Conto anterior: Os Gêmeos


Naiva se agachou em uma rocha arredondada, olhando para trás na direção das montanhas. Seu grupo de caçada finalmente alcançara um planalto ontem, após dias de viagem pela paisagem rústica e traiçoeira. Quando Naiva era uma garotinha, a Avó a trouxera com Baishya até este planalto. Na época — há tantos anos atrás — as montanhas eram cobertas de neve espessa, e geleiras enormes. Agora, a cobertura da neve era aos pedaços, com rocha nua aparecendo; a avalanche que quase matara a ela e a Baishya no pico do Gelo Eterno foi uma de muitas que rasgaram neve e gelo dos picos outrora congelados. O mundo estava mudando. Se você não mudar com ele, ele te varre embora.

Ela perscrutou os céus, procurando sinais do jovem da ninhada Atarka que vinha seguindo-as por dias, mas ele desaparecera. Quando ela se virou para olhar para o planalto, ela prendeu a respiração. Ao longe, um dragão longilíneo arrebatou os céus e mergulhou, para depois subir novamente com uma graça sinuosa que nenhum pássaro saberia imitar.

Ela olhou para uma reentrância na rocha onde os outros caçadores enrolavam as peles do abrigo que os aquecera na noite passada.

“Bai, vem ver.”

Sua irmã gêmea subiu ao lado dela, apertando os olhos contra o sol nascente. “Não é um dos jovens da ninhada de Atarka. Longo e esguio demais.”

“Se não for, não deveria estar caçando em território Atarka. Por que todos estão demorando tanto?” Ela deu mais uma olhadela para onde os caçadores preparavam suas armas e bagagem para a marcha do dia. Todos usavam casacos de couro pesado, a não ser o mais alto deles — o orc nascido Kolaghan chamado Fec, com sua crista de cabelos pretos e rígidos. Diferente dos demais, ele não usava nada sobre o torso, apenas um saiote pesado de tiras de couro trançado. Um par de espadas estava embainhado e cruzado em suas costas sarapintadas, e ele carregava um pesado cajado de caminhada em sua mão esquerda. “Provavelmente aquele orc é quem está nos segurando. Não vejo por que ele tem que estar aqui conosco.”

“Nossa Avó tem seus motivos para tudo o que ela faz. Agora, silêncio. Lá vem ela.”

Yasova escalou até elas, se apoiando em um só joelho ao lado das meninas. O planalto se espalhava à frente delas, tão amplo e desnudo que dava a impressão da pele da terra realmente não ter roupas para protegê-la. Uma linha desgrenhada de tocos de árvores marcava o curso de um riacho que serpenteava pelo planalto. O restante da paisagem endurecida não era nada além de áreas gramadas, côncavos encharcados, poças de água gelada do derretimento da neve, e pedaços de rocha nua como esta, acima da grama em meio a um amontoado de pedregulhos. O vento não dava trégua, ondulando pela grama e puxando mechas soltas dos cabelos de Naiva.

“Você vê o dragão?” Naiva apontou para o leste.

“É claro que vejo.” A Avó fez sombra sobre o cenho para cortar o brilho ofuscante. “É um dragão de Ojutai. Curioso encontrar um aqui no território de Atarka, e nunca é bom quando coisas curiosas acontecem.”

“Pode ter acabado aqui por acidente.”

“Um jovem da ninhada Ojutai? Não. São inteligentes demais para fazer qualquer coisa por acidente.”

“Dragões podem ser espertos e não só famintos?”

“Você não prestou atenção às lições de história da nossa Avó?” Baishya acotovelou sua irmã gêmea nas costelas, apesar do impacto ter sido quase todo absorvido pela pesada túnica de couro de Naiva e a força nem a movera. “Ojutai é um grande estudioso. Todos seus jovens da ninhada são estudiosos menores.”

“Estudiosos do folclore de dragões, não de humanos,” disse a Avó, apertando os lábios em desaprovação. “Foi ele quem começou o expurgo. Os outros soberanos dragões o seguiram.”

“O expurgo?” Naiva se arrependeu de fazer a pergunta no mesmo momento em que Baishya revirava os olhos.

“Você escuta com atenção, Nai?”

“Ninguém na nossa idade atira uma lança ou uma flecha com maior precisão do que eu. O que me importam histórias velhas?”

“Chega.” A Avó se ergueu com alguma dureza, o que preocupou Naiva; ela estava acostumada a ver sua avó como alguém eternamente forte e capaz. Mas quando seus olhos se encontraram, nem um fio de fraqueza aparecia em seu olhar endurecido. “Teremos de fazer a volta e ir ao longo do curso d’água, sob as sombras das árvores. Quero chegar no túmulo de Ugin sem brigar com aquele dragão.”

Ela se virou para trás, olhando para a serra oeste do Qal Sisma.

“Você acha que aquele jovem da ninhada Atarka ainda está nos seguindo?” Indagou Naiva. “Não o vejo desde ontem.”

“Nem eu,” disse a Avó. “Não gosto disso, dele ter desaparecido. Talvez ele tenha se entediado. Talvez esteja nos perseguindo por motivos que se passam por pensamentos em sua mente pequena. Alguns dos jovens da ninhada Atarka têm alguma astúcia, o que os deixa especialmente perigosos. Meninas, vocês caminham comigo no centro da nossa fila.”

Baishya assentiu com um sorriso, pois ela amava estar ao lado da Avó mais do que qualquer outra coisa, mas a raiva de Naiva fulgurou.

“Você disse que eu poderia ser batedora quando chegássemos no planalto!”

“Isso foi antes do jovem da ninhada Ojutai. Venham comigo.”

Não havia sentido em discutir com a Avó.

Mas Naiva espumava de raiva enquanto saíram, e espumava enquanto caminhavam, formando palavras em seus lábios sem dar-lhes fôlego que as tornassem sons. De vez em quando, sua irmã gêmea a lançava um olhar de lado e balançava as sobrancelhas, brincando com ela, até que o humor de Naiva começou a amainar com as provocações familiares. A difícil marcha matinal à sombra da vegetação emaranhada ao longo das curvas do riacho não foi agradável - não que ela fosse admitir incômodo com o zumbido constante de insetos, os puxões de espinheiros e as urtigas ardentes. Qualquer caçador que valesse o sal que come não comentava sobre esses desconfortos mundanos. Os outros caminhavam com um propósito sóbrio enquanto tentavam estapear os insetos que os mordiam.

Logo antes do meio-dia, eles chegaram na curva de uma lagoa marginal profunda que havia se formado com a corrente principal. A Avó ergueu uma das mãos. “Fazemos uma pausa aqui, e pegamos peixe para nossa ceia. Rakhan e Sorya, fiquem de guarda.”

Naiva caminhou até a beira da linha das árvores, usando as folhas como cobertura, e espiou os céus. Uma grande ave de rapina deslizava ao longe, talvez um gavião ou águia. Uma revoada de tentilhões de cauda-longa patrulhava em busca de insetos pela beirada da vegetação densa ao longo do riacho. Depois de um tempo, a Avó veio até o lado dela, com Baishya logo atrás.

“Não há sinal do dragão Ojutai,” disse Naiva. “Talvez tenha voado de volta para seu próprio território.”

“Talvez.” A Avó a estudou até que Naiva começou a trocar o apoio do corpo, temendo estar prestes a receber um pito, quando ela fora a primeira a ter visto o dragão. “Naiva, você fez bem. Protegeu sua irmã gêmea. Matou os goblins e pensou à frente, trazendo-os até o acampamento. E claro, você mantém o passo sem reclamar. Eu espero isso de você.”

Ela fez bem!

A Avó gesticulou na direção do terreno aberto. “Você vê aquele círculo de rochas lá?”

A alguma distância do riacho, em meio à grama alta, uma protuberância de rocha se erguia à altura de uma pessoa acima do chão. A rocha estava cercada por vários pedregulhos, como se tivesse sido usada como um fogo de chão gigantesco. Um par de abutres estava empoleirado sobre um deles. Eles olhavam para dentro do círculo como necrófagos fazem, curiosos com algo que poderia morrer logo, mas ainda não morrera.

“Quero que você suba o afloramento rochoso e veja de cima, já que não temos uma visão boa daqui. Se os abutres não têm medo, não precisamos ter. Aproxime-se com cautela, de qualquer modo.”

“É claro!”

“Baishya pode ir com você.”

“Eu pensei que iria pescar com você, Vovó,” protestou Baishya.

“Você precisa praticar. Se Atarka suspeitar que você é sussurrante, ela come você. Vão.”

Naiva estava afoita e queria ir logo. Ela deixou suas coisas com os outros e, levando somente sua lança e seu facão, ela se apressou para dentro da grama alta. Apesar da grama ser alta o suficiente para escondê-la, ela se mexia junto com seus movimentos - um estorvo com o qual ela nunca tivera de lidar nas montanhas, onde a grama nunca crescia tanto assim.

Floresta | Ilustração: Titus Lunter

Atrás dela, Baishya disse, resfolegante: “Espere.”

Perturbados pelo ruído e pelo movimento, os abutres se lançaram para o ar.

“Shhh. Quieta.” Naiva foi mais devagar até chegar nos pedregulhos de fora do círculo. Ela parou de costas para a curva irregular do pedregulho mais próximo, e se esgueirou em torno dele para espiar para dentro do centro protegido.

A ponta de um cajado passou por sua face como um chicote, quase a atingindo quando ela se retraiu. Ela girou sua lança para a frente e com um círculo rápido ela bateu na ponta do cajado, lançando-o para trás com dureza. A pessoa que o segurava cambaleou, bloqueando o próximo ataque dela sobre o cajado. Ela abaixou sua lança e sob a ponta do cajado ela estocou, e o estranho parou o golpe ao girar seu cajado para baixo. Mas o esforço tirou-lhe o equilíbrio. Ele cambaleou para trás, saindo do alcance dela. Ela saltou para a frente, tentando lançá-lo ao chão, mas ao invés disso ela parou, encarando-o.

Um jovem a olhava, resfolegando pesadamente enquanto se apoiava no cajado. O ombro direito de suas vestes estavam pegajosos com sangue novo. Ele manchara seu pescoço e salpicara seu queixo.

Ele tremia de dor, era uma morte fácil, e ele merecia ser morto por invadir o território Atarka. Ainda assim ela hesitava enquanto ele agarrava o cajado com mais força para se manter de pé, como qualquer guerreiro faria.

Em uma voz rouca, ele disse: “Você é do clã Temur. Estou procurando por Yasova Garra de Dragão.”

Como se dizer isso lhe drenasse o que restava de suas forças, ele tombou inconsciente no chão.

Baishya veio até o lado dela, encarando-o. “Quem é ele?”

“Chame a Avó.”

Baishya inspirou rapidamente como se desgostasse da curteza do comando de sua irmã, sacudiu-se e saiu apressada.

Naiva apertou a ponta de sua lança contra o lado do pescoço dele. Ela esperou, como espera um caçador. No silêncio, ela teve tempo de examiná-lo com mais atenção. Ele tinha a cabeça raspada e vestia calças leves, com uma túnica cinza-clara amarrada na cintura com uma faixa e um cinto que tinha uma fivela circular dourada linda, decorada com filetes feitos de pequeninas correntes de prata. Um movimento lampejou em sua visão periférica quando os dois abutres se acomodaram na altura do afloramento que ela queria ter escalado.

“Vocês só podem ficar com ele se a Avó decidir que não vale a pena salvá-lo,” disse ela às aves, mas seu olhar acabou pairando sobre os olhos fechados, lábios entreabertos, e rosto magro dele. Ele não parecia nada com as pessoas com quem ela crescera; ele parecia misterioso e intrigante.

Ele se mexeu, grunhindo, e ela se preparou caso ele se levantasse lutando - mas o queixo dele desceu novamente e ele ficou imóvel. Ela deu um passo para trás quando Baishya reapareceu com o grande orc logo atrás. Fec analisou a clareira protegida dentro das rochas antes de assobiar um sinal de “tudo limpo!”

Somente então a Avó adentrou o círculo de rochas. Ela caminhou em torno do homem inconsciente, examinando-o de cada ângulo, e então curvou-se para remover o cajado da mão dele.

“Ele disse que está procurando por Yasova Garra de Dragão,” disse Naiva.

“Igual à minha visão,” disse Baishya, afoita.

“Você viu este homem?” Naiva não queria que Baishya tivesse visto ele primeiro.

“Não, não ele. Não quero saber dele. Ouvi essas palavras. Lembra?”

Talvez as vozes delas o acordaram, ou talvez ele esteve lutando para recuperar a consciência esse tempo todo. Suas pálpebras se abriram trêmulas. Até mesmo aquele movimento leve incomodou seu ferimento. Com um sibilo de dor ele acordou, abrindo os olhos. Piscando, o olhar dele passava de uma garota para a outra, e ele apertou os olhos confuso.

“Eu bati minha cabeça feio assim?” Sussurrou ele. “Minha vista mostra duas. É dito que sussurrantes Temur têm o poder de criar uma duplicata de si mesmas, feita de gelo. Seria uma o espectro mágico da outra?”

A mão da avó apertou a lança que ela carregava: uma lança comum, com ponta de obsidiana - não a lança com garra de dragão que outrora anunciava sua posição como regente de todo o povo Temur. “Você está sendo caçado por um dos jovens da ninhada Ojutai, não é?”

“Estou.”

“Eu devia matar você e entregar você ao seu Soberano Dragão. Sua presença põe o meu povo em risco.”

“Você não pode matá-lo,” exclamou Naiva. “Ele veio encontrar você! Se não curá-lo, ele vai morrer.”

“Todos nós morremos, mais cedo ou mais tarde,” respondeu a Avó no tom mais enlouquecedoramente calmo. “Isto pode ser uma armadilha de Ojutai para me encontrar.”

“Então você é Yasova, guardiã do passado e agora cuidadora do não-escrito.”

“O que isso importa para você?”

“Há três meses atrás, meu mestre teve um sonho. Quando ele acordou, ele me disse que o meu destino era fazer uma longa jornada. Ele disse que era chegada a hora de compartilhar nossos segredos.”

“Muitas pessoas dizem ter segredos, mas poucos deles valem ser compartilhados,” disse a Avó.

Ele deu vários outros suspiros trêmulos, juntando forças para proferir mais palavras. “Ojutai destruiu os registros que Shu Yun preservara por tantas gerações... Ele quer destruir nossa memória do passado, e de nossos ancestrais, para que o nosso povo saiba apenas o que os Soberanos Dragões queiram que nós saibamos. Mas a história que o Dragão Espírito contou aos primeiros xamãs sobrevivera porque não estava apenas escrita. Ela também foi passada de mestre a discípulo, memorizada e entregue às próximas gerações.”

O cenho da Avó se enrugou. Um bruxuleio despertou nos olhos dela, lampejando empolgação, um entusiasmo de medo e esperança. “O Dragão Espírito falou com seus xamãs?”

“Sim, e eu sei—” Ele parou de falar, tossindo. Gotas vermelhas pintaram seu queixo, e a respiração dele ficou mais partida ainda enquanto ele lutava para se manter acordado.

“Nunca vamos saber se você não curá-lo,” gritou Naiva.

“Nai está certa,” concordou Baishya. “Deixe que ele prove a verdade de suas palavras.”

A Avó franziu o cenho. “Fec? Algum sinal do jovem da ninhada Ojutai?”

O orc se agachou sobre uma das rochas menores, apesar de Naiva não conseguir imaginar como ele teria conseguido subir com a perna ruim. “O céu está vazio. Para mim, parece um mau agouro.”

A Avó se ajoelhou ao lado do jovem. “Qual é o seu nome?”

“Eu sou Tae Jin, Yasova Garra de Dragão.”

“Não use mais este título.”

Ela pegou a mão que ele pressionava o ferimento, e a passou para o outro lado. Sangue subiu como uma poça no instante em que a pressão foi retirada. Ela tirou sua luva e pousou a mão sobre o ferimento, com os dedos espalhados. O brilho da magia acendeu sua mão, e a força vital parecia uma lanterna que queimava a agonia do corpo dele. Ele cerrou os dentes e não emitiu som algum, mas sua testa começou a suar apesar do vento frio que soprava por eles.

A magia foi se apagando. Os olhos da Avó pareciam fundos e exaustos, mas ela não deu nenhum outro sinal de como a magia curativa pesava em suas energias enquanto sentava-se sobre os quadris.

“Me conte algo que eu não sei, e talvez eu deixe você viver.”

Ele suspirou, já livre da tosse de partir o peito. “Estas são as palavras de Ugin Dragão Espírito, que as disse em dias antiquíssimos para um de meus ancestrais Jeskai.”

E então ele começou a falar em um tom pouco audível e quase habitual, como se ele fosse apenas um funil pelo qual uma voz bem mais antiga falava através de gerações.


Se quiser dominar o caminho, então você deve aprender e repetir e lembrar. Conhecimento também é memória. Esquecer o passado é perder um pedaço de nós mesmos. Muito mais para um povo inteiro que perde o seu passado.

Minha própria história é simples. Aquele que eu amava mais que tudo em todos os mundos foi quem me matou.

Como aconteceu? É menos simples e levará mais tempo para contar. Ouça com atenção, pois um dia ele pode vir até aqui, e se isto acontecer vocês devem tomar cuidado, pois quaisquer palavras que ele disser para persuadir e lisonjear vocês serão mentiras.


A Avó sibilou de repente.

Baishya tomou sua mão. “Você está bem? Tem algo que lhe causa dor?”

“Não, foi só uma memória ruim. Continue, Tae Jin. Agora, estou interessada.”

Ele assentiu como se esperasse ouvir essa resposta, e continuou a falar.


Nós, dragões, caímos do céu em uma terra que não nos conhecia, e nós não a conhecíamos. É claro, havia muitos de nós jovens voadores. Cada um conheceu este novo mundo à sua própria maneira.

Nasci gêmeo com Nicol, mas em todos os outros ovos são havia um. Acordamos juntos, nos nomeamos juntos, tocamos o solo de nosso novo lar no mesmo instante. Testemunhamos juntos a morte de uma irmã, e deste modo aprendemos que nenhuma criatura está a salvo. Nem mesmo nós.

Quando Nicol e eu deixamos o topo da montanha, voamos em busca de nossos irmãos e irmãs. A morte de nossa irmã me assombrava por causa de como sua vida fora breve e de como sua morte fora selvagem. Da parte de Nicol, ele sentia raiva porque o assustava, apesar de que ele negaria. Se vocês tiverem o azar de encontrá-lo, eu nunca recomendaria que alguém sugerisse a ele que em algum ponto de sua longa vida ele sentiu medo.

E nossos irmãos e irmãs sobreviventes? Suponho que vocês nunca ouviram falar deles. Outrora os nomes dos dragões anciões foram celebrados com reverência e respeito. É tão fácil esquecer. Nenhuma memória está a salvo.

Mas que voo nós fizemos naquele primeiro dia, vendo tudo com olhos recém-nascidos! O céu, tão amplo! Nuvens de brumas, e rios em caminhos por uma terra vasta coberta de vegetação e de feras. Eu tinha uma paixão por descobrir o que tudo era, e aprender seus nomes e seus propósitos.

Nicol olhava para tudo também, o céu tão amplo e as nuvens como brumas, e então ele disse: “Como nós poderíamos ter impedido aqueles caçadores de matá-la?”

“Quando entendermos o mundo melhor, vamos encontrar a resposta. Você não está animado para explorar?”

“Devíamos ter interferido.”

“Você estava preso.”

“Eu não estava preso! Poderíamos ter conseguido algo se você não tivesse hesitado.”

“Fizemos o que sabíamos fazer no momento.”

“Não foi suficiente! Devemos descobrir o que poderíamos ter feito para impedir.”

“Você não tem curiosidade sobre o mundo?”

“Eu quero saber quem são aqueles caçadores, e de onde eles vêm, e como podemos destruí-los. Eles aprenderam que podem matar um de nós agora, então não terão medo.”

“Olhe lá,” respondi eu, na esperança de distraí-lo. “Um de nossos irmãos!”

Em um vale alto em meio às montanhas havia um lago profundo e escuro. Um dragão longilíneo e esguio com um brilho metálico em suas escamas estava recostado em um afloramento de rocha nua e lisa, com os braços dependurados para fora da beirada e sua cabeça caída acima da água, como se tivesse adormecido. Enquanto voamos empolgados em torno dele, buscando um lugar para pousar, algo monstruosamente grande se revirou nas águas do lago, desaparecendo para as profundezas mais turvas. De seu poleiro na rocha, Chromium Rhuell olhou para cima rapidamente com um desprazer gigantesco.

Ilustração: Chase Stone

“Por que me perturbam, jovens?”

“Não somos mais jovens do que você! Caímos da mesma batida de asas!” Sem pedir permissão, Nicol pousou ao lado de nosso irmão. Apressadamente, pousei ao lado dele.

“Chocaram depois, portanto são mais jovens. E devo dizer que são bastante pequenos. Dois de vocês fazem um de mim.” Ele nos observou como se medisse nosso valor de acordo com nosso tamanho. “Vocês arruinaram minha observação das várias criaturas que vivem no lago.”

Nicol esticou o pescoço para olhar para baixo, para dentro das águas turvas. “Está caçando?”

“Caçando? É só nisso que vocês pensam? Quais são os seus nomes? Não, espere. Não precisa me dizer.”

“Vai tentar adivinhar nossos nomes?” Indagou Nicol, com sarcasmo.

“Eu não adivinho. Dragões nascem com o dom dos nomes. Está em nossa natureza saber nomes sem que nos digam. É igual a como sabemos nossos próprios nomes no momento em que despertamos consciência.” Ele fechou seus olhos e os abriu novamente para examinar-nos com um olhar perspicaz e implacável que me irritou, pois ele tinha tanta certeza de si. Mas sua curiosidade e confiança também me intrigavam. “Por que cada um de vocês só tem um nome?”

Nicol não disse nada enquanto arranhava um sulco na rocha. Saíam tufos de vapor pelos lados de sua boca fechada.

“Nascemos gêmeos,” disse eu, sentindo-me um pouco na defensiva por meu irmão gêmeo e talvez um pouco por mim, também.

“Ah, então vocês têm dois nomes, mas os compartilham, um para cada. Isso também explica seus tamanhos, e talvez por que parecem tão mais jovens. Hmm. Que interessante.”

“Como é interessante?” Nicol exigiu saber, com sua cauda agitada de um lado para o outro.

“Há uma ordem nas entrelinhas do mundo. É difícil discernir porque muito está escondido de nossos olhos. É claro, falta à maioria das criaturas a paciência ou o desejo de investigar mais este tomo de conhecimento.”

“Não me falta nada,” disse Nicol.

Chromium Rhuell bufou fumaça e desfraldou suas asas o suficiente para expressar seu desprazer. “Tenho certeza que não. Mas por agora, vão, pequeninos. Quero voltar para minhas observações. Não consigo com vocês falando tão alto aqui, perturbando a fauna.”

“E a caça?” Indagou Nicol.

“Se caçar é tudo o que lhe interessa, então podem ir encontrar Palladia-Mors. Ela certamente não tem ambições maiores.”

Ele nos encarou até entendermos a indireta e partirmos.

Em um gramado vasto, uma dragoa verde-avermelhada com chifres curvos rugia enquanto caçava uma manada de feras quadrúpedes. Ela lançou chamas sobre o retardatário, que caiu em um colapso, tremeu e expirou. Ela fez a volta no ar e se abaixou ao lado do cadáver, para comer.

Voei até ela, com Nicol ao meu lado. Quando pousamos ao lado dela, ela virou olhos vermelhos e brutos, cuspindo uma lufada de chamas em nossa direção.

“Este é meu. Meu.”

“Você é Palladia-Mors,” disse eu, com polidez. “Nossa irmã mais velha. Chromium Rhuell sugeriu que viéssemos até você para aprendermos sobre a caça.”

“Cacem os seus.” Ela rasgou um pedaço grande de carne, e com sangue manchando seu focinho e dentes, ela rangeu e engoliu, e depois virou sua cabeça para nos olhar friamente. “São tão pequeninos, vocês dois. Miúdos raquíticos. Provavelmente pequenos demais para caçar.”

Ilustração: Svetlin Velinov

“Conseguimos caçar!” Nicol bateu a garra raivoso contra o solo e adicionou: “Melhor do que você, quando aprendermos como se faz.”

Ela puxou o cadáver chamuscado da fera e o lançou contra nós com uma gargalhada violenta. Nicol pulou para o lado em sobressalto, mas eu continuei agachado onde estava, pois eu vi como a trajetória não me atingiria, e de fato não me atingiu. Seu peso caiu contra a terra com um estrondo, nos respingando com fluidos.

“Pronto, podem comer meus restos. A carne deste é dura e seca. Quero matar um mais saboroso para minha ceia.”

Ela abriu suas magníficas asas e saltou para os céus. A força do bater de suas asas nos achatou como ventos tempestuosos, e então ela se foi, perseguindo a manada que fugia. Cheirei o animal morto, buscando do que restava de seu espírito alguma indicação de seu nome e substância: era um íbex, velho para sua espécie; tivera uma vida pacífica, e isso dava ao seu sangue e carne um certo odor agradável.

Eu arranquei um pedaço de carne. Era prazeroso comer, mesmo que fosse uma carne um pouco dura. “Venha experimentar.”

“Não aceito os restos de ninguém.” Nicol sentou sobre sua cauda, esticando-se para ver até onde conseguia alcançar. “Não somos tão pequenos assim. Somos maiores do que todas as feras que vagam por estas terras. Você vem comigo?”

Parecia um desperdício abandonar a fera morta, mas enquanto eu considerava a carne que esfriava, insetos começaram a pousar em sua pele para se entocar, e carnívoros pequenos se aproximavam, parando a distâncias seguras enquanto esperavam que nós partíssemos. Outras criaturas também começaram o trabalho de devorar a carne morta, apesar de serem tão pequeninas que eram invisíveis a olho nu. O que apodrece também está sendo consumido.

A revelação me varreu como o vento quente de uma tempestade: dentro da rede invisível que é a vida e a morte, nada é desperdiçado.

“A morte é apenas parte de um ciclo maior,” disse eu, bastante surpreso com minha sabedoria incrível.

“Eu quero matar algo,” disse Nicol. “Você vem?”

Foi a segunda vez que ele perguntou se eu iria com ele. Justiça seja feita, nunca nos separamos, nunca caminhamos ou voamos muito longe dos ouvidos um do outro. Eu não conseguia imaginar estar no mundo sem ele ao meu lado.

“Sim. Vamos aprender como caçar juntos.”

Dragões são caçadores natos. É o que nascemos para fazer: caçar, dar nomes, e acumular conhecimento. Mas ainda assim, os íbex e gazelas da planície tinham pés velozes e meios espertos de evitar serem pegos. Eles tinham mais prática em escapar do que nós tínhamos em pegar.

Uma vez Palladia-Mors deslizou por nós quando tínhamos enfim conseguido encurralar uma pequena gazela. Com facilidade zombeteira, ela pegou o animal antes que nossas garras se fechassem nele. Com um rugido provocador, ela voou para longe com ele em suas garras. Nicol queria persegui-la, mas eu fechei minha boca em sua cauda e o segurei enquanto se debatia até que ele se acalmasse o suficiente para escutar.

“Se ela nos enraivecer, ela vence. Quer que ela vença?”

Ele tossiu uma fumaça cheia de fuligem das profundezas de sua frustração, mas depois disso nós tomamos cuidado para voar longe do território de caça da nossa irmã, para que ela não se incomodasse em nos afligir.

“Está na natureza dela caçar e não pensar em mais nada,” disse eu. “Mas nós não somos como ela. Podemos pensar em mais coisas do que apenas caçar. Caçar é o que fazemos para nos alimentarmos, mas não como vivemos no mundo.”

Ainda assim, até o momento em que finalmente arrastamos um animal lento demais para fugir de nossas tentativas risíveis de pegá-lo, eu já estava exausto e Nicol estava tão frustrado que rasgou os membros da criatura, os engoliu rápido demais, e os regurgitou em seguida.

“Aqueles caçadores não deviam ter conseguido matar nossa irmã,” disse ele quando conseguiu falar.

“Posso comer em paz sem sua obsessão arruinar minha refeição?” Perguntei eu, mastigando preocupadamente um feixe da carne de um dos flancos.

“Os caçadores trabalharam em equipe. Se aprendermos a trabalhar juntos, então poderemos caçar melhor do que Palladia-Mors.”

Comi pensativo, considerando as palavras dele. Era verdade que caçávamos à maneira de nossa irmã mais velha, cada um caçando sozinho, dependendo de nossa força e velocidade individuais. E se houvesse um jeito melhor?

Nos limpamos em um banco de areia cálido e cochilamos sob o sol da tarde. Depois desta estada agradável, Nicol se esqueceu de suas frustrações e estava afoito para começar o trabalho. Passamos anos, como vocês Jeskai mediriam o passar dos dias, aperfeiçoando várias técnicas para caçar em conjunto. Eventualmente conseguíamos pegar o espécime mais saudável e suculento de qualquer bando, não importando quão ágeis e sagazes fossem os animais.

Nesta época já tínhamos explorado novo território. Várias vezes fomos perseguidos por um dragão grande e feio chamado Vaevictis Asmadi que, junto com seus irmãos, guardava furiosamente um território que reclamaram para si como seus próprios territórios de caça, apesar de haver bastante espaço e caça para muitos caçadores. Então, exploramos mais pelos campos, pois parecia que a terra era vasta e o oceano que o rodeava era uma barreira insuperável. Éramos tão jovens e ignorantes naqueles dias...

Ilustração: Steven Belledin

Um dia, nos acomodamos sobre a colina em meio a uma planície com uma floresta rica e densa. Daquele ponto de observação, nos vimos próximos de um povoado à beira do rio habitado pelos bípedes chamados humanos. Em geral, nós evitávamos humanos. O gosto deles não era bom, e eu não gostava de comer coisas que sabiam falar.

O povoado era cercado por uma muralha construída com vigas de madeira, costuradas juntas com revestimentos de pedra, e os espaços entre as vigas interligadas estavam carregadas com argila. Observamos outros povoados como este, onde estas criaturas pequenas e frágeis se protegiam com a força de grandes números. Este era o maior deles, com a maior variedade de estruturas, e com o maior número de humanos apertados em seus confins insalubres. Em suma, podia-se sentir o cheiro deles a longas distâncias.

Para nossa surpresa, nosso irmão Arcades Sabboth fixou residência dentro da grande muralha circular. Um pátio espaçoso estava na frente de um edifício muito grande construído de madeira, com um telhado de palha bastante alto. Em um pátio coberto por pedras de rio achatadas, ele descansava à vontade. Escudos de bronze decorados com espirais o flanqueavam de cada lado, tão lustrosos que qualquer pessoa que se aproximasse veria seu reflexo. À frente dele, plantado em um vaso de bronze repleto de ágatas, crescia uma árvore esguia com um tronco entalhado de mármore, e folhas feitas de ouro.

Pessoas vestindo braceletes e broches de ouro e prata cuidavam dele. Alguns eram escribas sentados de pernas cruzadas sobre tapetes, pincelando letras em telas de cortiça. Suplicantes vestidos humildemente se ajoelhavam perto da árvore com as cabeças curvadas, aguardando um julgamento.

Eu queria observar a cena por algum tempo, pois me assombrou bastante ver um dragão interagindo com humanos com tal intimidade. Mas Nicol era impaciente, afoito para conhecer este irmão brilhante cujas escamas eram de um branco cegante sob o sol, e que presidia sobre os humanos com tanta certeza.

“Não tinha notado que humanos podiam confiar em dragões,” disse ele.

Já que os humanos se moviam em torno de nosso irmão sem medo, nos aproximamos abertamente. Ainda assim, quando ficamos à vista dos campos cultivados em torno da cidade, as pessoas correram para as muralhas. Berrantes retumbaram como aviso. Arqueiros assumiram suas posições ao longo da muralha. Assim que entramos no alcance deles, saraivadas de flechas subiram velozes, miradas para nossas barrigas. Algumas flechas encontraram seus alvos. Seus toques em minhas escamas espessas causavam pouco mais do que uma sensação de formigamento, mais irritante do que perigosa, e ainda assim a memória vívida da morte da minha irmã fulgurou me minha mente e engasgou a raiva em meu peito.

Nicol deslizou no ar por um momento, se esticando como gostava de fazer para parecer maior. Seus chifres curvos refletiram a luz do sol com um lampejo. Então, ele girou graciosamente e arrebatou o ar com um mergulho. Seu jato de fogo chamuscou a torre mais alta e o topo da muralha adjacente. Soldados desafortunados gritaram e caíram enquanto o fogo os queimava.

Um corpo gigantesco chocou-se contra Nicol, fazendo-o rodopiar pelo ar. Ele mal bateu suas asas o suficiente para se manter no ar enquanto nosso irmão mais velho, Arcades, circundou para outro ataque. Eu voei rapidamente entre eles, chamando sua atenção.

“Irmão! Não queremos fazer mal. Só queremos conversar com você.”

Guiei um Nicol furioso, machucado e coberto de hematomas de volta à colina de onde vimos a cidade primeiro. Pousamos em seu monte gramado. A morte não me era estranha, pois matamos nossa parcela de presas, mas os gritos dos soldados que morriam me incomodavam de um modo diferente dos últimos momentos dos animais que caçávamos. Nicol sangrava em um arranhão que as garras de Arcades fizeram ao longo de seu flanco. Ele fungava, batia pés, bufava.

Eu disse: “Lá vem ele!”

Arcades pousou, com asas bem estendidas. Seu brilho era mais ofuscante do que o sol, e suas garras estavam de fora.

Antes que Nicol conseguisse falar, eu disse: “Perdoe-nos, Irmão. Nós achamos que as criaturas estavam acostumadas a dragões.”

Está na natureza dos dragões conhecer os seus.

“São os gêmeos, Nicol e Ugin.”

“Eu sou Nicol Bolas,” disse Nicol.

“Você é?” Perguntei eu. “Quando isso aconteceu?”

“Eu tenho dois nomes. Todos os dragões respeitáveis têm dois nomes.”

“Ugin é suficiente para mim,” disse eu, dispensando a história como uma das mudanças de humor mercuriais de Nicol. Virei-me educadamente para nosso irmão mais velho. “Irmão Arcades, por que os humanos nos atacaram quando nos aproximamos?”

Diferente de nossa irmã e seus rugidos, Arcades falou com uma voz comedida e ressonante, profunda e calmante. “Meus súditos pensaram que vocês estavam atacando-os.”

“Por que pensariam isso?” Indaguei eu.

“Não somos os únicos dragões do mundo.”

“Sabemos disso,” disse Nicol. “Palladia-Mors e Chromium Rhuell. Já conhecemos os dois.”

“E o bando de Vaevictis. São um belo bando de saqueadores. E há mais além deles, alguns voam sozinhos e outros em revoadas. Protejo os humanos dos outros dragões que vagam por estas terras. Mas também estou ensinando um caminho de vida melhor aos humanos, um caminho regido por algo além de suas tendências primitivas e violentas.”

“Por que se importa com os humanos?” Indagou Nicol. “Eles mataram uma de suas irmãs, quando caímos.”

Arcades mudou a posição de suas asas, como sinal de aceitação. “Esta luta é o caminho da vida e da morte, não é? Humanos têm o direito de viver, assim como nós.”

Nicol cerrou suas garras mas não disse nada, e eu conseguia ver como este esforço custava a ele. Mas talvez ele estivesse aprendendo a se acalmar e pensar mais.

Arcades não conhecia Nicol como eu, e continuou a falar sem notar seu lampejo de raiva. “Humanos são criaturas interessantes. Diferente de nós, eles trabalham em equipe. Querem ver? Podem visitar brevemente como convidados honoráveis, contanto que sigam as regras da lei e da ordem que estabeleci nesta colônia.”

Nicol olhou para mim. “Eu gostaria,” disse ele em um tom calmo e monótono.

Fiquei contente de ouvi-lo sendo tão racional. Pensei que o conhecia até os ossos, mas ainda não sabia do que ele era capaz.

Então, acompanhamos Arcades até a cidade. Ele nos apresentou às pessoas que lá estavam, e nos receberam com reverência e respeito - apesar de não ser tanta reverência e respeito quanto demonstravam a Arcades, a quem chamavam “Soberano Dragão.”

Ilustração: Even Amundsen

Ficamos lá por anos. Observamos os humanos fecharem mais territórios para dentro de suas muralhas, enquanto a população nascia em maior número, construindo mais casas e limpando mais campos, e enviados de comércio vinham de cidades menores e distantes até esta cidade crescente. Eu meti meu focinho em tudo, e fiz uma amizade especial com uma anciã sagrada chamada Te Ju Ki, cujo único propósito na vida parecia ser pensar sobre coisas que não podiam ser vistas. Ela vivia sozinha em um cômodo circular, onde as paredes eram feitas de placas de pedra. Assim como a pedra, ela era seca e dura. Apesar de ser mirrada de membros e frágil de corpo, sua mente era afiada como obsidiana.

Nicol não tinha paciência para o modo despossuído de ela estar no mundo; ele queria estar onde Arcades estava, guiando e aconselhando o povo. Nicol se fez útil em centenas de meios, cavando cada canto da vida e da emoção humana. Mas as ganâncias e empolgações e ansiedades competitivas de humanos me cansavam quando passava muito tempo com eles, e então o modo solitário de Te Ju Ki me atraía. Eu absorvia toda a sabedoria calma que ela transpirava.

Dias inteiros se passavam em silêncio enquanto ela e eu ficávamos sentados em seu cômodo circular. Seu teto já havia cedido há muito, e ela me informou uma vez que a torre semi-colapsada era artefato de construtores que estiveram aqui antes das pessoas que agora viviam neste lugar.

“Não somos os primeiros, e não seremos os últimos,” disse ela. “Vemos apenas nossa mão em frente à face, mas houve outra mão ali à frente da nossa, e virão outras atrás de nós. Até mesmo este mundo é apenas uma camada em meio a muitas.”

Ela conhecia muitos esquemas como auxílio a meditação, mas o que eu gostava mais era quando ela rodopiava globos de luz pelo ar. Fios translúcidos de magia amarravam cada um dos globos aos outros, para que, ao girarem pelo ar, eles se mantivessem separados e ao mesmo tempo ligados por conexões misteriosas demais para a minha compreensão. Ela chamava cada um deles de “planos de existência”, apesar de eu não saber o que ela queria dizer com aquela palavra, naquela época. Quando perguntei se os globos eram um experimento de pensamentos ou se realmente existiam, ela disse que não importava porque nenhum ser físico conseguia caminhar entre os planos. Mas eu não me importava. O modo com que os globos radiantes se interligavam e moviam entre si me fascinava tanto quanto a sabedoria que ela proferia com sua voz sussurrada e rouca.

“Tudo o que vive está interligado. Tudo o que morre é consumido por outra coisa, por outro animal ou pela putrefação. Na podridão está o cerne de vida nova, pois passa de volta para dentro do mundo quando sementes criam raízes para crescer. Não existe um fim, apenas ciclos intermináveis de transformação.”

“Você morrerá um dia.”

“Sim.”

“Não assusta você?”

“Minha essência continuará a existir em outras formas. Fragmentos do meu ser se transformarão em novas entidades impressionantes, com suas próprias jornadas. Como poderia ser assustador?”

“Parece assustador para mim. Dragões morrem?”

“Todas as coisas terminam. Às vezes, não é a mesma coisa que morrer. Você deseja que eu ensine como criar os globos e rodopiá-los? É um exercício para acalmar a mente.”

Eu desejava, sim. Ah, e como. Mas era uma tarefa difícil, e eu não aprendia rapidamente.

Um dia, enquanto estava sentado sob o sol manifestando um único globo de luz acima de minha pata dianteira esquerda, bastante arrogantemente orgulhoso desta pequenina conquista, houve um tumulto horrível de gritos e berros vindos da direção dos estoques do palácio. Sob o reinado de Arcades Sabboth, o reino viveu em paz e em ordem, e então os gritos de medo e agonia cortaram aquela tarde silenciosa com uma intensidade brutal.

Minhas escamas formigaram como se atacadas por uma centena de flechas — nada que pudesse me perfurar, mas apenas me alertar. Algo acontecera. Algo ruim.

O globo dissolveu com um estalo que se transformou em uma nuvem de luzes dispersas por uma lufada de vento. Apressado, fui até o pátio na frente dos estoques, um lugar onde vagões e carroças e cavalos de carga podiam descarregar e também pegar cargas. Havia sangue espalhado pelos ladrilhos do pátio. Um homem estava de joelhos sobre os ladrilhos. Uma faca ensanguentada estava presa no tórax de outro homem, contando a história macabra de um assassinato violento. Guardas do palácio cercaram o assassino que olhava desconcertado para suas mãos cheias de sangue.

“Mas ele é meu irmão. Como isto aconteceu? Quem o esfaqueou?”

Testemunhas formaram uma multidão à frente dele. “Você se virou contra ele. Você gritou com ele que ele estava roubando seu direito de nascença, e queria trair você. E então você puxou a faca e o esfaqueou.”

Sua voz era perdida e sem fôlego. “Mas essa disputa entre nós foi resolvida há anos atrás, quando nossos pais nos deram o negócio das carroças para gerenciarmos juntos . . . ” Ele sacudia sua cabeça repetidamente, como se tentasse soltar algum verme nocivo que se entocara dentro dele. “Nunca brigamos depois daquilo, nem um dia.”

As palavras caíam sem tutano, dadas as provas.

Homicídio | Ilustração: Tyler Jacobson

Os guardas o levaram. Enquanto um aio ordenava que removessem o corpo e o sangue foi lavado dos ladrilhos, ergui os olhos até o teto de um dos edifícios próximos. Nicol estava recostado lá, esticado ao longo da beirada, observando a cena com um olhar ávido.

“O que você fez?” Exigi eu, na língua dos dragões.

“O que eu fiz? Eu não saí daqui.”

“Ficou olhando e deixou acontecer? Podia ter intervindo.”

Um sorriso de satisfação convencida enrugou sua fisionomia. “E daí, se eu fiquei?”

A sensação de formigamento intensificou-se. “Como assim? O que você fez, Nicol?”

“Eu descobri um meio melhor de conseguir a vingança. Você vem, ou vai ficar com sua sábia de boca mole e fala mansa e suas migalhas de sabedoria sem graça?”

“Para onde?”

“Vou vingar nossa irmã, como devíamos ter feito há muito tempo atrás.”

Ele abriu suas asas e, sem as despedidas apropriadas para nosso irmão, voou tão rapidamente que estava longe da minha vista antes que eu percebesse em verdade que ele queria abandonar tudo isto. Me apressei para encontrar nosso irmão.

“Um magistrado ouvirá o caso e tomará uma decisão. Não será nem trazido à minha atenção. Não há necessidade de preocupar-se, Ugin. Pode voltar aos seus estudos.” Disse ele quando o encontrei.

“Mas você não acha estranho que os dois irmãos trabalharam bem juntos, e em paz, por anos e agora isto aconteceu repentinamente?”

“Humanos têm estes problemas,” explicou ele tendenciosamente. “Eles mantêm suas emoções sob um peso por anos, e então uma centelha se acende e explode. Já aconteceu antes, e acontecerá novamente.”

Mas meu coração se manteve preocupado.

“O que você teme?” Te Ju Ki me perguntou ao anoitecer, quando voltei ao seu cômodo de teto aberto.

“Eu não sei. Mas meu coração não descansa.”

“Não pode continuar seus estudos neste estado, Ugin. Me desculpe. Talvez você precise de algum tempo de folga.”

Continuava pensando em Nicol voando para longe. Vou vingar nossa irmã.

“Eu sei aonde ele está indo. Devo segui-lo.”

“Sua jornada é o caminho que você deve caminhar, Ugin. Que você encontre o que procura.”

Eu não queria partir, mas precisava segui-lo. Algo importante acontecera. Me fez pensar em estar no leito seco de um riacho em um deserto, quando um aguaceiro escurece as colinas distantes. A enxurrada está a caminho, mesmo que você não consiga enxergá-la.


“Abaixem-se! Protejam-se!” Gritou Fec. “Ele o perseguiu pela grama!”

Um farfalhar alto como o som da chuva caindo ressoou sobre eles, apesar do céu ainda estar claro. Os abutres se lançaram para o céu em um frenesi de asas.

Uma sombra caiu sobre eles quando a cabeça e o pescoço sinuoso do dragão se ergueram de trás do afloramento rochoso. Era uma criatura de beleza estonteante, com escamas de um branco-acinzentado pálido e uma sombreado azul. Uma crista azul-escura se erguia do centro de sua cabeça entre dois chifres longos e elegantes. Seu olhar marcou a cada um deles, e dispensou a cada um deles, com um vislumbre de inteligência nada parecido com a fome bruta dos jovens da ninhada galhada de Atarka. E então ele viu o jovem ainda sentado no chão. A criatura sibilou, com feixes de uma bruma gélida vazando de suas narinas.

Tae Jin ficou de pé com um pulo, pressionando seus antebraços em um gesto de súplica. Seria tudo, enfim, uma armadilha? Será que ele entregara a Avó para um dos jovens da ninhada Ojutai?

Uma grande ave voou de trás do dragão e pousou sobre a rocha. Não era uma ave, mas sim um aviano usando vestes elaboradas que ficavam dependuradas até seus pés em garras. Sua cabeça estava coberta com uma crista e longos chifres, similares aos do dragão que servia.

Quando o jovem da ninhada falou dracônico num tom rouco e repartido, o aviano foi seu intérprete.

“Tae Jin, por comando do Grande Mestre, você foi acusado do crime de sacrilégio e sentenciado à morte pelo gelo. Será um prazer e uma honra matar você.”


Próximo conto: Coisas Não Vistas

Coleção Básica 2019 Arquivo das Histórias
Perfil do Planeswalker: Nicol Bolas
Perfil do Planeswalker: Ugin, o Dragão Espírito
Perfil do Plano: Tarkir