Conto anterior: A Primeira Lição


Naiva crescera sob a regência da Soberana Dragoa Atarka. Por toda sua vida ela vira sua avó, Yasova, outrora conhecida como Garra de Dragão do clã Temur, entregar carne devotamente no local combinado em Ayagor para que Atarka pudesse banquetear. “Para manter o povo vivo, vamos alimentar a dragoa,” dizia a Avó a cada ano enquanto alguns dos caçadores mais velhos resmungavam sobre terem perdido os meios de vida antigos. E a cada ano que passava, menos deles se lembravam de antes da queda dos khans, e então menos deles reclamavam, e para os jovens como Naiva, é claro, a regência de Atarka era tudo o que conheciam.

Então, quando ela estava presa em um círculo de pedregulhos com a Avó e Baishya em um lado, e um belo e jovem andarilho que trouxera a ira de um dragão sobre eles, ela sabia o que a Avó faria. A outrora poderosa Yasova Garra de Dragão cederia para o jovem dragão da ninhada Ojutai que se assomava sobre eles, exigindo matar o guerreiro rebelde.

Não devia ser assim! Enquanto ela puxava um fôlego, ela desejava ter fogo como os dragões tinham, para poder escaldar a grande fera e a transformar em cinzas. Ela queria atacar, mesmo que significasse sua própria morte. Não seria melhor lutar do que ceder mais e mais, até que sua alma fosse esmagada e você tivesse que negar o próprio nome?

O dragão abriu sua boca como aviso, para afastar os demais. Um frio irradiava de dentro de seu corpanzil, pronto para congelar qualquer criatura que ficasse em seu caminho.

A Avó encontrou o olhar de Naiva. Lá vinha ela: era faria o gesto para retirada; ela deixaria o estranho enfrentar seu destino na morte.

Mantendo sua mão escondida do aviano sobre a rocha, a Avó fez o gesto para matar.

Quando o dragão ergueu a cabeça para atacar Tae Jin, Baishya estendeu seus braços para a terra e uma luz verde e cálida se formou em suas mãos, fluindo para dentro do solo. O hálito congelante do dragão irrompeu na direção de Tae Jin. Impossivelmente, uma rocha rolou de lado para interromper o jato de gelo. Uma crosta espessa do hálito gelado do dragão craquelou em torno da rocha, solidificando antes de alcançar Tae Jin.

Uma flecha voou acima das cabeças deles, cortando uma das asas do aviano. Enquanto o aviano cambaleava, crocitando de dor, Naiva jogou sua lança. A ponta de obsidiana atravessou as belas vestes do aviano, perfurando seu tórax emplumado. A Avó jogou sua própria lança, que atingiu o aviano na cabeça com um golpe mortal.

O dragão rugiu, e seu pescoço chicoteava de um lado para o outro com sua fúria. Tae Jin se esquivou entre as rochas. Um segundo jato de seu hálito gélido irrompeu pelo espaço onde ele estava há segundos atrás.

Naiva saltou de lado para empurrar a Avó por uma passagem estreita entre duas rochas. Lâminas de grama congelaram e se partiram atrás de seus calcanhares. A parte posterior de suas pernas ficou dormente, mas suas calças de feltro protegeram um pouco. Olhando para trás, ela viu Baishya de joelhos, dobrada em si, exausta e quase desmaiando com o esforço de ter movido aquela primeira rocha. Fec lançou uma flecha inútil na direção do dragão, defletida por suas escamas; a criatura nem se dignou a olhar para o orc. O dragão serpenteou sua cabeça para bater na rocha que Baishya movera, atrás da qual ela estava escondida. Naiva puxou o facão de sua bainha e correu de volta até sua irmã gêmea, alcançando-a no exato momento em que o dragão usou uma garra gigante para empurrar a pedra para o lado como se fosse uma mera pedrinha de rio.

Seu corpo se assomava sobre elas, preenchendo todo o seu campo de visão. Ela agarrou Baishya para perto. Pelo menos elas morreriam como nasceram: juntas.

Um uivo ribombante partiu o ar. O jovem da ninhada Ojutai se afastou, girando enquanto um dragão vermelho coroado com uma galhada — o mesmo jovem da ninhada Atarka que as seguia — arrebatava os céus e se chocava contra ele. As duas feras rolaram às cambalhotas pela grama, se agarrando e arranhando. O peso da batalha entre eles sacudia o chão. Fogo e gelo se encontraram em uma enxurrada de brasas e flocos de neve brilhantes.

Naiva içou Baishya até que ela ficasse de pé. “Consegue andar?”

Baishya assentiu, resfolegante demais para falar. Ela se apoiou na irmã, tremendo e com o rosto pálido.

“Eu não sabia que você conseguia fazer aquilo!” Exclamou Naiva.

“Eu também não sabia,” sussurrou Baishya.

A Avó apareceu. “Retirada, para as árvores. Tae Jin!”

Eles correram até a linha das árvores enquanto os dragões rolavam mais para longe. Naiva sentia-se grata pela grama alta agora, pois ela os escondia. Os rugidos e guinchos dos dragões em batalha cobriam o ruído de seus pés e da passagem deles pela grama farfalhante. Ela tinha tantas perguntas, e nenhum tempo para perguntar. Com Baishya ainda apoiada pesadamente sobre ela, Naiva cambaleou para dentro da segurança da floresta. Baishya soltou e deixou-se cair no chão, apoiando-se no tronco de uma árvore enquanto tentava recuperar o fôlego.

Perto do lago, os caçadores que ficaram para trás pescando já estavam prontos para partir com suas coisas, pois ouviram a confusão.

Uma sentinela, agachado sobre um galho de árvore avisou lá para baixo: “Está voando para longe.”

Naiva parou e olhou para trás. O dragão Ojutai escapou das garras do jovem da ninhada Atarka e fugiu pelo céu, mas o outro saltou e pegou uma de suas patas traseiras com um golpe poderoso de garra, arrastando o dragão de volta para o chão. Ela sentiu o impacto dos corpos deles pelas solas de suas botas. Seus guinchos e uivos retumbavam, e ao mesmo tempo a natureza titânica da batalha a revigorava. Como seria ter tanto poder assim passando por você? Seria essa a sensação que Baishya tinha com magia? Ainda assim, o poder drenara sua irmã também, e sua vida estava em risco apenas por ter o dom dos xamãs.

Naiva a deixou ali para correr até onde os outros esperavam em um grupo com formação compacta. Os caçadores encararam o jovem, o sangue em sua túnica e a tatuagem brilhante em seu ombro exposto.

Fec disse, “Devemos voltar. O jovem da ninhada Ojutai não ousará nos seguir mais para dentro do território da Soberana Dragoa Atarka.”

“A luta entre eles ainda não acabou,” disse a Avó.

“De todo modo, estamos expostos e vulneráveis agora que há dragões nos perseguindo.”

“Dragões nos perseguem o tempo inteiro. Devo considerar as circunstâncias que nos trouxeram aqui. A visão do povo-do-vento. A missão deste jovem.” Ela lançou um olhar até a beirada do arvoredo onde Baishya estava sentada de pernas cruzadas no chão e de costas para eles, com ambas as mãos pressionadas contra o solo. “Me deem silêncio para considerar.”

Tae Jin ficou de pé em repouso, esperando que a anciã falasse com ele.

Naiva apareceu furtivamente ao lado dele.

“Você quase morreu,” disse ela em tom suave. Sua própria pulsação batia como um martelo em seus ouvidos. “Como pode estar tão calmo?”

Ele virou seus olhos negros para ela. “Morrerei de um jeito ou de outro, agora ou mais tarde. A disciplina nos ensina a aceitar coisas das quais não podemos fugir.”

“Você estaria morto se não fosse pela cura da minha avó.”

“Isso é verdade. Ouvi falar dos poderes curativos do seu povo, e sou grato pela habilidade dela. Mas magia de cura é algo conhecido por todas as tribos.” Ele pausou e disse quase que tímido: “A rocha me salvou. Eu não tinha visto demonstrações de magias de terra antes. Posso saber o seu nome?”

“Não fui eu. Foi minha irmã gêmea, Baishya.” Mesmo dentro da tribo, as pessoas costumavam confundir Naiva e sua irmã. Elas pregavam peças assim quando eram mais jovens, e uma fingia ser a outra. Ainda assim, incomodava o fato dele pensar que ela seria outra pessoa cujo poder e habilidade ele admirava.

Mas ele sorriu. “Ah! Você foi a que jogou a lança com tal precisão que derrubou o aviano. Posso saber o seu nome?”

O calor queimava suas faces, mas ela não desviou o olhar. Ela queria que ele reconhecesse a ela, não apenas a sua irmã gêmea. “Me chamam Naiva.”

“Chega!” A Avó bateu com a ponta cega de sua lança no solo. “Quando uma visão oferecida pelo povo-do-vento intersecta com um andarilho que traz conhecimento dos Jeskai, não posso recusar tais profecias. Vamos para o túmulo de Ugin.”

Naiva pensou que Fec fosse discutir, mas ele apenas curvou sua cabeça em aceite, assim como os outros caçadores. A Primeira Mãe falara, então estava decidido.

Os dragões haviam sumido de vista, apesar de ocasionalmente um trovão distante marcar em qual direção ocorria a batalha entre eles. O grupo se movia rapidamente, sob a cobertura da vegetação. Caso o jovem da ninhada Atarka fosse vitorioso e viesse conferir o que estavam fazendo, eles ainda tinham a desculpa de estarem caçando, mas eles ignoravam todos os sinais da presença de caça: a região atropelada por um bando de krushok selvagens onde vieram beber água; o chifre quebrado de um mamute; excrementos de saiga. Como sempre, os caçadores caminhavam em silêncio; Mattak, Oiyan, Darka, Rakhan, Sorya e Fec eram os companheiros mais confiáveis da Avó, habilidosos e disciplinados.

Naiva passou a caminhar ao lado de Tae Jin. Ela queria perguntar coisas sobre ele, mas parecia tão esquisito começar a fazer perguntas do nada. Ao invés disso, caçando uma abertura melhor, ela lembrou-se do aspecto mais misterioso da história que ele estava contando.

“Como é possível haver outros mundos, como a sábia da história dizia?”

“Quer dizer os planos de existência? Fiz a mesma pergunta ao meu mestre. Ele não sabia responder.”

Ela olhou para trás e viu a Avó se posicionando atrás deles com seus passos largos e confiantes.

“Avó, você acredita que existam outros mundos?”

A Avó olhou para ela pensativa. “Sua irmã não contou nada a você sobre os planos de existência? Achei que ela teria contado tudo.”

O peito de Naiva apertou. “Você conversou sobre essas coisas com Baishya, mas nunca comigo?” Perguntou ela, indignada.

“Existe bastante conhecimento secreto que uma xamã deve saber e outros nunca aprendem.” Sem esperar que Naiva respondesse, ela se virou para Tae Jin. “Você não terminou a história de Ugin. Temos bastante distância para percorrer e não há dragões à vista no momento. Me conte mais sobre Ugin. E Nicol Bolas.”

Ao proferir o nome Nicol Bolas, sua boca se apertou em uma linha fina. Ela olhou para ele com expectativa.

O jovem assentiu obediente. Pelo pressionar de seus lábios e apertar de seus olhos, Naiva sabia que ele estava reordenando seus pensamentos, retirando-se da conversa comum com ela para a memorização de uma história antiga.

Eles caminharam em silêncio entre as árvores que sussurravam.

E finalmente ele começou a falar.


Eu não queria partir, mas precisava segui-lo. Algo importante acontecera. Me fez pensar em estar no leito seco de um riacho em um deserto, quando um aguaceiro escurece as colinas distantes. A enxurrada está a caminho, mesmo que você não consiga enxergá-la.

Durante todos os anos que vagamos, Nicol e eu cruzamos muito do continente enquanto caçamos e exploramos. O reino em expansão de nosso irmão Arcades passava longe da montanha onde nascemos. Tive que retraçar nosso caminho, e ainda assim o mais estranho e mais difícil era voar sozinho. Nicol não estava ao meu lado para conversar, caçar, ou tirar sonecas em tardes longas e sonolentas quando o sol aquecia nossas escamas. A solidão é muito boa como disciplina para a iluminação, mas até mesmo no povoado de Arcades eu meditava na companhia da sábia anciã, Te Ju Ki. Por todos aqueles dias e semanas de silêncio eu ainda conseguia ouvir o som de outra criatura viva respirando comigo.

Mas agora não. Agora eu tremia todas as noites, ouvindo apenas meus próprios murmúrios, meu remexer enquanto cavava um buraco para dormir, o sussurro das batidas do meu coração, a passagem de ar para dentro e para fora dos meus pulmões. Mas aos poucos, enquanto eu voava e caçava no caminho de volta pela terra ampla e selvagem, eu comecei a ouvir como todas as coisas respiram. Até as plantas respiram. Envolto pela respiração do mundo, nenhuma vida está realmente sozinha; cada um de nós está envolto em uma rede vasta, uma entidade entre uma miríade de miríades.

Às vezes, a densidade desta rede de vidas me dava conforto. Às vezes, o peso das coisas vivas eram uma multidão de trovão incessante. Nestes momentos, os chocalhos e rugidos da vida perturbavam meus ânimos. Às vezes a algazarra me mantinha humilde, pois dentre estas multitudes abundantes eu era apenas uma única criatura cuja existência podia ser apagada e esquecida em apenas um instante. Uma muda de carvalho pode ser esmagada pelos passos dos auroques, e ninguém saberia. Uma ave pode romper seu ovo e cair do ninho, perdendo-se na grama como se nunca tivesse existido. Não que um dragão seja tão insignificante quanto um carvalho ou um pardal, ou assim pensava eu, sem compreender que até a vida mais breve e pequenina tinha o seu lugar. Que até mesmo o nome de um dragão pode ser engolido pela passagem do tempo e se esvanecer dentro do abismo do esquecimento.

O mundo é grande, então eu não esperava alcançar meu irmão gêmeo, muito menos encontrá-lo por acaso enquanto tentava chegar lá pela rota que seguimos. Porque aquela rota fora lenta e serpentina por tantos anos, enquanto eu devia voar em linha reta e perseguição veloz, esperando apenas encontrá-lo quando chegasse na montanha onde nascemos, pois tinha certeza de que ele estava indo para lá.

Assim, um dia um ruído ribombante me sobressaltou enquanto deslizava sobre uma porção de colinas acidentadas. Pequeninos fortes de humanidade se amontoavam entre paliçadas. Fazendeiros vestidos com peles trabalhavam com pauzinhos de cavar e machadinhas de bronze, limpando terreno para plantações. O uivo de gargalhadas ecoava por um longo vale forrado de campos retilíneos, cercados por muralhas de pedra e cal que separavam o gado dos grãos que cresciam. Mas muralhas baixas de pedra não protegiam contra dragões saqueadores, com a intenção de divertir-se destruindo.

Apesar de não os ter visto por anos, reconheci Vaevictis Asmadi e seus irmãos imediatamente por suas cristas em vermelho feroz e seu comportamento agressivo. De início pensei que queimavam casas longas e granarias com tetos de palha por prazeres baratos, mas a destruição com que visitavam os povoados desafortunados era tangencial ao seu propósito principal. Estavam perseguindo um dragão. Sua querela mergulhava para dentro de qualquer canto ou vale oferecido pelas colinas enquanto fugia, tentando escapar deles.

É claro que reconheci sua forma e cores imediatamente.

“Nicol!” Gritei eu.

Se ele me ouviu, ele não deu sinal, desaparecendo por sobre uma colina e atrás das árvores. Mas meu grito chamou a atenção deles para mim.

Com um rugido, o maior deles, o próprio Vaevictis, veio à toda na minha direção. Suas asas estendidas tapavam metade do céu. Suas garras pingavam com o sangue do gado recém-retalhado.

Eu não conseguiria voar mais rápido. Naquele instante de percepção, eu congelei. Uma corrente de ar sob minhas asas me mantinha flutuando no ar, ou eu teria caído no chão quando meu campo de visão turvou e minhas chamas diminuíram. A morte me assustava, afinal; eu falhara com Te Ju Ki. A vergonha das minhas falhas eram uma pedra no meu coração, um caroço de chumbo me arrastando até o solo.

Entretanto, Nicol precisava de mim.

O que acontecesse comigo não importava, eu não permitiria que ele morresse.

Então eu procurei no meu pequenino arsenal de truques mágicos e criei um par de globos de luz transparente e efêmera do nexo de cores. Com um sopro, lancei-os na direção de Vaevictis. Os orbes brilhantes o assustaram tanto que ele tombou de ponta cabeça, tentando parar seu avanço. Freneticamente ele chamava seus irmãos que não prestavam atenção nele, queimando o vale enquanto humanos corriam aos gritos.

Ilustração: Chris Rahn

É claro, eu voei até Nicol, apesar de arriscar um olhar para trás antes de passar da colina e descer para dentro do vale. Girando no vento, os globos flutuaram suavemente contra as escamas brilhantes do dragão temeroso e estouraram gentilmente.

Seu berro assustado partiu o ar.

E então eu voei para trás de uma colina onde não podia mais vê-lo. O alívio passou por mim com um arrepio. Eu sobrevivera, afinal.

Do nada, um corpo passou ao lado do meu. Minhas garras saíram e me preparei para golpear quem me atacava.

“Que belo truque!” Gargalhou Nicol.

Precisei de um momento para recuperar minha voz, presa como estava igual a um osso em minha garganta.

“De onde você saiu?” Disse eu, rouco.

“Eu vi você. Você acha que eu abandonaria você para ser rasgado por nossos primos? São criaturas cheias de ódio, sem cérebro suficiente para compartilharem entre os quatro. Espero que aquele saco de vento quente engasgue de ódio.” Gargalhava ele suavemente enquanto voávamos.

Depois de bastante tempo, quando meu coração parou de galopar, eu gargalhei também, pensando em como Vaevictis parecia ridículo quando os globos de luz se dissolveram sem causar danos em suas escamas soberbas.

“O que eram aqueles globos?” Perguntou Nicol naquela noite. Tínhamos parado para descansar no topo rochoso de uma colina, acima de uma planície florestada.

“Uma magia que Te Ju Ki vinha me ensinando.” Pausei tentando pensar em um meio melhor de explicar o que ela estava ensinando sobre mundos e planos de existência, mas ele apenas riu pelo focinho e falou por cima da minha voz.

“Ah. Aquela velha criatura humana. Você não se cansou dela ainda?”

“Por que eu me cansaria dela?”

“Ela é humana.”

“Ela viveu mais do que nós. Creio eu.”

“Nenhum humano, por mais velho que seja, pode ser mais sábio do que o dragão mais jovem, pois nascemos com a maior dignidade, inteligência e poder de todas as criaturas.” Ele se curvou mais para perto, e seus olhos brilhavam com uma luz inquietante que eu nunca vira nele. O tom dele me provocava. “Eu aprendi algo especial. Quer saber o que é?”

Me recusei a dizer sim, pois eu realmente não gostei daquele jeito orgulhoso e provocador dele.

“Você não quer saber?" Exigiu ele com uma bufada de chama direcionada a uma árvore que não tinha culpa alguma; seus galhos superiores pegaram fogo imediatamente, queimando como uma das tochas que iluminavam povoados humanos à noite.

“Não gosto de como você fala de humanos, eu acho. Alguns deles são tolos, verdade, e alguns são raivosos, gananciosos ou egoístas, mas outros são inteligentes, criaturas sábias e carinhosas. Apesar de que você tem razão, eles realmente são pequeninos e fracos individualmente. Se quebram facilmente.”

“Sim, de fato, se quebram facilmente,” disse ele com um ronco de risadas desdenhosas.

“O que você quer dizer com isso?”

“Você verá. E vou revelar a você meu aprendizado especial de qualquer modo, porque somos gêmeos e devemos compartilhar tudo. Sabe o grande oceano, cujas ondas quebram na terra?” Ele se inclinou mais para perto, com uma curva soberba naquele focinho feroz. “Há outras terras além dele, e inclusive mais criaturas vivendo nelas.”

“Sim, eu sei.”

Um lampejo de ira iluminou seus olhos, por eu não ter me impressionado com sua revelação.

Eu tinha meu orgulho, também. Talvez eu não tenha seguido Arcades o tempo todo como ele fizera, estudando o comportamento e os costumes e as leis e as armas, mas tudo o que existia me intrigava. Assim, quando não estava meditando ou estudando magia com Te Ju Ki, eu observava todos os detalhes da vida em torno da cidade central e dos povoados próximos que foram anexados, e eles incluíam dois portos na beira do mar.

Então eu disse: “Alguns deles construíram barcos com asas chamadas ‘velas’, singraram as águas e voltaram para contar seus feitos. A ideia de usar velas como asas é bem engenhosa, não acha?”

“Tenho certeza de que dragões ensinaram tudo o que sabem, já que também existem dragões nestas outras terras. Apesar de que eu sei por certo que esses outros dragões não são como nós, e nossos irmãos e irmãs. Somos os primeiros, afinal, e portanto os mais poderosos.”

“Como sabe que fomos os primeiros? Nunca vimos estas outras terras e estes outros dragões. Eles podem ter caído das asas de nosso progenitor antes de nós.”

“Não, com certeza absoluta.”

Com isso, o que eu entendi foi que ele não queria considerar que podia ser verdade.

Às vezes não valia a pena discutir com Nicol. Enfim, eu estava com sono.

No dia seguinte, enquanto voávamos lado a lado com tempo bom e um excelente humor amigável, não quis perturbar. Talvez se eu tivesse investigado mais, eu teria algum prenúncio do que estava por vir.

Mesmo voando rápido e com objetivo fixo, levamos dias e mais dias para retraçar toda a nossa jornada. A primeira pista que tivemos de finalmente chegarmos em nosso destino veio na presença de rochas cortadas com garras, em quartos de círculos recurvos. Estas estavam à vista umas das outras aos olhos de dragões, na beira de uma planície ampla na qual pastavam bandos tumultuosos de bisões, antílopes, búfalos d’água e cervos-vermelhos.

“São marcos grandes demais para o feitio dos humanos,” disse eu.

“Estou com fome,” respondeu ele.

Trabalhando juntos, matamos com facilidade quatro espécimes polpudos e colocamos os demais para correr. Mal tínhamos nos acomodado para rasgar nosso banquete ainda quente quando o rugido de uma dragoa rasgou nossa paz idílica. Palladia-Mors mergulhou do céu, e saltamos para trás quando ela pousou com um estrondo de tremer a terra.

“Pensei que os dois tinham ido embora de vez! Agora esse território de caça é meu. Todo ele.”

Nicol a observava com cautela enquanto eu tentava acalmá-la. “Só estamos de passagem, a caminho da nossa montanha de nascimento.”

“Não vão querer ir lá,” disse ela enquanto puxava os cadáveres para longe de nosso alcance com suas garras.

“Por que não?”

“Incômodo demais. Aqueles humanos se acham melhores do que são e se dizem caçadores de dragões.” Ela farejou cuidadosamente cada animal morto, e o sangue manchava seu focinho; então, ela engoliu um antílope inteiro com dentes triturantes e uma engolida convulsiva. Olhando novamente para nós, ela rosnou com tal ronco que sacudiu meus chifres. Ela tinha o dom de se inflar e parecer duas vezes maior e dez vezes mais feroz do que já era. Eu tive dificuldade em não me afastar dela, mas sabia que não poderia dar sinal de medo em frente a uma predadora violenta. “Mato seus líderes quando tiver vontade, mas não agora. Agora eu vou comer esse delicioso banquete que vocês tiveram a conveniência de caçar para mim.”

Nicol parecia pronto para saltar sobre ela e lutar, mas com uma batida de minha cauda eu chamei sua atenção até o meu lado.

“Nós dois juntos conseguimos contra ela,” disse ele. “Somos maiores agora, quase tão grandes quanto ela.”

“Talvez, mas vale arriscar que ela fira ou mate a um de nós? Pensei que estivéssemos a caminho da montanha de nosso nascimento.”

Ele piscou uma vez e depois novamente, dessa vez mais devagar; por um instante, pensei que seus olhos giravam círculos preguiçosos que rodopiavam meus pensamentos. Talvez fosse hora de confrontar uma de nossas irmãs diretamente. . .Me sacudi para tirar a distração irritante, cavando um sulco na terra com impaciência. Nada frutífero resultaria de um conflito com outros dragões. O mundo era amplo o suficiente para vivermos facilmente em harmonia, mesmo que isso significasse ficar fora do caminho de quem guardava território com tal fervor ciumento.

“O que ela quis dizer com caçadores de dragões?” Perguntei eu. “Por que ela está evitando a montanha de nosso nascimento?”

“Descobriremos logo.”

Voamos mais e com mais fome, pois Palladia-Mors abandonou as três carcaças polpudas para nos seguir. Não havia motivo nenhum para caçarmos enquanto ela estivesse perto o suficiente de pegar qualquer carne que abatêssemos.

Mas quando a montanha apareceu ao longe com suas inclinações longas e lisas e seu formato simétrico, ela deu a volta.

Nicol ficou de olho nela enquanto ela se retirava, mas eu não conseguia tirar os olhos da montanha. Uma emoção sentimental me agitava. Não tínhamos pais - não do modo que humanos medem famílias. Tínhamos apenas um progenitor que nunca vimos e com quem nunca falamos, de cujas asas caímos como palha sacudida de um maço de trigo. A montanha era apenas o lugar imprevisto onde despertamos, uma coincidência, um acaso. Ainda assim, o pico me chamava como se tivesse uma voz feita de fios invisíveis, que me atraía para cada vez mais perto de seu coração secreto e derretido.

Montanha | Ilustração: Rebecca Guay

A montanha não mudara, ou assim pensava eu enquanto nos aproximamos. Mas a paisagem em torno dela mudara. Desde a época de nosso nascimento em queda, uma densa floresta se estendera para todas as direções em torno da montanha, cortada aqui e ali com clareiras aleatórias, feitas por uma erupção de terreno rochoso ou pela queda de alguma árvore gigantesca. É claro que a memória acre da morte de nossa irmã em uma dessas clareiras ainda estava fresca como o sangue quente das feras que matamos antes, cuja carne fora roubada de nós pela outra irmã ainda viva.

Mas agora... Que mudança encontrou nossos olhos atônitos! A floresta estava entrecortada por estradas rústicas que ligavam povoados fortificados, e cada grupo de edifícios era cercado por uma paliçada alta. Do lado de fora das muralhas, choupanas se amontoavam contra a paliçada, como um número de pedintes que estendem as mãos até uma tigela repleta de comida. Dentro das muralhas ficavam casas longas de construção mais robusta, cada uma cercada por uma cerca decorada com feixes de têxteis em tecido detalhados, e tiras com pequeninos sinos de bronze. Com cada lufada de vento, o ar tilintava.

Os portões do povoado eram o dobro da altura de uma pessoa. Eles tinham entalhada a cena rude e violenta de caçadores humanos estocando suas lanças contra o corpo caído de uma dragoa moribunda.

Mas havia algo ainda pior. A maior das casas longas se elevava no centro sobre um monte artificial de terra, cercada por uma muralha de pedra que, a meu ver, parecia protegê-la das outras casas longas. Sobre seu portão, preso a um pilar enorme, encarava a caveira de um dragão. O caminho que levava do portão até a entrada da grande casa longa corria sob arcos feitos das costelas de um dragão, presas a postes de madeira.

Nicol sibilou com um som longo, grave e furioso. “Eles transformaram nossa irmã em um ornamento!”

Eu estava chocado demais para falar.

Apesar de voarmos alto, berrantes receberam nossa chegada. Pessoas armadas correram até o topo das muralhas. Mais deles correram para colocar grandes virotes de ferro na barriga de balistas que pareciam bestas gigantes de chão. Mais rápido do que eu notei ser possível, vários destes virotes foram lançados contra nós, formando um arco mortal. Apesar de Nicol girar para esquivar-se, minha garra traseira esquerda foi cortada de raspão. O arranhão não foi grande, mas alguma espécie de substância nociva fora besuntada na ponta e seu veneno escaldou minha carne. Meu berro de dor fez os céus tremerem. Cinco gotas do meu sangue pingaram pelo corte raso, tombando até a terra; cada gota era grande como um punho humano. As pessoas se empurravam, batendo e empurrando uns aos outros para ficarem sob o sangue que caía.

Duas pessoas inclinaram suas cabeças para trás e foram atingidas em cheio com respingos do meu sangue. Uma caiu de joelhos em oração, com as mãos apertadas no peito, e aqueles que não chegaram ao sangue a tempo se prostraram em torno dela. O outro uivou em júbilo, braços erguidos em triunfo enquanto sacudia lança e facão para o céu como um desafio, ou como agradecimento pela profecia vinda dos céus.

A briga perturbou tanto a multidão que as últimas três gotas salpicaram o solo. Havia pessoas caindo ali de joelhos, enfiando terra suja de sangue dentro de suas bocas. Era uma cena apavorante, mas não podíamos nos demorar.

“Ugin!” Gritou Nicol. “Venha. Venha!”

Uma segunda saraivada de virotes saltou das balistas, em nossa direção. Voei o mais rápido que pude para sair do alcance. Minha garra latejava em uma agonia maliciosa. Uma dormência subia pela minha perna.

“Tenho que pousar, Nicol.”

“Não! Continue voando.”

Eu não tinha forças para discutir. Pela dor que nublava meus olhos, espiei mais povoados entalhados na floresta. Até mesmo o menor deles tinha pelo menos uma balista. Aqueles que viviam dentro das paliçadas usavam armas com lâminas de ferro, enquanto os que viviam nas choupanas do lado de fora trabalhavam em campos rochosos com ferramentas de pedra, sob o chicote de capatazes cruéis. Os portões da maioria das paliçadas estavam adornados com as caveiras de ursos e lobos gigantes, enquanto outras tinham esculturas que imitavam dragões. Feitas de caveiras humanas entrelaçadas, eram uma imitação pavorosa das linhas nobres de um dragão. Em quatro outros povoados, a caveira verdadeira de dragões ornamentava a casa do chefe. Era notável que estes povoados se distanciaram ao máximo do primeiro, como as pontas de um pentagrama. Mesmo com dor, notei estes detalhes.

Nicol enfim teve dó de meu estado miserável e fez a volta até o pico da montanha do nosso nascimento. Lá, fraco, gasto e exausto além da conta, pousei na rocha nua na beirada alta da cratera. Se dragões pudessem chorar, eu teria chorado.

“Aqui.” Nicol me levou até a sombra do Norte, onde a neve do ano passado ainda permanecia.

Enfiei meu pé na neve, quebrando sua crosta para dentro do gelo compactado. O alívio do frio lancinante aliviou minha carne ardente. Recostei minha cabeça no chão, resfolegando lentamente enquanto a dor diminuía.

Nicol se empoleirou no ponto mais alto da cratera, analisando a paisagem.

“Vão subir atrás de nós,” disse ele, como se acolhesse o confronto como boa notícia.

“Seria este pico alto demais para frágeis humanos subirem?” Ainda parecia impossível voar. Queria fechar meus olhos e dormir, mas não ousei. Depois de tanto tempo vivendo em meio à paz e à ordem do reino de Arcades, não conseguia compreender exatamente como este lugar era diferente.

“Não são tão frágeis quanto você imagina,” disse Nicol. “A ganância não é frágil. A ambição não é frágil. Suas armas podem matar-nos, pois são espertos. Porque trabalham juntos, assim como quando mataram nossa irmã. Virão atrás de nós, pois somos dragões. Querem tomar nosso poder para si.”

“Então devemos fugir imediatamente. Se aquele virote tivesse me perfurado mais fundo, o veneno podia ter me matado! Não me surpreende que Palladia-Mors evite este lugar terrível.”

“Ah não, Ugin. Não tem medo destas pessoas, tem?”

Ao invés de responder, eu lambi meu pé ferido, sugando sangue amargo e cuspindo-o no chão.

Ele estendeu suas asas em desafio a quaisquer humanos que estivessem olhando montanha acima, lá de baixo, para nossa altura exaltada. “Viemos até aqui para vingar nossa irmã, e vamos vingá-la.”

“Não agirei como Vaevictis e seus irmãos, assassinando criaturas inocentes com luxúria indiscriminada!”

“Você não terá que matar ninguém, irmão. Isto eu prometo a você. Eu tenho um plano - um plano muito astuto, porque eu me ensinei a fazer algo que ninguém mais sabe fazer.”


“Por agora é suficiente, Tae Jin.” A Avó ordenou que parássemos enquanto as sombras do fim da tarde se espreguiçavam por toda a terra. Sua própria face ficou oculta pelas sombras; algo que ele dissera na história a incomodara, Naiva conseguia perceber; mas ela não sabia como perguntar, ou mesmo se a Avó revelaria suas preocupações.

Ele fez um cumprimento de cabeça, obediente.

Eles chegaram no destino que a Avó desejava: uma mistura desordenada de rochas onde costumavam acampar os grupos de caça que patrulhavam as fronteiras do território Atarka. Saliências nas rochas foram aprofundadas para oferecer abrigo de vento e chuva, além de cobri-los da vista de criaturas voadoras. Havia até mesmo uma lareira montada com astúcia em uma câmara oca de pedra, disfarçada dentre outras rochas; muitas pequenas rachaduras e buracos canalizavam a fumaça lentamente pelo ar, deixando-a invisível. Além das rochas, o rio se dividia em uma série de terraços descendentes, formando uma espuma agitada cujo burburinho constante também os ocultava, de certo modo.

“Não faremos fogueiras para que os dragões não nos encontrem pelo calor e cheiro,” adicionou a Avó.

É claro, a falta de uma fogueira não trazia dificuldade para caçadores. Seu equipamento protegia contra o frio, e eles carregavam provisões.

Cumprindo sua escala de patrulheira, Naiva pegou uma tira de carne seca e foi até a beirada da linha das árvores, ainda cismada com a revelação dos mundos. Mas na verdade era porque Baishya recebera treinamentos secretos. É claro que sussurrantes viviam em perigo constante por causa de Atarka. É claro que fazia sentido que xamãs compartilhassem seus conhecimentos somente com outros iguais. Mas a sensação de ser deixada para trás ainda a inflamava.

Ela subiu em uma das rochas da beirada, se encaixando nela para tornar-se parte da pedra. Pelo menos ela tinha este mundo, e suas belezas e desafios. O ponto de visão onde ela estava dava uma vista excelente para o noroeste, por uma tundra extensa que descia pela serra leste do Qal Sisma. Onde a tundra encontrava o contraforte, um abismo vasto partia o terreno. A ravina profunda e suas rochas partidas estavam longe demais para enxergar com clareza, afogadas pelas sombras do anoitecer, mas uma bruma fina e levemente azulada subia do abismo como o hálito de uma pessoa no ar gelado da manhã.

Passos roçaram contra a rocha. Tae Jin subiu até ficar ao lado dela e se acomodar ali agachado.

“É para lá que estamos indo,” disse Naiva. “O túmulo de Ugin. A alguns dias de caminhada daqui.”

“Você já esteve lá antes?”

“Sim. Uma vez. Quando nós tínhamos doze anos.”

“Nós?”

“Oi!”

Baishya chamou baixinho lá de baixo, e depois subiu com dificuldade. O sol bateu em seu rosto quando ela chegou no topo da rocha, dando a suas feições um brilho que Naiva invejava. Ela sorria vitoriosa para Tae Jin, o que irritava Naiva ainda mais porque conversas simples pareciam tão simples a Baishya, enquanto Naiva ainda tinha dificuldades com seus desejos complicados e crescentes.

 

“Eu e Baishya, no caso, e mais algumas crianças que a Avó estava de olho.”

“No que a sábia Yasova estava 'de olho'?” Ele não olhara para nenhuma das duas, virado apenas para o abismo e o caminho por onde a luz mudava enquanto o sol se punha. Quase pareceu que alguém acendera uma fogueira azul lá embaixo, visível como traços dançantes de bruma brilhante que flutuava pela beira do abismo.

Baishya cutucou seu braço, como um aviso. “Isso é assunto da tribo, Nai.”

Irritada pela que ela dissera, e ainda indignada pelo o que a Avó mencionara, Naiva continuou, imprudente. “Atarka odeia magia. Ela a teme. A Avó pensou que se ela pudesse descobrir cedo quais das crianças provavelmente se tornariam sussurrantes, ela poderia escondê-las melhor da ira de Atarka. Ela pensou que talvez se elas dormissem perto do túmulo de Ugin, a presença ancestral do Dragão Espírito poderia despertar a magia mais cedo. E então ela podia prepará-los para esconder seus poderes de Atarka, ou mandá-los embora para se esconderem nas montanhas.”

“Nai! Pessoas de fora não podem saber dos nossos segredos.”

“Foi o que eu ouvi dizer!” Disse ela ríspida antes de virar sua atenção total para Tae Jin, que observava a conversa com um interesse cauteloso. “Ugin está morto. Não houve nenhum sonho ou profecia.”

“Não até agora,” interrompeu Baishya. “O povo-do-vento me trouxe uma visão. E parece que o seu mestre teve uma visão de Ugin também. Certo?”

Ele assentiu com a maior seriedade. “É o que meu mestre acredita. As tempestades que criam dragões aumentaram sua força desde a morte de Ugin. Ele acredita que isso significa que alguma essência do Dragão Espírito ainda permanece, e encontrou forças para entrar em contato. É por isso que ele me mandou—”

Naiva deu-lhe uma cotovelada para que ficasse em silêncio. Estar perto assim dele era quase mais do que ela podia suportar — seus olhos, seus lábios, os sentimentos tão comuns da juventude em interesse e desejo — mas isso não queria dizer que ela havia parado de observar o céu e a terra em busca de ameaças. As nuvens a oeste começaram a se empilhar, como se fossem uma tempestade chegando.

“Ali,” disse ela no mesmo momento em que um assovio veio de Mattak, que também estava de guarda.

Uma sombra estranha e desconjuntada se aproximou pelo crepúsculo, vindo bem na direção deles. Seu voo era estranhamente lento e desajeitado. Eles tiveram tempo de descer da rocha antes que a forma os sobrevoasse com sua verdadeira natureza: era o jovem da ninhada Atarka que carregava o corpo inerte do dragão de Ojutai em suas garras. Ele desceu aos poucos até onde estavam escondidos e soltou a carcaça logo além das rochas. O impacto arrepiou o chão, foi dobrado quando o jovem da ninhada pousou com força ao lado do cadáver, e com um jato flamejante fez a grama seca pegar fogo. Havia sangue da batalha pingando de marcas profundas de garras em seus flancos. Já estava bem ferido, inchado com dor.

“Saiam daí! Minha prima me conta verdades antes de morrer. Traidor! Assassino de dragões!”

Sentindo o cheiro deles, ele saltou por entre as rochas.

Baishya gritou em aviso para os outros caçadores, pois eles não os alcançariam a tempo.

“Abaixa!” Tae Jin saltou além dela, desviando das enormes patas dianteiras do dragão enquanto elas se chocavam contra o chão.

Naiva empurrou Baishya com força para trás de uma rocha, e depois rolou para ficar sob a cobertura de outra. O hálito de fogo do jovem da ninhada escaldou a grama onde elas estavam logo antes. As chamas lamberam os pés de Naiva enquanto ela preparava sua lança e espiava para fora.

Tae Jin saltou para longe de uma cauda que chicoteava. O golpe de uma pata traseira o atingiu no ombro, e ele cambaleou para trás.

O uivo da criatura parecia um trovão. “Te mato!”

Naiva saltou para um terreno aberto e gritou em sons inarticulados para atrair o olhar dele. Quando o dragão sibilou, surpreso com sua aparição repentina, Tae Jin juntou seus antebraços com força. Uma bruma congelante bruxuleou cintilante por suas palmas. Com um sibilo de poderosas magias, as fagulhas brancas se alongaram até virarem uma lâmina longa e espectral que cintilava, mas não era materializada; sua empunhadura brilhante estava nas mãos dele. Ele correu sob a cabeça da fera e incrivelmente rasgou sua barriga cheia de escamas com um poderoso golpe de sua lâmina intangível. Sua rapidez em esquivar para o lado o salvou de entranhas que jorraram para o chão em um caos pegajoso e fedorento.

A criatura caiu para a frente, sibilando quando sua cabeça bateu na terra. Tae Jin girou para trás para evitar ser esmagado, cambaleou, e caiu com dureza. Ainda assim, o dragão vivia. Ele lançou-se para a frente, tentando mordê-lo. Tanto a Avó quanto Fec gritaram com o dragão, avançando por cada lado para estocar seu pescoço, tentando tirá-lo de perto. Baishya invocou sua magia novamente, deslizando uma rocha gigante de lado até que prendesse o ombro do jovem da ninhada. Sem ferimento algum, ele teria se sacudido e se libertado, mas ele foi enfraquecendo.

Naiva enfiou a ponta de obsidiana de sua lança no olho do dragão, e o material pontiagudo cortou a superfície dura até atravessar o orbe prateado, atingindo o cérebro macio embaixo dele. A fera se arrepiou, e com um último respiro, tossiu brasas brilhantes.

Naiva libertou sua lança com um puxão. As brasas se apagaram, afundaram na terra, e morreram.

O vento batia em seu rosto, despejando em suas narinas o aroma de mel que o sangue de dragão carrega. Matar um dragão era um crime. Ainda assim ela exultava, pois não tinha hesitado. Como caçadora verdadeira, ela não tremeu antes de atacar. Dragões eram mais poderosos do que humanos, mas podiam ser mortos.

Ainda assim, o que era a espada espectral que abrira a barriga dele? Tae Jin estava morto?

Cuidadosamente, ela deu a volta no corpanzil do cadáver, com seu aroma de mel e enxofre. Tae Jin estava deitado de costas, com o rosto mole e olhos fechados, mas ainda respirava. Havia sangue fresco respingado em sua túnica. O tecido fora cortado no ombro direito, e uma parte dele estava dependurada. O tecido rasgado expunha sua musculatura definida, e por ela a marca brilhante como o talho de uma garra gêmea de dragão que cortara do ombro até o tórax. Ela nunca vira uma marca assim antes, tão impressionante e tão bela.

Ajoelhando-se, ela tocou o rosto dele com leveza. Seus olhos se abriram. Ao vê-la, ele piscou uma vez, e depois duas vezes para ter certeza de que não via dobrado.

“Você é muito corajosa,” disse ele.

Ela enrubesceu, tão contente com o elogio que nem conseguia responder. Mas quando ele sorriu, enfim ela encontrou sua voz. “Ele está morto. Nós o matamos. O que era aquela arma que você usou?”

“Você mentiu para nós, Tae Jin.”

A voz endurecida da Avó interrompeu enquanto o restante do grupo se amontoava com lanças eriçadas, encarando o dragão morto e o jovem andarilho.

“Você veste a marca de um guerreiro lumespectro. Shu Yun fez uma barganha: que todos os guerreiros lumespectro morreriam, para que o restante do povo Jeskai tivesse permissão de viver. Então, me diga: como você pode existir?”


Coleção Básica 2019 Arquivo das Histórias
Perfil do Planeswalker: Nicol Bolas
Perfil do Planeswalker: Ugin, o Dragão Espírito
Perfil do Plano: Tarkir