estivesse impedindo outra coisa de acontecer. Elspeth moveu-se rapidamente para o lado de Kaya. Jace estava começando a tremer, não em convulsão, mas evidente que sem controle de seu movimento. — Deixe-me vê-lo.

Melira acabara de dizer isso quando viu Jace. — Isso não é phyresis. — ela disse. — Não sei o que é isso.

— Halo não machuca pessoas. — disse Elspeth, afoita. Ela segurou Jace, e congelou, tremendo. — Ele está com dor. Muita dor. Está queimando ele vivo. Eu teria percebido se estivesse com uma dor assim enquanto estávamos mais acima. Isso é novo. Isso começou quando elecolapsou . ..

— Temos que sair daqui. — disse um dos operadores das vagonetas, olhando para Koth. — Não viemos preparados para ficar nos Poços de Dross por mais tempo do que o que levamos para descer. Sinto muito. Mesmo com o suco mágico da dama, temos que sair daqui.

— E faremos o mesmo. — disse Koth. — Ou mandamos o amigo de vocês de volta para cima com os outros ou carreguem-no, mas temos que ir.

— Posso carregá-lo. — disse Tyvar. — Precisamos dele para o plano dar certo.

— Mas ele não é o único que sabe operar o sílex. Nahiri fitou Kaya. — Ela também é treinada. Ambos podem fazê-lo.

— Sou a reserva. — disse Kaya. — Só assumo se ele estiver incapacitado.

— Ele me parece bem incapacitado. — disse Nahiri.

Jace arfou e sentou-se. Uma luz branco-azulada faiscava no ar ao redor dele, o movimento jogando Kaya para o lado. Ele se contorceu em descontrole, olhando para o nada, até saltar de dentro da vagoneta e pousar de pé, parecendo determinado a partir em meio à paisagem escura.

Tyvar o pegou pelo braço antes que ele pudesse entrar em uma das piscinas de necrogênio, fazendo-o parar. — Você nos assustou, amigo. — disse. — O que aconteceu?

Jace se virou para fitá-lo, parecendo não vê-lo totalmente. — O Halo limpou minha mente, e eu. . .ela está com dor. — ele disse. — Ela está me chamando. Tenho que ajudá-la. Tenho que ajudá-la agora mesmo! Vocês precisa me deixar ir!

Tyvar franziu o cenho, ainda segurando Jace. — Ela? Quem é "ela"?

— Vraska. — disse Jace, falando como se o nome fosse forçado a ser proferido, como se não houvesse mais nada que ele pudesse ter dito, como se fosse a última coisa do mundo que quisesse dizer. — Ela me trouxe até aqui, e está sozinha, e assustada. Eu — eu ouço seu sofrimento de qualquer lugar.

Os operadores da vagoneta voltaram aos controles, olhando para Koth à espera de permissão para partir. Ele assentiu, e começaram a dar impulsos — máquinas simples os levando à escuridão — para longe do brilho do necrogênico. Outra vez, Jace tentou livrar-se de Tyvar.

— Você precisa me soltar. — disse ele. — Preciso ir até ela. Ela precisa de mim, e não vai sobreviver se eu não ajudá-la.

— Temos uma missão. — Koth proferiu.

A cabeça de Jace deu um solavanco, e os olhos pareceram ter foco pela primeira vez. — Vraska precisa de mim. — disse ríspido, e respirou fundo, acalmando-se. — Vocês pode ir sem mim. Eu ajudarei ela e alcançaremos vocês juntos. Por favor.

— Uma força dividida não é força alguma. — disse Tyvar.

Jace olhou para ele com olhos arregalados, como se não pudesse acreditar que sua tentativa lógica não tivesse funcionado. Ele se contorceu mais forte desta vez, e livrou-se de Tyvar. Sem olhar para trás, começou a espreitar por entre a podridão obscura.

— Isso é imprudente. — murmurou Koth.

— Ele a ama. — disse Elspeth. — Ele não consegue ouvir mais nada.

— Não podemos deixá-lo ir. — disse Nahiri. Kaya e Kaito piscaram para ela. Kayla fez que sim. — Ele tem o sílex. Se perdermos aquilo, perdemos tudo. Podíamos nem ter vindo. Podíamos ter ficado em casa, preocupados com nossos próprios planos, e deixado os restos de Mirrodin queimarem. O grupo partiu atrás de Jace, abandonando a rota segura dos Poços de Dross. O plano, ainda que não esquecido, ruía sobre suas mãos, e seria despedaçado se não achassem uma forma de retomá-lo em breve.

Eles seguiram Jace, um grupo amontoado de Planeswalkers e mirranianos.

— Essa é uma ideia terrível. — sussurrou Kaito. — Tenho várias ideias terríveis, mas elas não costumam matar todos à minha volta. Mas Jace tem ideias especialmente ruins, pelo visto.

Ainda assim, ele andou com os outros, e nenhum deles olhou para trás.


Primeiro, parecia que a paisagem execrável e podre de necrogênio era deles. E então, figuras hostis começaram a aparecer — conchas de metal escurecido mal contendo tendões vermelhos crus e ossos expostos, membros saltando de cada superfície de seus corpos, e armas que pareciam cutelos grosseiros feitos para cortar exoesqueletos poderosos. Algumas eram pequenas, do tamanho dos Planeswalkers, enquanto outras eram muito maiores, enormes colossos de metal e vísceras.

A maioria espelhava os Poços de Dross, conchas negras e empoladas por conta do ambiente cáustico, enquanto outras eram vermelho puro, formas superaquecidas de metal cortando oponentes enquanto avançavam. A rebelião de Urabrask havia começado.

As forças phyrexianas fizeram o estômago de Elspeth embrulhar. Ela reconheceu os ecos e formas nas quais confiara durante a guerra de Mirrodin — os braços de um elfo viridiano e o robusto peitoral de um loxodonte. Outros aspectos de suas formas eram novos, tornando-os ainda mais perturbadores. Toda vez que ela pensava saber o que estava enxergando, encontrava outra coisa que causava estranheza. Doeu olhar muito de perto.

Até então, os phyrexianos pareciam concentrados na batalha uns contra os outros, seus pés fortes agitando a paisagem metálica e esparrinhando necrogênio nas piscinas. Foi só ao passar perto de uma das lutas que Elspeth entendeu o que estava ocorrendo. Os olhos dela se arregalaram, e se virou para ver Jace.

— Você está fazendo eles nos evitarem. — disse ela.

— Quando olham para nós, não veem absolutamente nada. — Não é um escudo. É uma mudança completa do ambiente deles. A tensão era evidente em sua voz. — Esse é o caminho mais rápido para chegar até Vraska. — Ela está com tanto medo; e está sozinha.

Uma estrutura vasta e horripilante surgiu entre as nuvens pútridas, tão escura e decadente quanto qualquer coisa ao redor de si, protegida pelas terríveis "asas" de uma caixa torácica grande demais para ter pertencido a algo vivo. Kaya fez um leve som de repugnância. Koth fez um som mais alto de temor. Kaito olhou para eles com as sobrancelhas erguidas.

— O Coliseu de Sheoldred. — disse Koth. — Ela faz eles lutarem lá por diversão.

— Eles? — indagou Kaito, inexpressivo.

— Phyrexianos. Campeões ou aqueles que a descontentaram; não importa. Eles entram e a maioria nunca mais sai. Às vezes, ela leva nosso povo para lá, quando são capturados vivos e considerados indignos das "dádivas" de Phyrexia. Koth balançou a cabeça, parecendo mais revoltado a cada instante. — Ninguém sai do coliseu vivo e sem mudar. Eu escapei. Ou quase. Parte de mim lutará lá até eu morrer.

— Vraska. — disse Jace, e começou a correr de novo, com Nahiri e Kaya logo atrás, Nahiri seguindo o sílex, Kaya seguindo Nahiri.

— Se essas ilusões andam com ele, as forças de Nova Phyrexia vão nos ver em breve. — disse Tyvar. Ele parecia nervoso, pela primeira vez. Em concordância velada, ele e os demais correram atrás de Jace. Os portões do coliseu estavam destrancados, tão estreita a passagem que o grupo teve que entrar em fila única. Jace foi primeiro, Nahiri e Kaya logo na sequência.

Os outros nem haviam entrado quando ouviram Nahiri xingando, bem como o som de metal se rasgando do chão. A litomante se preparava para a guerra. Eles trocaram olhares em passos rápidos, desembainhando suas armas conforme corriam.

Kaito segurou o braço de Elspeth antes que ela pudesse entrar. — Não podemos fazer isso. — disse ele. — Jace é nosso amigo, mas isso é tolice. Temos que recuperar o sílex e seguir caminho.

Elspeth olhou para ele da forma mais moderada que conseguiu. — De que adianta lutar se não podemos nem mesmo salvar os nossos? — indagou.

Como se vencido, ele a soltou.

Elspeth se virou e adentrou o Coliseu de Sheoldred.

O interior era vasto, como um recipiente eviscerado cercado por altas fileiras de assentos sem encosto, tão íngremes que era quase certo que um espectador cairia caso não tomasse cuidado. Um piso de metal esburacado estendia-se pelo centro, uma piscina de necrogênio borbulhante visível no meio e nas bordas. Era um poço de horrores.

E no recipiente, sangrando profusamente por uma dezena de ferimentos horríveis, estava Vraska. A górgona tinha uma mão apertada em seu peito, sangue escorrendo por entre os dedos, enquanto ela segurava uma parte essencial de si. As gavinhas serpentinas na cabeça jaziam imóveis, e um anel de phyrexianos chegou perto dela, pisando nos corpos petrificados de seus comparsas.

Aqueles não eram os únicos corpos no chão: cerca de uma dúzia de mirranianos fora dizimada antes de as coisas chegarem a esse ponto. Elspeth não pôde evitar de pensar, enquanto os via, que pelo menos morreram sem serem completados; foi limpo e rápido.

Jace estava indo direto até Vraska, confiando que suas ilusões o protegeriam. Os phyrexianos ainda não o viam, mas aquilo não duraria para sempre. Passar pelo campo de batalha como fantasmas era uma coisa. Passar entre um predador e sua presa era completamente diferente. Kaito ergueu sua espada, e Elspeth fez mesmo. Tyvar puxou o hexágono de metal preto de seu bolso e o girou entre os dedos, a pele ondulando até ter uma nova composição, uma natureza inata emprestada.

Koth suspirou, os ombros caindo. — Então é isso. — disse ele, antes dar um grito severo. —Por Mirrodin! Ele avançou, a armadura rochosa passando a um branco quente quando a ativou. Ele pegou um pique de um dos caídos e correu, o calor se espalhando ao longo da haste metálica; e então, ele brandia um bastão superaquecido.

Os outros estavam só um passo atrás. As lâminas de Nahiri giraram em uma canção rodopiante de morte ao seu redor, cortando dois dos phyrexianos restantes antes que pudessem terminar de se transformarem. Kaya se moveu para avançar, e Nahiri deu um giro até ela com olhos fumegantes.

— Não. — vociferou. — Se aquele tolo quer se matar, temos que contar com você. Sem vocês dois, será o nosso fim. Fique fora disso.

Kaya nunca tivera tanto medo de Nahiri antes. Ela encarou-a nos olhos e fez sua pele arrepiar com uma morbidade tomando seu ser. Ela deu um passo para trás e viu os demais enfrentarem os phyrexianos.

Os inimigos deram as costas à Vraska, distraídos pelos Planeswalkers, mas ainda sem ver Jace, que continuou sua corrida obstinada até a górgona. Kaito ergueu sua espada para bloquear uma das criaturas blindadas enquanto Himono apitava em aviso, e cambaleou com a força do impacto. De repente, Tyvar estava ali, entrepondo-se a Kaito e o ataque seguinte da espada da criatura, grunhindo ao chocá-la contra suas próprias costas de placas metálicas.

A arma mal arranhou a superfície. Seu sorriso era selvagem ao girar sua arma na direção da besta. Atrás dele, Kaito inclinou a cabeça. A camada de óleo phyrexiano reluzente que a explosão causou na pele transformada de Tyvar descascou e se enrolou como uma bola, pairando no ar sobre a cabeça de Tyvar.

Koth espancou os phyrexianos com seus pulsos superaquecidos, mirando nas fissuras de suas armaduras, articulações e espaços abertos, esquivando das armas. Um dos phyrexianos — algo terrível, que se assemelhava a uma lagosta mecânica, feita da fundição de mais de uma dezena de corpos humanoides menores em uma única forma — rugiu e tentou perfurá-lo com uma garra semicrustácea. Koth a pegou antes que pudesse enfiar a ponta em sua armadura, esforçando-se para deixá-la longe de si.

Um ataque da espada de Elspeth decepou a garra, com uma luz dourada radiante brilhando do impacto. Koth sorriu para ela, que continuava a desferir ataques, decepando então a besta. Então, ele deu a volta e arremessou a garra no próximo combatente em linha, transpassando o objeto pela sua garganta. O lutador piscou uma vez, quase comicamente surpreso, e caiu, sem vida e imóvel.

A bola de óleo, que Kaito havia criado, acelerou de repente, atirando-se contra os olhos do phyrexiano mais próximo. A grande figura cambaleou para trás, cega por alguns instantes, e aquela era a abertura que Tyvar precisava para matá-la. Ele chutou o corpo enquanto o mesmo caía, virando-se para Kaito.

— Boa mira!

— Eu trapaceio. — disse Kaito, dando de ombros.

Em meio a tudo isso, Nahiri avançou em uma nuvem de metal rodopiante, uma espantosa causadora de destruição sem fim. Os phyrexianos restantes jamais tiveram chance contra ela, muito menos contra a força dos Planeswalkers reunidos. O último deles caiu, enquanto as facas dela voltavam à posição neutra no ar ao seu redor, e Jace finalmente alcançou Vraska, que deu um passo para trás, para longe dele, a mão livre erguida para afastá-lo.

Ele parou, fitando-a com olhos espantados, que ainda tinham um leve brilho azul do esforço de se manter oculto de Phyrexia. — Vraska? — disse ele, não se preocupando em manter a dor afastada de sua voz. — Vraska, temos Elspeth conosco. Temos Halo. Temos Melira. Ela pode curar phyresis. Podemos curar suas feridas. Não é tão ruim quanto vocêpensa . ..

— Não. — disse Vraska; sua voz, geralmente firme, estava vazia e esganiçada. — Não, Jace, não. Eu sinto muito por tê-lo chamado. Não era minha intenção. Estamos ligados, e você... não deveria ter ouvido aquilo.

Jace piscou, dando um passo na direção dela. — O quê? Não. Chamar-me foi a coisa certa a ser feita, e está segura agora; estamos seguros, nós salvamos você—

Não! Toda a força esvaída de Vraska retornou em prol de uma única e violenta sílaba. Ela vacilou, olhando para ele, de alguma forma menor do que jamais fora; de alguma forma. . .reduzida. — Você não me salvou, Jace. Você não pode. Chegou tarde demais. Está dentro de mim. Phyrexia é um veneno, o qual não se pode expelir. É tarde demais.

Jace a observou em franco horror. Melira mordeu o lábio.

— Posso sentir daqui. — disse ela, contida. — O fato de ela ainda manter tanto de si. . .ela deve ter uma vontade capaz de mover montanhas. Se não estivesse tão ferida, talvez; mas da forma queestá . ..

Nahiri deu um passo à frente, facas no encalço. — Ainda podemos dar a ela um fim limpo. — disse ela, com voz ausente de qualquer sentimento. — Podemos deixá-la morrer como você mesma.

— Se tocar nela, eu mato você. — praguejou Jace, tirando os olhos de Vraska tempo o bastante para lançar um olhar à Nahiri.

Nahiri parou, olhando para ele sem compaixão. Jace voltou até Vraska.

— Por favor. — disse ele. — Podemos pelo menos tentar. Podemos. . .temos que fazer algo.

— Vocês têm que correr. — disse Vraska. — Todos vocês. Corram agora, enquanto há chance disso correr como havíamos planejado. Sabíamos que poderia haver perdas. Sabíamos que haveria perdas. Corram. Corra, Jace Beleren, e não olha para trás. Por favor. Eu te amo. Não deixe meu amor por você ser o motivo de sua morte. Vá. Salve o Multiverso, e viva. Isso me faria feliz.

— Não vou deixá-la.

— Mas nós vamos. — disse Kaito. — Jace, você pode ficar com Vraska, se é o que deseja. Você pode fazer suas próprias escolhas. Mas não pode fazê-las com o sílex.

Nahiri estalou os dedos. Suas facas avançaram, rasgando as tiras da sacola de Jace antes que ele pudesse reagir, e Kaya a pegou antes de atingir o chão, abraçando-a no peito e se afastando.

— Você vai desistir dela? Jace olhou, sem esperança, de rosto em rosto; pessoas que conhecia, com as quais lutara por anos, pessoas qua mal reconhecia. — Elspeth, você veio aqui para ser um farol de esperança—

— Para todos. — interviu Elspeth. — Phyrexia não deixa as pessoas irem.

— Jace, por favor. — disse Vraska. — É o meu fim. Deixe-me ir. Ela parou, com um breve sorriso viajando por seus lábios. — Nunca esperei morrer de outra forma que não sozinha.

— Você não vai morrer sozinha. — exclamou Jace, voltando-se a ela. — Você não vai morrer.

— Eu vou. — disse Vraska.

Nenhum dos dois parecia perceber a saída dos outros Planeswalkers do coliseu, deixando-os para trás. Kaya segurava o sílex com firmeza. Eles estavam perdidos em seu próprio mundo.

E então, Jace se aproximou, e desse vez, Vraska não recuou, nem mesmo quando ele segurou suas mãos ensanguentadas.

— Feche seus olhos. — ele disse.

Vraska o fez.


O grupo se espremeu pela passagem estreita em fila única, chegando à paisagem escura e apodrecida fora do coliseu, deixando Vraska e Jace para trás.

Eles entraram direto no meio de uma guerra.

A luta dentro do coliseu foi tudo, menos silenciosa. Eles mataram, gritaram e berraram uns com os outros sem nem pensar no fato de que poderiam ser ouvidos. Com Jace ainda lá dentro, não havia mais nada os camuflando dos combatentes em campo, cuja maioria, não mais dispersa, reunira-se do lado de fora do coliseu. Eles se organizaram em fileiras de criaturas que iam de tamanho humano com várias pernas até constructos enormes de tendões e ossos.

Arte por: Lie Setiawan

Os Planeswalkers e mirranianos se encararam. Estavam exaustos demais por conta da luta para salvar Vraska. Partes da pele começavam a se mostrar por baixo da carapaça de metal de Tyvar, e as facas de Nahiri já se moviam mais devagar.

Não podiam voltar, ou dariam de cara com um caminho sem saída. Não podiam avançar sem eliminar os inimigos.

Elspeth pegou a mão de Koth, apertando seus dedos e buscando conforto no fato de que fizeram todo o possível. Eles poderiam falhar, poderiam — mas tentaram.

— Por Mirrodin? — ela perguntou, resoluta a lutar.

O grandalhão assentiu. — Por Mirrodin! — ele rugiu, e partiram em disparada, uma onda destinada a fazer a terra tremer, em uma luta até o fim.


— Pode abrir os olhos agora. — disse Jace.

Vraska piscou e olhou em volta. O coliseu havia sumido, substituído por uma avenida ravnicana ensolarada. O céu, perfeito e sem nuvens, raramente assim ficava. Ela olhou para Jace e piscou de novo. Todos os vestígios da batalha haviam sumido, junto com as vestes de batalha. Ao invés disso, ele vestia um traje de passeio, cabelos quase que domados para se comportarem, e ofereceu-lhe a mão.

— Posso não ser capaz de salvá-la de Phyrexia, mas posso passar mais um dia com você. — disse ele. — Deixe-me oferecer isso.

— Jace. — disse ela, a voz transformando-se em riso quando ele pegou sua mão e a puxou para mais perto, e tudo estava maravilhoso, e não havia nada de errado.

Ela quase podia fingir que acreditava na ilusão, tal era sua imersão. Eles andaram pelas ruas de Ravnica, visitando salões de guildas e grandes museus, e ela deixou a cabeça repousar em seu ombro, perdida em seu sonho do futuro que podiam ter tido juntos, se o Multiverso tivesse sido um pouco mais gentil.

Ela agarrou firme sua mão, na versão do mundo perfeito dele — o mundo perfeito deles. — Obrigada. — sussurrou. — É maravilhoso.

— Eu te amo. — disse ele.

Vraska fechou o rosto. — Você precisa ir agora. Do contrário, quando Phyrexia tomar minha mente, temo que vou feri-lo. Por favor. Por aquilo que poderíamos ter sido. Faça isso por mim.

— Não. Não vou deixá-la. Posso salvar sua mente. Aqui, pelo menos. Podemos ficar juntos, um lugar onde Phyrexia não pode chegar... — e o céu começou a escurecer. — Oh, Jace. — disse ela, a voz passando a um suspiro ao proferir seu nome. — Não se sinta mal. Você sempre tem que ser o herói que acha a resposta, mas, às vezes, não há uma. Caso você tivesse sido só um pouco mais rápido. . ..

Se Elspeth e Kaya tivessem descido da superfície mais rápido — se ele não tivesse escolhido esperá-las —, se ele não tivesse deixado Nahiri iniciar uma discussão com ele no acampamento mirraniano.

Se.

— Não é tarde demais. — ele disse.

— É, sim. Ela tocou o lado de seu rosto. — Está em você também. Você já está perdido.

— O quê?

— Aqui, nos Poços de Dross, o óleo que espalha a infecção impregna o ar acima das piscinas de necrogênio. Você devia ter corrido, meu bravo e tolo garoto. Ela balançou a cabeça. — Você está tão arruinado quanto eu.

— Eu tomei Halo antes de encontrá-la. Eu tenho tempo. Nós temos tempo.

Jace suspirou, chegando mais perto. Vraska se inclinou para ir ao seu encontro, e os lábios deles se tocaram — um último beijo dado às sombras do fim.

Ele sentiu o fim dos lábios lábios dela, e algo fincou a palma de sua mão direita, queimando como gelo, e a ilusão, que ele tão cauteloso criara, desmoronou ao redor deles, dando lugar ao lúgubre céu phyrexiano. Jace tentou se afastar. Vraska o segurou rápido, as mãos ainda unidas, e sorriu, mais dócil que nunca.

— Pela glória de Phyrexia. — ela murmurou.

Ela tinha uma cauda longa e curvada, como a de um escorpião, denteada na ponta. Foi aquilo que o atingira, inserindo uma dose grande de óleo brilhante. Ela riu, e os olhos reluziram ao fitá-lo pela primeira vez. Jace levantou seu braço em ardência para cobrir o rosto, deu a volta e correu da phyrexiana, que o conhecia melhor que ninguém.

Sua gargalhada o seguiu, e ele trombou direto com a lateral metálica de Tyvar. O elfo estava recuando pela entrada com os demais, fugindo de uma ameaça de ataque das forças phyrexianas.

Vraska ainda ria. Eles iam morrer aqui. Todos.

Nahiri assobiou entre os dentes ao desferir um golpe contra um gigante bruto. — É nosso fim! — ela gritou. A bandagem em seu pescoço se soltou em algum momento da luta, balançando conforme ela se movia. Ela a pegou e puxou, revelando uma estranha e ossuda protuberância na coluna. Não parecia se importar com quem visse ao ficar de costas para ver os demais.

— Não há como vencer. — disse ela. — A missão só vai para frente se nós formos. Então você vai em frente. Segure-se em algo.

A magia dela se ergueu como uma maré ardente. Ela a encontrou profunda o bastante para fazer o ar dançar como uma névoa de calor de ondulações visíveis. O poder de Nahiri parecia incansável, implacável. Uma a uma, as facas que havia, de forma meticulosa, evocado da substância da camada, caíram. A espada em sua mão queimava mais forte. As proximidades do coliseu começaram a quebrar e ruir, incapazes de resistir ao seu chamado inexorável.

A protuberância ossuda em sua coluna crescia, como se extrair tal poder da própria Phyrexia acelerasse uma transformação terrível. A pele dela começou a rachar, revelando veias vermelhas, ardentes e profundas no lugar do sangue.

Ela encontrou os olhos de Jace do outro lado do campo de batalha desolado, seus próprios olhos agora inteiramente pretos como carvões extintos. — Não deixe isso ser em vão. — disse ela. — Termine o serviço.

Ela golpeou com a espada, e, naquele instante, era uma figura lendária; naquele instante, ela poderia ter dilacerado o plano. E então, com uma vasta e terrível destruição, ela fez exatamente isso, e tudo caiu em escuridão.


A poeira cobriu o ar, escurecida com necrogênio e brilhante com incrível esplendor. Pouco a pouco, foi se desfazendo.

Elspeth sentou-se, tossindo, e empurrou um grande destroço para longe do corpo e foi se arrastando de joelhos e mãos no chão à procura dos demais. O impacto do corpo dela contra o chão de porcelana esmagou sua sacola, e ela teve que conter o ímpeto de chorar ao ver o precioso Halo restante sendo derramado no chão e se dissipando como uma névoa em arco-íris.

Não que ele os tivesse ajudado muito até então. Estavam perdendo. Eles iam morrer aqui — se tivessem sorte. Sem sorte, iriam se tornar novas ferramentas terríveis do arsenal de Phyrexia e levar a destruição pelos planos.

Não. Não, ela não podia pensar assim. Ela se levantou olhando ao redor e ficou aliviada por ver Koth se erguendo dos destroços. Ele olhou para cima, de maxilar entreaberto. — Que completa idiota. — suspirou.

— O quê? — perguntou Elspeth.

Ele apontou. — Olhe.

Ela olhou para cima. Havia um grande vão no céu prateado, escuro e afiado, como se alguém tivesse cortado caminho ali.

— Ela derrubou o coliseu inteiro na Basílica Alva. — disse ele. — Incrível.

Os outros estavam se levantando dos destroços. Tyvar ajudou Kaito, Kaya auxiliou Jace. Elspeth ficou aliviada por ver que o saco com o sílex estava em melhores condições que a sua própria. Ele parecia intacto.

Nahiri estava desaparecida.

Acima deles, phyrexianos começaram a sair do buraco, quase imediatamente iniciando a batalha uns contra os outros. Eles não caíram; seguraram-se à superfície prateada do céu, ignorando a gravidade em favor da carnificina. Mais phyrexianos apareceram entre as paredes, encouraçados em branco-prateado, marcando-os como habitantes da Basílica Alva.

Elspeth virou-se e arquejou. Os outros seguiram seu olhar. Ali, brilhante contra o horizonte artificial, estava Atraxa, a forma brilhante de asas largas, lutando contra os invasores obscuros no domínio de sua senhora.

— Precisamos ir. — disse Koth. — Esta batalha manterá as forças de Elesh Norn distraídas por algum tempo, mas não para sempre.

— E eu não tenho para sempre. — disse Jace. Ele ergueu o braço, com bolhas e queimado do veneno de Vraska. A pele se partia em fissuras, e havia um brilho lustroso nada semelhante a sangue. — O Halo em meu corpo vai desacelerá-la, mas não pará-la.

— Melira. — disse Elspeth.

A pequena mirraniana assentiu. — Ele ficaria incapacitado, e nunca conseguiríamos levá-lo à superfície. — disse ela. — Não posso fazer isso aqui.

Jace olhou para ela sem surpresa alguma. — Kaya, devolva-me o sílex. Não vou sobreviver dessa forma, então melhor que eu seja eu a acionar a explosão.

— Se acha que isso é um bom argumento, você perdeu a cabeça. — disse Kaya, protegendo a sacola.

— Podemos discutir enquanto andamos. — disse Koth. — Estamos próximos ao Altar. Sua amiga litomante nos levou a nosso objetivo, e não devíamos deixar seu sacrifício ser em vão.

— Não posso acreditar que viverei em um mundo em que Nahiri me salvou. — disse Jace. Ele olhou para seu braço, sua boca cerrada. — Mas, como disse, acho que não precisarei.

Eles começaram a andar, abrindo caminho entre os entulhos, em direção ao altar de Norn.

Jace continuou a sussurrar para Kaya, tentando convencê-la a lhe entregar a sacola. Até que, enfim, com expressão de desgosto, ela a atirou nos braços dele, o corpo piscando em roxo ao transpassar os destroços maiores. Jace descansou o saco em sua cintura, nem contente nem descontente; a perda de Vraska — e de seu próprio futuro de uma vez só — quebrou algo dentro dele, e seu olhar de desespero era como um golpe ao coração de Elspeth. Ela não podia encará-lo por muito tempo.

Eles perderam dois dos seus — três, se incluísse Jace à lista —, e todo o Halo. Estavam presos no coração de Nova Phyrexia, sem caminho claro para casa.

Quantas coisas ainda lhes restavam perder?

Sob o céu ardente da Basílica Alva, e a luz corrompida de Atraxa, eles prosseguiram.