Conto anterior: Coisas Não Vistas


A Avó era uma mulher formidável, outrora conhecida como Yasova, Garra de Dragão do clã Temur. Agora que o título fora proibido pela soberana dragoa, ela passou a ser chamada Primeira Mãe dos povos da tribo Atarka. A senhora estava em meio a um amontoado de pedregulhos ao lado da carcaça ainda quente de um jovem da ninhada Atarka morto. Mas ao invés de examinar o dragão, ela olhava de cima para o jovem cujo ombro trazia o corte raso da garra de um dragão. Seu sangue escorria sobre a marca brilhante de um guerreiro lumespectro, que subia acima de seu ombro e sobre seu tórax.

“Você ocultou sua mágica de nós, Tae Jin. Todas as nossas vidas estão perdidas se os dragões descobrirem que abrigamos um guerreiro lumespectro. Me conte a verdade, ou precisarei matar você.”

Naiva supunha que a lâmina lumespectra que Tae Jin conseguia invocar usando magias proibidas Jeskai poderia ser páreo até mesmo para a habilidade da Avó como lutadora, talvez até mesmo para o grupo de caça inteiro; entretanto, o jovem se ajoelhou com a cabeça abaixada humildemente. Ele não fez ameaça alguma. Ele não vociferou. Ainda assim, ele também não tremeu. Ele não tinha medo dela, ou da morte.

“Minha mãe era uma escriba a serviço de Shu Yun antes da queda. Ela sobreviveu ao expurgo de Ojutai e se dedicou a salvaguardar o que ela pôde da história e conhecimentos do Caminho Jeskai. Alguns andarilhos e batedores conseguiram escapar e se esconder nas montanhas. Estas pessoas carregam tudo o que ainda permanece dos meios de vida antigos. Minha mãe me mandou para a terra selvagem para estudar com o homem que se tornou o meu mestre. Foi ele quem me mandou vir até você. Ele me ensinou o caminho da lâmina de lumespectro para que ela não fosse perdida.”

“O fato de você ser um guerreiro lumespectro é uma surpresa desagradável,” disse a Avó. “Seria isto parte de uma armadilha vinda de Ojutai? É exatamente o tipo de truque tortuoso que um oponente astuto e inescrupuloso usaria para tirar sua presa do esconderijo. A presa sendo eu, e o que ele acredita que eu saiba.”

“Meu mestre recebeu uma visão do Dragão Espírito.”

“Ugin está morto.” Naiva achava que teria que se repetir para sempre. “Não é verdade, Avó?”

“Continue, Tae Jin.” A Avó ergueu a mão, sinalizando para que Naiva ficasse calada.

Como o gesto diminuía Naiva, dispensada assim casualmente. Tae Jin nem olhou para ela quando a respondeu.

“Sim, Ugin está morto, mas meu mestre recebeu uma visão ainda assim. O Dragão Espírito disse a ele que era chegada a hora de compartilhar a história contada aos nossos ancestrais Jeskai.”

“Uma história de que nunca ouvi falar ou suspeitava que existia.” A Avó grunhiu para marcar seu desprazer. “Shu Yun gostava de guardar segredos—”

“Ele não é o único,” murmurou Naiva, mesmo sabendo como era infantil e desrespeitoso.

Baishya a cotovelou com um sibilo de desaprovação.

A Avó continuou falando como se não tivesse sido interrompida. “—Então não é surpresa que ele tenha mantido a história de Ugin um segredo para nós.”

“O Caminho Jeskai está por um fio. Meu mestre diz que se a história for conhecida em mais de um lugar, é mais provável que ela sobreviva.”

“Sobreviva para que propósito?” Naiva exigiu saber. “Os dragões são nossos soberanos agora. Os meios antigos são apenas cadáveres deixados para as aves de rapina.”

“Se perdermos o passado, nos perdemos,” ralhou a Avó. Ela acarinhou sua manta, feita da pele de seu amado Anchin, e estava prestes a dizer algo quando Fec chamou com voz suave.

O velho orc subira em uma pedra achatada, e sua forma era visível como uma sombra mais escura enquanto as últimas luzes do dia sumiam. As estrelas brilhavam acima, mas ele olhava na direção do horizonte onde nenhuma estrela estava visível. Ele ergueu o rosto e inalou profundamente.

“Tem uma tempestade chegando,” disse ele.

As nuvens ao norte se empilhavam como um mau agouro sobre a fronteira acidentada que Atarka considerava ser o limite de seu território de caça. Lampejos de trovão tocavam os topos - veios de luz que lampejavam e morriam. Eles estavam longe demais para ouvir trovões.

Ilha | Ilustração: Florian de Gesincourt

“É uma tempestade de dragões, se aproximando rápido,” adicionou Fec. “Conheço bem seu cheiro e gosto.”

A Avó franziu o cenho. “Não gosto de ficar assim tão perto dos dragões mortos, mas não podemos suportar uma tempestade de dragões na tundra aberta. Será ainda mais perigoso à noite. Nos abrigaremos entre as rochas até que passe. Examinarei o ferimento do jovem quando chegarmos no abrigo. Consegue andar?”

Antes que Tae Jin conseguisse responder, Fec interrompeu. “Você já gastou bastante de suas forças curando-o, Primeira Mãe. Muito mais, e você vai se ferir.”

“Consigo andar.” Tae Jin cerrou seus dentes quando ficou de pé. Quando Naiva deu um passo à frente para ajudá-lo ele gesticulou para dispensá-la, Baishya tomou o cotovelo da irmã como se pensasse que sua irmã gêmea não tivesse entendido a indireta.

A Avó mandou que Mattak, Oiyan e a quieta ainok Darka ficassem de guarda em torno da entrada oculta para a câmara rochosa. O restante deles teve que se abaixar para passar por uma passagem baixa cortada entre várias colunas de chaminé. Nenhum dragão conseguiria entrar, e as chaminés impediam que hálitos de fogo os alcançassem, se dissipando antes de chegar na câmara central. Bem no fundo da rocha, Rakhan acendeu uma fogueira. Em sua meia-luz, a Avó examinou o corte.

“Não é um corte profundo, vai curar sozinho. Meninas, guardem nosso visitante.”

“Aonde você vai?” Indagou Baishya.

“Esta é uma chance rara para que Fec e eu peguemos os corações e o fígado do jovem da ninhada, agora que a barriga já está aberta. Atarka não precisa saber.”

“Não quer minha ajuda, Avó?” Baishya perguntou ao mesmo tempo que Naiva disse: “Eu quero ver como são as entranhas de um dragão!”

“Não hoje com uma tempestade de dragão chegando. Vocês duas ficam aqui, protegidas.”

“Sim, Avó,” disse Baishya, obediente.

Naiva bufou com força. Ela queria reclamar, mas não na frente do estranho.

A Avó deu-lhe um beliscão na bochecha. Ela não tinha um toque gentil, mas o gesto era um sinal de afeto, apesar de dolorido. “Você pode cuidar do corte do rapaz, Naiva.”

Ela saiu com Fec, deixando Rakhan e Sorya fazendo um ensopado com a carne seca das suas provisões. Baishya deu a Naiva um olhar inquisitivo que dizia: “O que você tem?” Naiva se virou enquanto Tae Jin se acomodava no chão, limpando gotas de sangue que respingaram em sua face.

“Machuca?” Perguntou ela.

“Não o suficiente para importar.”

Baishya aqueceu água com pétalas de flores de Coração-da-Terra mergulhadas, sobre a fogueira, em uma pequenina panela de cobre. Ela torceu um pano molhado. Naiva puxou-o da mão dela, mas hesitou. A pele desnuda de Tae Jin brilhava à luz da fogueira. A mera ideia de tocá-lo, mesmo que com um pano, a fez respirar como se estivesse no meio de uma tempestade de asas batendo.

Tae Jin encontrou seu olhar e assentiu com a cabeça, para que ela soubesse que ele aceitaria os cuidados dela. Retraindo-se muito sutilmente, ele puxou sua túnica rasgada, expondo a pele dourada e músculos firmes em seus ombros e tórax.

Tímida, ela limpou a garganta, pois ela conseguia perceber o olhar matreiro de Bai fixo sobre ela, com uma diversão zombeteira. Como se a Bai nunca tivesse sentindo-se sem graça assim! Ainda assim, lhe ocorreu o fato de que ela e sua irmã gêmea nunca fofocaram sobre outras pessoas da idade delas, se lhe eram atraentes ou não. Bai dirigiu sua atenção para lavar o sangue úmido da túnica em uma tina entalhada na rocha. O fato do torso bem-apessoado de um jovem não ser do interesse de sua irmã gêmea deu a Naiva um suspiro de confiança.

Com os lábios empertigados e fechados, ela limpou com cuidado o sangue do ferimento, com leves batidinhas ao longo do corte raso, atravessando a marca brilhante. A respiração dele não se alterou nem uma vez, inspirando e expirando, apesar de ele ter tremido suas pálpebras uma ou duas vezes. Depois de algum tempo, ela entregou o pano manchado de sangue a Baishya, e espremeu o sumo das folhas e flores no corte.

“Que ervas são essas? Não conheço essas, das minhas montanhas.”

“Chamamos de cura-tudo porque ela impede que feridas fiquem purulentas, e diminui hematomas,” disse ela, e continuando com ousadia: “Quantos anos você tinha quando sua mãe mandou você embora?”

“Tinha doze.”

“Você nunca mais a viu?”

“Não.”

“Você sente saudade dela?”

A expressão grave que ele fez deu vontade de ter feito uma pergunta que o fizesse sorrir. “Claro que sinto. Ela é uma mulher educada que já realizou muitas coisas. Como eu disse, ela é uma das poucas escribas que serviam a Shu Yun e sobreviveram à queda. Ela sempre soube que o dever dela era me mandar para dentro da terra selvagem. E vocês?”

“Nossa mãe está morta. Atarka a matou por ser sussurrante.”

“Sussurrante? Você já usou essa palavra antes. Eu não a conheço.”

“Ela quer dizer um xamã, como as que o seu povo tem.” Baishya enfiou um cotovelo nas costelas de Naiva como lembrete de que apenas xamãs Temur conheciam o segredo de sussurrar, ou seja, falar mente a mente com outros xamãs. Naiva sabia que esta habilidade existia porque as duas meninas compartilhavam tudo; era parte da ligação que tinham por ser gêmeas. Mas evidentemente isso não era mais verdade.

Ele olhou de uma para outra, lendo algo em suas expressões faciais. “É verdade que dragões temem nossa magia. Eles temem o que não podem controlar, ou o que não pertence a eles.”

“Vale a pena?” Perguntou Naiva, sem conseguir esconder um tom amargo em sua voz.

“O que você quer dizer?”

“Ter perdido nossas mães. Ou qualquer outra pessoa, só para manter as tradições antigas vivas. Os dragões são nossos soberanos agora. Talvez seja melhor descartar o que eles proibiram.”

“Melhor para quem? Para os soberanos dragões, com certeza. E o respeito e o dever que devemos a nossos ancestrais?”

“Talvez seja melhor deixar os mortos e se concentrar na caçada de hoje e na sobrevivência de hoje.”

Ele a olhou de esguelha e depois meneou a cabeça, com o cenho franzido. Ela o decepcionara, e manteve os olhos fixos no chão para esconder como estava mortificada. Ela queria que ele pensasse bem dela, e agora ela nem sabia o que dizer.

Em um tom frio, ele disse: “Você acha que seria melhor para a Soberana Dragoa Atarka matar sua irmã, como matou sua mãe? É isso o que está propondo?”

“É claro que não! O que eu quero dizer é que todo mundo morre. Talvez estejamos tentando manter os antigos meios de vida em excesso quando eles morreriam naturalmente ao longo do tempo,” murmurou Naiva.

“O que tem de natural na morte delas?” Perguntou Tae Jin, calmamente. “Os meios de vida antigos, como você chama, não morreram de velhice ou da negligência de quem os seguiam. Foram intencionalmente caçados e mortos pelos dragões - pedaço a pedaço, memória a memória. Mantendo-as vivas, desafiamos os dragões ao invés de aceitar a derrota. Talvez seja algo pequeno. Talvez nada disso importe em algumas gerações. Mas talvez importe. Mas talvez só importe se algo for deixado para ser encontrado - mesmo que seja pequeno e não pareça importante. É por isso que minha mãe me mandou para dentro da terra selvagem.”

Baishya agachou-se do outro lado de Tae Jin, oferecendo a ele linha e agulha. “Sim, eu entendo, Tae Jin. Sigo um caminho parecido. O que mantemos vivos é o que nos costura ao passado. O futuro não foi escrito. Você quer que os soberanos dragões sejam os únicos árbitros do que venha a acontecer, Nai?”

“É claro que não. Não foi isso que eu quis dizer.” Mas de certo modo, fora exatamente o que as palavras dela significaram. Como é irritante quando mostram que você está errada!

Tae Jin tentou pegar a agulha. Mover seu braço e ombro fez com que se retraísse involuntariamente. Naiva se inclinou e pegou a agulha dos dedos dele.

“Deixe o corte sarar. Posso consertar sua túnica.”

“Temos muito em comum," disse Tae Jin para Baishya. Os dois começaram a comentar sobre seus treinamentos cuidadosamente, apesar de estar claro que os dois falavam em tangentes, sem intenção de revelar muito sobre o folclore secreto de suas respectivas tradições. E em especial não na frente de alguém que não fosse xamã!

Naiva amava histórias sobre caçada porque eram diretas. A experiência e a habilidade importavam, mas o objetivo era simples e o resultado era claro. As pessoas precisam comer. Quem abatesse caça podia alimentar aos outros, e assim seriam os membros mais valiosos da tribo. Mas ela não sabia como dizer isso quando Baishya e Tae Jin já estavam debatendo folclores e magias que ela não conhecia, e que nunca compreenderia.

A ideia desta falta nela a mordiscava como ratos em suas entranhas. Com os lábios apertados, ela se dedicou a consertar a túnica. Se ela mantivesse suas mãos ocupadas, ela não precisaria se ressentir com sua irmã. O abrigo estava quieto, com a fogueira crepitando e a panela de caldo em fervura baixa. Sorya e Rakhan puxavam água do rio para uma cisterna nos fundos do cômodo, trabalhando para que tudo ficasse seguro.

“Sua mão é firme na costura, Naiva,” disse Tae Jin, abruptamente.

Perto do fogo estava quente; suas bochechas pareciam ter escaldado.

“Todo caçador deve conseguir consertar cada peça de seu equipamento.” Ela passou o tecido pelas mãos. O tecido era mais liso e mais leve do que qualquer pano que ela tocara na vida. “Do que isto é feito? Nós usamos peles e feltro.”

“Você nunca usou lã?”

“Nada delicado assim. Alguns dos anciões usam capas de lã para dormir, já que é difícil para eles se manterem quentes. Nós não tecemos essas capas. Nós fazemos escambos com o seu povo e com os Dromoka.”

“É feito com lã de cabrito.”

“Cabrito? De cabrito montês?”

“Não, de um tipo diferente de cabrito. Um tipo menor e domesticado que vive com humanoides. São criaturinhas intrépidas que vivem nas montanhas de onde eu vim.”

“São montanhas diferentes das nossas?”

Ele abriu um sorriso largo. “Nunca viajei em suas montanhas, então não saberia dizer.”

“Como você chegou até aqui? No caso, como você sabia o caminho? O dragão perseguiu você o tempo todo? Ou ele veio atrás de você depois?”

“Tae Jin vai ter que esperar para responder a estas perguntas,” disse a Avó.

Ela chegou apoiada em sua lança, parecendo exausta. As duas meninas pularam de pé imediatamente para tomar seus braços, uma de cada lado. Elas a acomodaram sobre o manto feito com a pele de Anchin. Ela se recostou na rocha com um suspiro cansado.

“Onde está o Fec?” Indagou Naiva.

“Escondendo os miúdos em sacas pelo rio, para ocultar o cheiro. Meus ossos estão velhos.” Ela cerrou seus olhos. Por um momento aterrorizante, Naiva achou que ela tinha desmaiado, mas estava apenas descansando.

Após um momento de silêncio, ela se dirigiu ao jovem com seu tom costumeiramente curto e direto.

“Há mais na sua história. Posso ouvir.”

Ele vestiu sua túnica consertada. As partes molhadas de onde Baishya lavara as manchas de sangue evaporavam lentamente com o calor da fogueira. O vento ganhava velocidade lá fora, e era ouvido como um gemido de súplica pelo túnel de entrada. A fumaça subia até as fendas na câmara de pedra, e quando ele começou a falar, pareceu para Naiva que os tufos de fumaça giravam e se torciam no ritmo de suas palavras, como se transformassem nas imagens do próprio conto, pois vozes e palavras carregam uma magia que permite ver o que não foi testemunhado pessoalmente.


Sofri uma noite miserável, banhada por ondas sucessivas de suores e calafrios enquanto o poder do veneno diminuía lentamente. Não me admira que quatro caveiras de dragões se uniram à de nossa irmã Merrevia Sal, como adornos sobre portões. Eles apenas precisavam ferir seus alvos e depois persegui-los enquanto enfraquecem.

Mas eu era de fibra mais forte, ou talvez apenas sortudo o suficiente por receber apenas um arranhão ao invés de um ferimento mais profundo onde o veneno poderia alcançar meus corações. Pela manhã eu me sentia lerdo, mas pelo menos conseguia estender e retrair minha garra sem sentir dor, apesar de ainda sentir minha perna dormente.

Fogueiras de vigília queimaram a noite toda lá embaixo. Ouvimos um burburinho distante de atividade, como se tivéssemos sacudido um formigueiro. Quando a luz mudou, os grandes fogos foram apagados. Berrantes retumbaram com uma vontade estridente. Nicol passara a noite toda em contemplação silenciosa, empoleirado no ápice da montanha. Com o som dos berrantes, ele riu suavemente, como se achasse tudo aquilo terrivelmente divertido. Eu não estava me divertindo nem um pouco.

“Devemos ir embora,” disse eu. “Eles não têm medo de nós.”

“Logo, vão aprender a ter medo.” Ele esticou seu pescoço, mudando de posição para ver melhor a base da montanha. Um sibilo de fogo desceu por suas narinas. “Que estranho. Um viajante solitário está subindo em nossa direção. Que humano frágil ousaria?”

Ilustração: Yongjae Choi

“Talvez seja uma armadilha.”

Com a curiosidade atiçada, voei para sair das sombras e ficar ao lado dele. O sol nascente preencheu meu campo de visão. Uma pequenina forma subia penosamente, caminhando com dificuldade por um longo espalhamento de rochas, escombros de uma erupção antiquíssima. Enquanto o bípede se aproximava, ele acenava alegremente e, com um sorriso aberto e curiosamente relaxado, continuava a subir até nós.

“Não o queime,” sussurrei quando Nicol ergueu sua cabeça e se inclinou para a frente, como se fosse saltar sobre aquela alma corajosa.

“Queimar é tão bruto, Ugin. Estou desenvolvendo métodos mais sutis. De qualquer modo, não creio que seja um humanoide verdadeiro.”

“Irmãos! Saúdo a vocês.” Chamou o bípede. “Estou surpreso em vê-los aqui. Este lugar não é mais seguro para os nossos.”

“Chromium Rhuell?” Me afastei, atônito.

Nicol se apoiou em suas patas traseiras, bufando irritado. “Como você faz isso?”

“Faço o quê?” Perguntou o bípede, que parecia externamente com um humano pleno, exceto pelo fato de seus olhos brilharem como safiras, refulgentes com o poder dracônico.

“Transformar-se em um humano tão convincente.” Nicol cheirou o ar e fez uma careta. “Você tem até o cheiro. Rançoso e crédulo.”

“É um truque que me ensinei, para caminhar entre eles.”

Nicol lançou uma olhadela para mim, a fim de ver como eu responderia a esta afirmação admirável.

“O que você observou, Irmão?” Indaguei eu.

“Humanos são bastante fascinantes, e há muito a saber sobre eles. Por onde eu deveria começar?”

“Com os que vivem aqui, à sombra de nossa montanha de nascimento,” disse Nicol.

A face humana veste expressões como se fossem roupas, lançando emoções ao bel prazer. Com o cenho franzido, Rhuell meneou sua cabeça humana em desaprovação, batendo levemente seus punhos um no outro. “Estes humanos são assassinos de dragões. Seu chefe é um velho que lutou contra um dragão quando era jovem, e ainda se gaba disso por horas a fio, sentado sobre um trono feito de seus ossos. Ele decretou que qualquer pessoa que mate um dragão se unirá à tropa de seus herdeiros.”

“Seus herdeiros?”

“Os que talvez esperem liderar como chefes depois que ele morrer.”

Nicol deu um ronco grave, como se a resposta o deixasse contente. “Entendo. Que conveniente.”

Eu teria perguntado o que ele quis dizer com ‘conveniente,’ mas Chromium Rhuell já tinha continuado a falar.

“Não é só isso. O chefe alega que um favorecimento divino o elevou acima de seus vassalos imundos. Quem for tocado pelo sangue de um dragão, ou quem o come ou bebe, é considerado santo e pode viver uma vida de fartura e descanso, enquanto os menos afortunados os servem como escravos.”

Ilustração: Slawomir Maniak

Nicol riu feito criança. Sua diversão astuta me incomodava. “Quem for forte ou esperto o suficiente vai ficar acima de quem for fraco e burro, não é mesmo? Estes são os primeiros humanos que vi sem me dar nojo, com suas fragilidades e adulação rastejante.”

Com um rosnado em fagulhas, me virei contra ele. “Nicol! Como pode falar com tanta aprovação das pessoas que mataram nossa irmã? Pensei que tivesse voltado para vingar sua morte.”

“Agora você aprova a vingança, Ugin? Pensei que você favorecia períodos entediantes de meditação dentro dos domínios sem graça de Arcades.”

“Não fiz nada para merecer seu desdém. Na verdade, não gosto deste tom de desprezo vindo de você. Especialmente considerando que eu salvei você das garras de Vaevictis!”

Esperava que ele fosse me responder com temperamento explosivo, mas ao invés disso ele enfiou a cabeça entre as patas dianteiras e semicerrou seus olhos. Alguém que não o conhecesse bem poderia pensar que se banhava no sol, relaxado e tranquilo, entediado com nossa conversa. Mas eu já o vira várias vezes relaxando enquanto observava Arcades e os humanos desta mesma maneira, e uma apreensão incômoda arranhou minhas entranhas.

“O que você propõe agora que andou entre eles e estudou seus meios de vida, irmão Rhuell?” Perguntou ele, com seu tom mais racional.

“Pretendo consultar com Arcades. Minha recomendação é que destruamos o chefe, seus herdeiros e acólitos, queimar todos os templos e salgar os campos. Para conseguir, vamos precisar da cooperação de nossos irmãos e primos.”

“Tal destruição parece mais o modo que Vaevictis lida com as coisas; não é do seu feitio, irmão, com suas observações desapegadas,” disse Nicol com um tremor de focinho que se curvou para formar um sorriso zombeteiro.

“Se você sobrevoar este território, saberá o que quero dizer.”

Com uma voz afável e sedutora, Nicol disse: “Irmão Rhuell, não vamos seguir o ímpeto de fazer chover fogo. Você não seria o primeiro a dizer que há coisas a serem aprendidas com eles?”

“Aprender com eles? Evitar seria a verdade! Depois do desaparecimento de três dragões, eu vim até este lugar para descobrir o que estaria acontecendo. Eu vi os caçadores do Chefe prendendo e matando um pequeno dragão recém-saído do ovo, jovem e vulnerável. Além das balistas cujos virotes conseguem perfurar nossas escamas, seus feiticeiros imbuíram magias em um veneno para que fique forte o suficiente para envenenar até mesmo a nossa carne. A ameaça contra todos nós é grave, caso eles compartilhem estes conhecimentos sobre como matar-nos com outros humanoides.”

Nicol soprou um fio de fumaça de sua boca, abrindo um sorriso cínico. “Então, você se contenta se matarmos os inocentes que trabalham além dos regentes orgulhosos?”

“Não, não foi isso que eu quis dizer. Cortar a cabeça mata o monstro. Destruir a casa do chefe e seus templos os força para que se mudem da montanha do nosso nascimento, e para longe dos ossos de nossos primos - foi isso o que eu quis dizer.”

“Tal destruição talvez faça com que o menor número deles morra. Os armados ainda conseguirão cortar caminho para longe da destruição e se basear em outro lugar. Não seria o correto?”

“Não me importo onde os sobreviventes vão. São criaturas sencientes e conseguem controlar seus próprios destinos, contanto que não levem suas tradições de matança de dragões.”

“Está dizendo que humanos podem se matar e atormentar contanto que deixem os dragões em paz?”

Os olhos humanos pulsaram com irritação, dando um vislumbre do poder oculto de Chromium Rhuell. “Você distorce minhas palavras. Eu observo. Não interfiro com o modo com que se comportam entre si.”

“Confesso que tal filosofia é ligeiramente vazia, na minha opinião. Uma lei para eles, e uma lei diferente para nós...”

“Nicol tem razão,” disse eu, na pressa de tentar aplacar ambas suas iras, “mas não quer dizer que não devamos consultar com Arcades sobre o que fazer.”

Mas a ira de nosso irmão mais velho fulgurou em um lampejo desconcertante de luz azul. O ar em nossa volta rodopiou. Uma forte lufada de vento me empurrou para trás. Quando a bruma branca e cegante se dissipou, Chromium Rhuell estava ali em toda sua magnificência dracônica, se assomando sobre nós, brilhando como um espelho em chamas pela luz refletida nele. Suas asas estavam estendidas ao largo, e a crista sobre sua face refletia o sol em meus olhos, então eu mal enxergava.

Ilustração: Chase Stone

“Entendo o que está fazendo, Nicol Bolas. Você distorce palavras para as formas que você deseja, e depois as retorce para que se encaixem com os seus desejos. Você é o menor de nós, o último a cair, e não é nem um dragão inteiro - sendo só metade, ligado como está a Ugin. Nunca mais tente me desafiar, ou irá se arrepender.”

Em uma algazarra de asas, ele voou, pegando a corrente de ar que subia em espirais para o alto, mais e mais, e até mesmo nossos olhos perspicazes o perderem de vista.

Nicol suspirou cálida e longamente.

“Por que o provocou?” Exigi saber. “Você realmente distorceu as palavras dele.”

Ele não disse nada e se manteve imóvel, observando os céus, e depois correndo o olhar para o brilho do sol que altera a paisagem. Humanos não podiam olhar para o sol por muito tempo, pois ficariam cegos - mas nós dragões podemos ver o esplendor luminoso por quanto tempo desejarmos. Como Te Ju Ki me disse uma vez, todas as criaturas dependem do sol para viver, mas dragões são as únicas criaturas que, assim como o sol, podem queimar sem consumir a si mesmos.

“Templos, herdeiros e sangue,” murmurou Nicol. Com uma expressão pensativa em sua face, ele curvou a cabeça e raspou seus chifres no chão, deixando uma marca - o sinal de sua presença ali sobre as rochas no alto da montanha de nosso nascimento. E então ele se esticou com as pernas traseiras. “Está vendo, Ugin? Nossos inimigos estão chegando. Vamos descer e encontrá-los.”

Um grande grupo de pessoas armadas deixara o povoado principal, liderados por uma companhia de guerreiros montados, vestindo armadura de escamas, e uma liteira acortinada carregada por seis jovens fortes. Este pequeno exército estava acompanhado por mulas que puxavam quatro balistas sobre rodas. Habitantes bem-vestidos e bem-alimentados estavam sobre andaimes, jogando coroas de flores para os guerreiros de saída. Trabalhadores malvestidos, magros e exaustos se ajoelhavam de cada lado da estrada, com as cabeças baixas e mãos acima dos olhos, cantando louvores em frases memorizadas: “Que poderosos nos protejam” e “o sangue rege sobre os exangues.”

Cantando uma marcha robusta, orgulhosos guerreiros caminhavam a passos largos por uma estrada cortada através da floresta que levava até a base da montanha. Aqui, em uma clareira nas inclinações mais baixas, uma paliçada bonita de troncos fechava uma grande área retangular dividida em três seções. As balistas foram colocadas do lado de fora da paliçada. O restante do exército preencheu a seção mais próxima do exterior, passando sob um portão entalhado na forma de um dragão moribundo. Neste grande local de montagem, os soldados entraram em formação e se ajoelharam, curvados com as mãos pressionadas sobre as faces. O contingente montado seguiu sob um segundo portão, entalhado com mais detalhes e pintado, com a imagem de um homem coberto de sangue, com uma lança em uma das mãos e uma garra de dragão na outra. Ali, cavalariços levaram os cavalos até o abrigo de estábulos abertos, enquanto os cavaleiros desmontados acompanhavam a liteira acortinada a pé, até o terceiro e último portão.

Aqui, eles também se ajoelharam e cobriram suas faces em submissão - todos, menos dois: um homem de meia-idade com atitude orgulhosa, e uma jovem com cicatrizes no rosto e um olhar feroz. Os dois usavam elmos adornados com uma crista feita com dentes de dragão. Eles tiveram permissão de passar sob um portão que era, para o meu horror, a espinha de nossa irmã, curva e presa com arame e tiras de couro.

O pátio ali dentro continha um lindo templo, em proporções perfeitas que formavam um quadrado exato, com uma pilha de três telhados construídos com astúcia, um sobre o outro, cada um deles pintado com olhos e sóis alternados. A liteira foi carregada escadaria acima até a frente do templo, e colocada no chão. Imediatamente depois disso, os carregadores se retiraram para uma cabana pequena e fechada. Os dois aios abriram as cortinas, e um homem robusto de cabelos brancos saiu de dentro, com ajuda deles. Ele tinha uma face gananciosa, e as mãos grossas de um homem que se acostumou a agarrar tudo o que quisesse ter. Sob as rugas, manchas de idade e o queixo duplo estavam as linhas vagamente familiares do líder daqueles mesmos caçadores que mataram Merrevia Sal. À medida dos humanos, aquilo acontecera há muito tempo atrás, pois na época ele era um jovem forte e vigoroso. Era difícil reconciliar minha memória daquele caçador com o chefe impaciente que vociferava, esfolando seus aios porque não o sentaram rápido o suficiente em um estofado sob o pórtico do templo. Eles sofreram o abuso sem nem piscar, apenas trocando uma breve olhadela - e aquela olhadela carregava sua própria tensão, como dois tigres que perseguem a mesma presa.

Meus ossos vibraram. Sussurros corriam pela minha mente enquanto o vento corria sobre o pico da montanha.

Ela é mais jovem do que você, e o chefe gosta mais dela porque pensa que ela é mais ousada e corajosa. Ela pretende perdurar mais do que você e mandar pisotear você quando ele morrer.

Ele não confia em você, nunca confiou. Ele considera você uma arrivista, indigna, instável, e vai mandar um de seus espiões apunhalar você pelas costas no primeiro momento em que tiver oportunidade.

Ilustração: Bastien L. Deharme

Uma nuvem cobriu o sol brevemente, soltando minha mente destas imaginações vexatórias.

Lá embaixo, uma sacerdotisa cujos olhos foram queimados se aventurou para fora do templo, vinda do interior escuro. Ela trouxe um copo feito com um osso de dragão entalhado. O copo continha sangue de dragão, coagulado e bolorento, mas ainda assim o chefe o bebeu com deleite, oferecendo as borras aos seus dois companheiros. Mais sacerdotisas se apressaram para lavar seus pés inchados e face avermelhada.

“Provem o seu valor,” disse ele para seus companheiros. “Tragam a cabeça do dragão que minha balista feriu.”

Sinos retiniram e tambores retumbaram. Os guerreiros no outro pátio uivaram com tal tom que, mesmo a esta distância, arrepiaram meus ossos terrivelmente. Ossos que estes humanos horríveis desejavam para adornar seus palácios e templos.

“Curioso, não é?” disse Nicol.

“O curioso é por que ainda estamos aqui assistindo e não voamos atrás do nosso irmão.”

“Você não acha isso tudo informativo? Os dois que cuidam dele com tanto asseio são dois de seus herdeiros.”

“Como você sabe disso?”

Ele riu, e não respondeu. “Então, onde estão os outros dois herdeiros?”

“Nos outros povoados com caveiras de dragões, certamente.”

“Exatamente. Isso vai ser fácil.”

“O que vai ser fácil?”

“Você não encontrou a fraqueza na filosofia deles ainda, Ugin? Estou decepcionado com você.”

Ele deu um rugido como um trovão e tomou os céus com as asas estendidas. Ele tinha tanta certeza de que eu o seguiria... E eu o segui. Chromium Rhuell podia falar com sensatez, mas eu não tinha mais motivos para confiar nele do que confiava em Nicol. Afinal, ele não era meu gêmeo, apenas um irmão da mesma batida de asas que não era muito respeitoso comigo e com Nicol, de qualquer modo. Aquele comentário sobre sermos “os últimos a caírem” também me atingira, mesmo que tivesse sido para meu irmão gêmeo.

Voamos na direção do herdeiro que vivia mais longe. Mensageiros tinham sido enviados do complexo do chefe durante a noite. Quando Nicol viu um jovem correndo na mesma direção que estávamos seguindo, ele arrebatou o ar, descendo para pegar o jovem em suas garras, e enquanto o humano gritava e lutava, mordeu sua cabeça fora. Com descaso, ele largou o corpo dentro da floresta.

“Nicol! Era mesmo necessário tirar a vida daquele jovem inocente?”

“Como está sua garra, Ugin? Ela ainda dói? Sua carne ainda está dormente? Ou você gostaria que o interior todo fosse erguido contra nós quando os mensageiros chegarem?”

“Podemos apenas voar para longe.”

“E deixar que matem mais dragões? Espalhar seus costumes e conhecimentos para outros humanoides? Acho que não. Estou fazendo o que é melhor para todos nós. Não é isso o que você quer?”

Era difícil discutir com minha perna latejando.

Construído ao longo de um lago, o povoado mais distante exibia sua versão em miniatura do templo quadrado, e a casa longa e modesta do chefe também era adornada com a caveira de um dragão, e uma paliçada também separava o complexo interno dos favorecidos das humildes cabanas dos demais seres inferiores. A beira do lago tinha fileiras e mais fileiras de peixe secando ao sol, e havia tinas de entranhas de peixe fermentando com sal, cujo fedor subia até os céus.

A paliçada era tão nova que as cicatrizes de sua construção ainda estavam rasgadas na terra, revelando raízes frágeis e minhocas brancas e gordas. Este herdeiro tinha apenas uma balista colocada no portão do povoado, virada para a estrada - como se a preocupação maior fosse com inimigos humanos, e não com o voo de dragões. Sobrevoei o lago, sem querer chegar muito perto dos virotes com pontas envenenadas. Nicol voou em amplos círculos sobre o povoado e seus campos, para garantir que todos vissem que estava lá.

Ilustração: Svetlin Velinov

Quando os berrantes foram tocados e os tambores soaram o alerta, um jovem usando um elmo com crista saiu a passos largos da casa longa do chefe. Ele era alto e bonito; seus braços e pescoço estavam adornados com joias de ouro retorcidos que brilhavam como se prendessem a luz do sol. Assim como ele, seus guerreiros estavam vestindo armaduras feitas com escamas de dragão. Estas escamas pertenciam ao dragão que ele matara, com certeza: as escamas brilhavam sob o sol, dando aos guerreiros uma beleza luminosa - roubada de um de nós. Havia algo de expectativa e indecisão na atitude do matador de dragões quando ele olhou para cima e viu Nicol, assim como Nicol olhou para cima uma vez e viu o sol.

O que Nicol esperava? Qual era o seu plano? Seu deslize circular lento pelo céu tinha um efeito tão hipnótico que enquanto eu flutuava em uma corrente mais alta eu não conseguia tirar os olhos da curiosa plataforma, me perguntando sobre o que aconteceria.

Os tambores caíram no silêncio, assim como os berrantes. Uma brisa provocou os galhos das árvores. A água do lago lambia a beira com curtos suspiros.

Meus ossos vibraram. Suspiros corriam pela minha cabeça, com uma voz que parecia cada vez menos com os murmúrios retorcidos de um vento amaldiçoado e cada vez mais com a voz de Nicol.

O velho chefe viveu muito além do seu ápice. Quem é ele para exigir obediência quando não consegue nem acertar um arremesso de lança forte o suficiente para matar um cervo, quanto mais uma pessoa, ou até mesmo um dragão? Ele elevou três para serem seus herdeiros favoritos enquanto negligenciava seu próprio primogênito, mesmo que este filho digno tenha enfim matado um dragão depois de tantos anos sendo caçoado por suas falhas. Os deuses favoreceram o velho, todos concordam. Tal favorecimento deveria passar para seu filho, não é mesmo? Ainda assim, o filho fora empurrado para os limites mais distantes dos territórios do chefe, forçado a reger sobre pescadores e viver entre o fedor.

E se este filho digno tivesse algo melhor do que do que uma caveira de dragão como troféu? E se ele tivesse dragões sob o seu comando? Matar um dragão é um feito ousado, é claro, e não deve ser escarnecido. Mas se um dragão servisse a um humano? Aí sim, seria um padrão de liderança.

Poderia ser a sua medida de padrão. Se você marchar contra os outros herdeiros. Se derrotar aos outros e matar seu pai. Um dragão respeitaria alguém assim, não é mesmo?

Eu demorava para entender. Os ensinamentos calmos e comedidos de Te Ju Ki encontraram lar em meu coração; eles faziam sentido para mim. Até mesmo quando o jovem mobilizou seus guerreiros e fez um poderoso discurso sobre a profecia dos dragões e como eles demonstravam favorecimento apenas sobrevoando sem queimar o povoado e sem matar ninguém, eu ainda não havia compreendido. Mesmo quando eles marcharam para fora do povoado com um propósito firme, com o líder montado em um garanhão esplêndido e seus oficiais vestidos em escamas, eu não compreendi. Estava convencido de que iriam se unir aos demais, em comum causa contra nós, até mesmo quando tal ação não faria sentido. Nós dois estávamos lá, bem à frente deles. Várias vezes o filho do chefe gesticulava na direção de Nicol, que permanecia flutuando de olho na balista, mas com a atenção principalmente dirigida para o filho do chefe.

Quando o último dos soldados passou sob o portão, Nicol desceu sobre a casa longa. Ele passou suas garras pela viga superior, marcando-a, e rugiu apenas uma vez, como desafio ou bênção. Um grande grito de ânimo se ergueu das fileiras de soldados. Cantando suas violentas canções, eles marcharam na direção do povoado central.

Nicol voou até onde eu estava esperando, perto do lago.

“Agora, voltamos para a montanha de nosso nascimento,” disse ele.

“O que você está fazendo?” Exigi saber.

“Ah, Ugin, você ainda não entendeu? Humanos são cobertos de ódio e inveja e medo e ganância. Facilmente farão o que quisermos. Você só tem que saber onde enfiar sua garra para conseguir a resposta que quiser.”

O filho do chefe marchou para dentro do povoado central, agora sem sua guarnição de guerreiros destemidos, e matou os apoiadores do chefe, instalando-se no trono. Enquanto isso, Nicol estava empoleirado na montanha de nosso nascimento, e com sua presença ele atraiu os dois herdeiros, cada um com seu grupo de guerreiros, mais e mais alto, serpenteando pelos caminhos até os dois grupos se encontrarem sobre um campo acidentado de lava antiquíssima. Lá, eles lutaram amargamente entre as rochas pontiagudas, o homem de meia-idade contra a jovem. Enquanto os dois exércitos lutavam, Nicol voou até o templo sem guardas e queimou o lugar e seus acólitos.

Ilustração: Chris Rallis

Mas ele deixou o desconcertado chefe vivo, entre ossos e vigas chamuscadas. Ele pegou o velho em suas garras, quase que com ternura, e voou com ele até o quarto e último povoado, onde a segunda esposa do chefe tinha se posto como herdeira após matar um dragão. Ela era a maga que tinha criado o veneno enfeitiçado pela primeira vez.

Quando Nicol depositou gentilmente o velho, sozinho e desprotegido, no pátio dela, ela veio para fora em passos largos. Ela era uma mulher impressionante, com um brilho inteligente em sua face. Seu cabelo trançado e enrolado sobre sua cabeça estava entrelaçado com pérolas e pedras preciosas. Aios armados se ajoelharam em torno do velho chefe, que até mesmo em seu estado aterrorizado e desarrumado latia ordens para ela, exigindo um banho e comida e roupas apropriadas para sua posição exaltada acima dos outros.

Meus ossos vibraram. Os sussurros ficaram cada vez mais altos.

Ele arrancou o segredo do veneno que era seu. Ele compartilhou com outros e roubou o seu direito: o de sucedê-lo como chefe porque você tinha a inteligência e a astúcia, diferente dos outros herdeiros que apenas se beneficiaram com a sua genialidade. É você que é digna. Ainda assim, os dois usurpadores que sentam ao lado dele e o bajulam creem que merecem o estandarte do matador de dragões, enquanto o filho chorão da primeira esposa tenta agarrar o que pertence a você.

Ela estalou os dedos. Seus aios pularam formando um círculo em torno dele - mas suas armas não estavam apontadas para fora a fim de protegê-lo, mas para dentro, a fim de ameaçá-lo.

“Que traição é esta?” Gritou ele. “Você deve tudo o que tem a mim. Eu ergui você da cabaninha de grama-do-pântano de onde você nasceu. Permiti que aprendesse com meus magos mais inteligentes. Vai se curvar frente a mim, como lhe cabe.”

Ela caminhou lentamente, pressionando a ponta de sua lança com uma garra de dragão contra a face dele até que ele, tremendo, caiu de joelhos à frente dela.

“Seu velho tolo! Eu mesma me ergui, apesar de você ter me usado como se fosse escrava sua. Você roubou o que devia ser meu por direito.”

Ela o estocou uma, duas, e três vezes, e ordenou que o corpo inchado e ensanguentado fosse jogado dentro do rejeito fétido de uma latrina.

“Marcharemos!” Clamou ela para o seu povo. “Os indignos e usurpadores todos se curvarão frente a mim!”

Vocês, meus pupilos Jeskai, não ouviram histórias sobre a guerra entre os matadores de dragões. Ela ocorreu há muito tempo, em um lugar desconhecido para vocês. Ninguém a escreveu pois a escrita ainda não existia, e os que sobreviveram contaram uma história diferente da que estou contando a vocês agora. Então, a verdade destes eventos foi perdida até para seus descendentes.

Quanto a mim, estava ainda no topo da montanha de nascimento, chocado pelo que testemunhara e porque não sabia o que fazer, ou não sabia por que humanos se comportavam com tal violência e maldade uns com os outros. A luta furiosa foi uma tempestade destrutiva até apenas a esposa e o filho sobrarem, atrás de trincheiras e muralhas mais altas, e os remanescentes dos outros exércitos divididos entre eles. Ninguém cuidou dos campos. As pessoas começaram a passar fome. Não podia fazer nada, ou pelo menos era isso o que eu continuava pensando, e meus pensamentos andavam em círculos e mais círculos.

Até a noite em que acordei de um sono turbulento e Nicol não estava lá. Voei atrás dele, pois todos dragões conseguem seguir a trilha de borralho que nossa espécie deixa. Pareceu que a voz dele tomou minha mente, como se ele ainda estivesse falando comigo.

“Venha testemunhar o fim, Ugin. Venha testemunhar o começo.”

No povoado central, no grande pátio em frente à casa longa do chefe, as tochas queimavam. Nicol estava empoleirado sobre a casa, com olhos que brilhavam como pedras preciosas contra o escuro da noite. Era uma magia estranha, ele conseguir se esticar sobre a viga do telhado sem que seu grande peso colocasse a estrutura abaixo, mas nós dragões temos muitos veios de magia entrelaçados em nossos seres.

No pátio, o filho do chefe e a segunda esposa do chefe se olhavam. Como chegaram até ali e por que não estavam armados eu não saberia dizer, mas pareciam tão bonitos juntos, como se fosse o final adequado para uma história romântica.

“Este é o dia do casamento entre os herdeiros do matador de dragões - aquele que matou uma das feras temerosas primeiro.”

Quem falava eu não saberia dizer. Meus ouvidos estavam abafados, e meu coração estava sombrio e agourento.

“Unam as mãos em juramento.”

Ela estendeu seus braços; ele encontrou suas mãos, seus dedos se entrelaçaram.

“Que o seu juramento seja selado com sangue.”

Eles soltaram um do outro. A luz das tochas retorcia sombras pelo cenário enquanto cada um deles tomava a garra de dragão de seu reino - ela com o cajado e ele com um longo facão. Cada um mergulhou sua garra dentro do tórax do outro, e eles caíram juntos; encharcados no sangue um do outro, eles morreram.

“Eles fizeram um sacrifício respeitável,” disse a voz. Era Nicol, erguendo-se da viga no telhado, com chifres brilhantes e olhos com um charme que me estonteou. “Pois agora, vocês compreendem a verdade sobre o sangue de dragão. Eu sou o seu senhor, agora. Eu sou seu verdadeiro líder. Curvem-se.”

Um suspiro vasto e temeroso passou pela assembleia. As pessoas caíram de joelhos, pressionando as mãos sobre as faces.

“O que você está fazendo?” Gritei eu. “Isto não é o que você aprendeu com Arcades!”

“É claro que é o que aprendi com Arcades,” disse ele, virando-se e olhando para mim.

No fundo de seu olhar coruscante eu vi um vislumbre dos irmãos com o vagão de carga, trabalhando amigavelmente dentro do ordeiro reino de Arcades. Aquela paz fora estilhaçada pela abrupta ressurgência de um rancor enterrado há muito tempo, pois Nicol encostou uma garra de dúvida e inveja em um coração vulnerável. O homem assim atingido sucumbira a um sussurro que despertou o pior dentro dele.

Homicídio | Ilustração: Tyler Jacobson

“Ugin, você sabe que eu tenho razão,” disse o meu irmão gêmeo com voz suave e sedutora, uma pressão tão gentil e persuasiva, tão crível em seus argumentos. “Agora que conhecemos a magia, não há nada que nos impeça de construir um reino maior, expandirmos nossos domínios, nos vingarmos de Vaevictis e seus irmãos intratáveis, de colocarmos nossos irmãos e irmãs nos seus devidos lugares. Os últimos dentre os caídos! Pois eles verão. Vamos mostrar a eles, não é? Não seremos mais os últimos. Eles se curvarão à nossa frente. Você sabe que é isto o que você quer. O poder pode ser nosso. Ele será nosso.”

Mas não era poder o que eu queria. Ele não entendia nada sobre mim. Ele não se importava em me entender. Tudo o que importava para ele era conseguir o que ele queria, sem importar o que custaria para quem estivesse em volta. Ou o que custaria para mim.

Ah! Que dor floresceu em meus corações, uma cascata lancinante de choque e traição.

Meu irmão, meu gêmeo.

Já era ruim o fato de ele ter rasgado as mentes daqueles humanos para conseguir o que queria com tanta frieza e felicidade.

Eu entendia agora, mas ele também tencionava violar a minha mente.

Meu irmão, meu gêmeo.

Ele queria despertar o pior em mim, pois ele sucumbira à pior parte de si mesmo, e queria me arrastar junto com ele.

Não, era ainda pior.

Ele queria me usar para atingir seus próprios objetivos, pois ele nunca se importara de fato comigo.

O vínculo que tínhamos. A confiança que tínhamos um no outro. Era vazia, quebrada, falsa.

Uma centelha quente e áspera explodiu em minha cabeça, e em meu coração. Minha carne queimou como se incinerasse, até carbonizar.

Um vento arrebatador rodopiou de dentro e de fora dos céus, me arrastando para dentro de uma tempestade aterrorizante de escuridão, onde eu não podia respirar e sentia meus pulmões sendo esmagados pelo peso do temor. Uma força retorceu meu corpo, como se tentasse me virar do avesso. Por um instante, minha mente ficou em branco, sem ver ou sentir nada, e com um puxão eu voltei a mim.

Para o meu assombro, me encontrei flutuando sobre um mar sem feições, tão imóvel que podia ver meu próprio reflexo na água: meus chifres, minhas escamas, meus olhos brilhando como fagulhas gêmeas. Flutuei desconcertado, arrebatado pelo pesar de ter perdido o irmão em quem confiava, estupefato pelo puro assombro de ter sido arrancado do único lugar que conhecia e lançado para dentro do espaço entre os planos de existência.

Foi então que eu entendi que os ensinamentos de Te Ju Ki eram verdadeiros, que ela tinha tido uma visão sobre este lugar. Ela era fisicamente frágil e presa ao solo do seu lar, mas sua mente podia perscrutar por onde seu corpo e sua magia não podiam.

Ela acreditava que ninguém podia caminhar entre os mundos, mas agora eu estava aqui, caminhando entre os planos de existência que ela havia me descrito.

Usando aquele pensamento como âncora, eu caí como estrela cadente: desamparado, queimando, obliterado por sua própria passagem.

Quando acordei novamente em meu corpo, estava aqui, acordado, vivo, novo em folha, em Tarkir. E eu senti que a terra me acolheu, como se finalmente tivesse encontrado o meu lar.

Nicol estava certo, afinal: Eu tinha testemunhado o fim, e este era o meu novo começo.


Tae Jin foi parando de falar aos poucos. Trovões retumbavam acima deles, fazendo a rocha tremer. O gemido do vento tinha ganho velocidade, e agora parecia mais agudo e mais frenético.

“E o que aconteceu depois?” Exigiu Naiva.

A Avó ergueu a mão, lembrando a ela que Fec, Rakhan e Sorya estavam dormindo para ficarem de guarda mais tarde. Com voz baixa, ela disse: “Você pode continuar com a história, Tae Jin.”

Ele sacudiu a cabeça. “É só isso que eu sei. O pergaminho que memorizei acaba neste ponto.”

Naiva grunhiu. Baishya levou as mãos à boca.

A Avó assentiu com sua calma costumeira, e a luz da fogueira tremulava sobre sua face de tal modo que ela parecia um espírito do passado que desvanecia em um brilho sem feições. “Então. Parece que estamos sendo chamados ao túmulo de Ugin para terminarmos a história.”

“O que resta para contar?” Indagou Tae Jin. “A história não seria sobre como o Dragão Espírito chegou em Tarkir?”

“Há dezoito anos atrás, eu testemunhei uma batalha no céu que terminou com a morte de Ugin. Esta batalha acabou com a Tarkir que eu conhecia. Esta batalha colocou todos os clãs em um novo caminho, em um novo começo. Havia outro dragão na tempestade daquele dia.”

“Muitos dragões deviam estar lá. As tempestades geram dragões.”

“Não era um dragão gerado em tempestades. Este dragão desapareceu em um lampejo de luz dourada, como um segundo sol. Ele não voou para partir. Ele estava lá, e depois simplesmente não estava.”

“Impossível,” disse Naiva.

Naiva nunca vira a Avó com uma face tão grave, e era uma mulher que raramente sorria.

“Não é impossível se há outros planos de existência e alguns indivíduos poderosos que conseguem caminhar entre eles, passando de um mundo para outro como se atravessássemos um riacho pulando sobre pedras de apoio.”

“É tão difícil de acreditar que possa ser verdade,” disse Baishya em voz baixa.

“Certamente não acreditei quando soube disto pela primeira vez,” disse a Avó com um olhar severo para Naiva. “Cometi um erro horrendo naquela época. Uma voz falou comigo, dizendo que eu agiria pelo bem dos clãs. Mas eu era apenas ferramenta a ser usada por um poder maior do que eu. Aquele dragão, chamado Nicol Bolas, matou Ugin. Eu vi o corpo do Dragão Espírito dentro do crisol. Ouvi seu último suspiro, senti o cessar de seu espírito. Mas os edros conjurados por um planinauta chamado Sarkhan Vol continham uma magia que eu não compreendia na época, e agora apenas começo a vislumbrar. Alguma essência de Ugin sobreviveu, por mais fátua e frágil que seja. Pode não ser coincidência que Ugin esteja tentando entrar em contato conosco. As visões são um aviso.”

“Um aviso sobre o quê?” Indagou Naiva.

Tae Jin ecoou: “Contra o quê, Yasova Garra de Dragão? O pior já aconteceu quando os soberanos dragões proibiram nossos clãs e khans, e nossos conhecimentos sobre os ancestrais.”

“Talvez isto não seja o pior que pode acontecer,” disse a Avó.

Trovões ressoaram novamente, e desta vez uivos e rugidos abafados ecoaram em resposta. Um arrepio atravessou o chão como se um grande peso tivesse acabado de cair sobre a terra. Fec abriu seus olhos e sentou-se. Ele sacudiu Rakhan e Sorya para acordarem, e todos agarraram suas armas.

Um som de passos raspou pelo túnel. Naiva agarrou sua lança e ficou em posição agachada próxima da entrada. O clique do chamado de um lagópode anunciava a presença de um dos seus. Ela se afastou quando Mattak entrou na câmara com uma faca nas mãos.

“Primeira Mãe, é melhor que venha comigo para ver.”


Coleção Básica 2019 Arquivo das Histórias
Perfil do Planeswalker: Nicol Bolas
Perfil do Planeswalker: Ugin, o Dragão Espírito
Perfil do Plano: Tarkir