Phyrexia: Tudo Será Um
Neyali observava sua célula da resistência e anotava mentalmente o que via. Ela notou quais escudos estavam lascados ou desgastados e quais espadas estavam rachadas ou dentadas. Conforme progredia, ela também conferia seus aliados: quem estava mancado, quem não podia mais colocar força no braço dominante, quem estava respirando com chiado enquanto eles atravessavam as terras ermas nos limites da Fornalha Silenciosa.
Saheena, uma velha mulher vulshoque, com as costas retas apesar da idade, caminhava com um orgulho rígido, um filho em cada ombro. Agora ela tinha apenas um olho, devido a um confronto recente. Ainda havia sangue seco em seu pescoço. Elham, a mulher aurioque que havia liderado antes de Neyali, caminhava pesado logo atrás delas, com mais bolsas do que devia carregar, deixando os companheiros com mais liberdade de movimento. Eles tinham tão poucos recursos e o que tinham, independente da forma, era usado sem reservas. Neyali jurou fazer seu melhor para encontrar o consolo que pudesse.
Não fazia muito tempo que ela estava sozinha, vagando pelas ruínas de Mirrex com seu pássaro de fogo Otharri, procurando algum sinal — qualquer sinal, não importa quão pequeno ou improvável — de que havia outros sobreviventes do massacre phyrexiano de sua vila. Agora, essas pessoas dependiam dela. Confiavam nela. Neyali se perguntava se a honra um dia pararia de parecer tão pesada.
Ela foi tirada de sua contemplação pelo grito estridente de Otharri.
Ao piado do pássaro de fogo, os companheiros de célula de Neyali fecharam as fileiras, um movimento perfeitamente sincronizado, tensos à espera de uma emboscada. Nenhuma veio. Não havia sinais de phyrexianos se aproximando, nenhum ruído de garras rastejando pela pedra, nenhum silvo de vapor de um golias. Nada, absolutamente nada.
Mas Otharri não arriscaria divulgar a posição deles se não fosse importante. Sentindo a pulsação na garganta, Neyali olhou para seu povo de novo, desesperada para entender o que ela não tinha visto.
Foi quando ela notou.
— Reyana, suspirou Neyali.
Neyali se lançou em movimento antes que qualquer um de seus homens pudesse responder, correndo de volta para o corredor iluminado de vermelho, Otharri seguindo logo atrás. Reyana havia assumido o papel de guarda da retaguarda como sempre fazia, mas não estava lá. Neyali passou as possibilidades na cabeça. Será que Reyana tinha sido atacada por um dos chefes sucateiros? Se tivesse sido, o resto deles logo estaria rodeado de phyrexianos. Não fazia sentido que eles tivessem parado em Reyana, sem contar o fato de que Urabrask, pelo que todos diziam, havia insistido para que deixassem os mirranianos em paz.
Vapor quente saiu da parede mais à direita, revelando a presença de uma passagem estreita que ela não havia visto antes: uma rachadura na superfície de metal, do tamanho certo para caber uma figura humanoide. Pelo vão, Neyali viu uma silhueta familiar. Era Reyana, se movendo para trás gradualmente na direção de uma beirada, com um oceano de magma laranja fumegante abaixo dali. Na frente dela, uma figura humanoide imponente, seu braço esquerdo transmutado na forma de uma foice agigantada, o dourado de sua pele original quase totalmente obscurecido por pregas de metal. Havia sido uma mulher no passado, aurioque. No chão, as armas de Reyana: esquecidas, abandonadas. Em seu rosto, uma expressão que Neyali nunca havia visto no rosto de sua amiga de infância, uma desesperança absoluta como se seu coração estivesse irreparavelmente partido.
— Você está finalmente pronta para se tornar perfeita, disse a aspirante numa voz feminina, baixa e quase familiar. Então, ela avançou sobre Reyana, um braço esticado: uma estranha ternura permeava o gesto e, para a surpresa de Nyali, Reyana engoliu um soluço de choro.
Uma mulher menos impulsiva poderia ter aguardado por reforços ou, pelo menos, um entendimento melhor das circunstâncias. Mas, para o bem ou para o mal, Neyali era uma criatura de instinto, composta de tantas chamas quanto seus pássaros de fogo. Então adiante ela foi, suas mãos fechadas em punhos. Suas manoplas reluziram naquela luz tórrida. Ela gritou um desafio, ecoado pela batida de coração de Otharri um segundo depois, o pássaro de fogo passando por Neyali em um tremor de asas brilhantes. Ele atacou o rosto da aspirante conforme ela virava. A phyrexiana ergueu seu braço laminado para cortar a fênix ao meio e Neyali se abaixou e golpeou para cima, esmagando onde deveriam estar os ossos frágeis de um pulso.
Choveu metal estilhaçado por cima dela. A aspirante — uma mulher aurioque mais velha, vagamente familiar, sem dúvida alta quando era feita de carne, ainda mais alta depois de completa — cambaleou mas não gritou, apenas olhou para Reyana.
— Não haverá mais medo quando a carne macia se tornar perfeita.
Neyali não desacelerou. Ela agarrou a aspirante pelo braço arruinado e girou para uma posição onde podia enfiar o cotovelo em seu peito, todo seu peso por trás do movimento. Então ela correu, levando ambas até a beirada, largando no último segundo. A phyrexiana caiu sem emitir nenhum grito.
— Neyali...
— Você está bem? Neyali correu de volta para sua amiga e a observou em busca de ferimentos. Os phyrexianos só precisavam de um corte. Bastava uma gota de olho brilhante e eles teriam que correr de volta para o acampamento para conseguir a cura que Reyana necessitaria antes da phyresis se tornar irreversível. — Você foi contaminada? Ela tinha óleo? Me mostre —
— Neyali —
A mulher vulshoque agarrou a cabeça de Reyana com as mãos. — Seus olhos. Deixe-me ver seus olhos.
— Eu estou bem. Eu prometo. Reyana fechou as mãos sobre as mão de Neyali. E era sua amiga de novo, não a casca que ela havia sido antes, movimento retornando a suas feições expressivas. Ela sorriu, de forma afetuosa mas exausta. — Ela não fez nada contra mim.
— Por que você não a enfrentou? O que houve com suas armas?
A luz sumiu de seu rosto mais uma vez.
— Neyali, era a minha mãe.
O criadouro brilhava com a luz de velas emitida pelos pássaros de fogo em repouso, suas chamas esmaecidas conforme eles murmuravam e cantavam uns para os outros, dando um tom azul-esverdeado às sombras em movimento. Era um espaço menor do que Neyali gostaria para eles. Caso tivesse esse luxo, ela o teria construído com algo mais resistente, algo feito para acolher gerações de pássaros de fogo. Não seria tão improvisado, com plataformas e caixas de ninho feitas de coisa melhor que sucata.
Neyali acariciou Otharri abaixo de seu bico plumado.
— Um dia, ela prometeu ao amigo. Sua parceira dormia ao lado dele, os filhotes aconchegados com ela. — Vamos construir para vocês um criadouro nas cinzas da Forja de Urabrask e seus filhotes crescerão lá, aquecidos e felizes, bem como os filhotes deles e a geração que vier depois deles.
Em resposta, Otharri bateu as asas e colocou a cabeça na mão de Neyali, seu pescoço esticado, seu humor satisfeito e indolente. Neyali coçou suas plumas diligentemente antes de se voltar para Reyana, enquanto a mulher aurioque se ocupava com seus próprios pássaros. Elas tinham tido sorte. Apesar de todo o caos recente — mais e mais, havia histórias de inquietude entre os sacerdotes, rumores de que Urabrask estava planejando algo titânico — que havia caído sobre a resistência recentemente, os pássaros de fogo haviam tido uma boa temporada de acasalamento. Todas as fêmeas estavam com ovos, uma raridade. Se pelo menos metade desses ovos sobrevivessem, mudaria muita coisa.
— Como estão os seus?, disse Neyali, caminhando cuidadosamente entre os pássaros de fogo dormindo até o lado de Reyana.
— Sem filhos, Reyana disse, seu tom vazio.
Ela deu um passo para o lado para revelar o que seu corpo alto estava ocultando: um ninho de ovos quebrados, vazando clara fosforescente. Era uma dádiva que não houvesse traço do filhote perdido e que a mãe fosse jovem o bastante para ser indiferente quando a sua cria, mais preocupada em obter a atenção de um macho próximo.
— O que houve, disse Neyali, estremecendo. A última coisa que ela queria para amiga era outra tragédia.
— Rastejantes, talvez, disse Reyana, ainda com aquele tom de voz oco conforme ela mexia nos pedaços. — Não me surpreenderia se fossem ratos. De qualquer forma, não importa. Os filhotes estão mortos. Do mesmo jeito que minha mãe.
Neyali engoliu em seco. — Se eu soubesse...
— Você não tinha como saber. Eu não sabia. Não até ela estar ali, pedindo para me juntar a ela.
— Eu podia ter perguntado, disse Neyali, incapaz de se livrar da certeza de que havia falhado horrivelmente e que precisaria pagar um preço terrível. — Eu podia ter pensado primeiro antes de agir. Podíamos ter conseguido salvá-la. Podíamos conseguir fazer algo.
Sua voz falhou na última palavra.
— Ela não ficaria feliz, disse Reyana, fazendo contato visual com Neyali. Sua voz suavizou. — Minha mãe... ela era uma mulher tímida. Vidro em vez de aço. Tudo a amedrontava. Tudo era um sinal de morte ou pior. Você podia ver nos olhos dela: o quanto ela queria que tudo parasse.
Reyana engoliu em seco, fazendo barulho.
— Eu costumava desejar que ela só morresse, disse Reyana, com terrível dignidade. — Não porque estivesse cansada de seu choro ou por ressentir quando ela me batia. Eu queria....
Neyali se embasbacou diante da amiga. — Ela batia em você?
— Não com malícia. Acho que ela precisava descarregar. Precisava de uma forma de mitigar as pressões enormes que sofria. Ela precisava se expressar, ou teria explodido.
— Ainda assim, foi cruel...
— Eu a amava, sabe, disse Reyana e Neyali ouviu censura naquelas palavras ditas calmamente. — Ainda amo. De qualquer forma, acho que seria mais fácil que ela só não existisse nesse mundo. Queria que o tormento dela acabasse. Isso faz de mim uma filha ruim?
— Não, disse Neyali, as mãos fechando e abrindo, como se ela pudesse arrancar as palavras do ar. — Você não é. Eu entendo perfeitamente. Os phyrexianos tiraram tanto de nós. Por isso lutamos. O que aconteceu com sua mãe... nós podemos garantir que não aconteça com mais ninguém.
Reyana inalou, sua respiração irregular. — E se Phyrexia estiver certa?
— Não brinque com isso, disse Neyali.
— Sei que o que eles fizeram foi um pecado, uma violação da alma. Mas você deve ter visto minha mãe, Neyali. Ela estava calma. Ela nunca esteve calma antes. Eu nunca a vi aproveitar um dia de paz que fosse. Mesmo durante o sono ela murmurava, chorava e gemia. A versão que eu encontrei hoje... ela estava em repouso. Eu acho...
Horror fluiu através de Neyali. Ela podia ver onde essa frase terminaria e a ideia de ouvir isso em voz alta, de Reyana dar fôlego a essas palavras, fazia Neyali querer gritar. Por um momento culpado, ela se encontrou desejando que Reyana tivesse sido infectada pelo óleo brilhante, para que ela pudesse jogar a culpa dessa perspectiva assustadora na corrupção phyrexiana. Afinal, a alternativa era muito pior: esse pensamento atingido por Reyana havia vindo de conclusões inteiramente dela. — A paz, disse Neyali muito cautelosamente, que os phyrexianos sentem é falsa. Nasce da perda da individualidade. Aquela coisa não era sua mãe. Não mais. Era, na melhor das hipóteses, um fantoche. Uma mentira feita de aço e carne.
— Tem certeza?
Neyali afirmou com a cabeça.
— Cada um dos aspirantes é uma isca. Servem para atrair, para convencer os restantes de que a phyresis é a única opção lógica. Estão ali para quebrar nossos corações e espíritos. E de qualquer forma — sua voz suavizou — acho que você passou por aquele encontro com mais graça do que eu teria. Pessoalmente, eu teria enlouquecido de dor.
— E quem disse que eu não enlouqueci?
Neyali pousou a mão no ombro direito da amiga. — Se você tiver enlouquecido, saiba que terá companhia quando formos gargalhar no escuro. Fiz uma promessa quando nos encontramos. Não vou abandonar você. Não importa o que aconteça, sempre estarei ao seu lado.
Apenas mais tarde, quando Neyali foi para a cama, ela percebeu que Reyana não havia dito sua metade da rotina habitual delas e caiu no sono ponderando sobre o que aquilo significava.
Neyali acordou na manhã seguinte com um jovem menino vulshoque — o mais velho dos filhos de Saheena; ele tinha os olhos e a postura, diziam, de um pai há muito falecido — limpando a garganta. Ela se sentou de pronto, esfregando a planta da mão no olho direito. Ou a idade estava chegando ou ela estava ficando confortável demais com a ideia de que essas eram pessoas em quem podia confiar. Neyali esperava fervorosamente que fosse a primeira opção. Complacência significava morte.
— O que houve?
A miséria na expressão do menino cresceu. Ele entregou um bilhete.
— É Reyana, ele disse, malfadado. — Ela se foi.
Se foi, no caso, significava um bilhete na cama e os pertences abandonados. Era como se ela tivesse simplesmente decidido ir embora por enquanto. Nenhuma de suas rações havia sido tocada. Se não fosse pelo bilhete, se Neyali fosse uma pessoa mais otimista, ela poderia escolher acreditar que Reyana estava por perto. Mas Neyali conhecia o bastante do mundo para saber que não podia se permitir aquela ilusão.
Se voltou para o bilhete, em busca de pistas.
Me encontre no Complexo de Recuperação.
Por que Reyana iria para lá?
Neyali se perguntava se não era um armadilha, se Reyana não tinha sido levada contra a vontade e forçada a escrever a nota, atraindo Neyali para ser capturada. Mas para que essa possibilidade fosse verdade, deveria haver mais sinais de conflito, alguma indicação de que os phyrexianos haviam penetrado as defesas do acampamento.
Neyali afastou a vozinha que suspirava talvez ela tenha ido por conta própria.
— O goblin manda lá, não é?, disse Elham, o branco de seu cabelo tornado ainda mais incandescente pelos salpicos branco-dourados em sua pele.
— Acho que sim, disse Neyali, o bilhete de volta no bolso. Ela verificava o equipamento de forma inquieta, em busca de defeitos, procurando ferrugem nas luvas. Otharri observava de seu poleiro. Neyali havia visto Slobad uma vez, mas só de longe: um goblin monstruosamente grande, seus braços inchados com aço preto.
— Ele é um Chefe de Fornalha? — perguntou o mais novo de Saheena. Qual era o nome dele? Para a vergonha de Neyali, ela não conseguia lembrar, não com o pânico ribombando em suas costelas.
— Não, disse Elham. Ele se livra do lixo. Urabrask manda phyrexianos antigos para ele, para reaproveitar.
Nada era desperdiçado na Camada da Fornalha. O que não pudesse ser aproveitado era reduzido a componentes, desmontado e reconstruído para que pudesse ser útil de novo.
— O que ele iria querer com Reyana, então? Neyali perguntou, frustrada.
— Mão de obra? — disse a mulher aurioque. Saheena e seu mais novo vieram da esquina, o sangue removido, um curativo no olho. — Ele não pode gerenciar esse complexo sozinho.
Neyali assentiu. Mais fácil que a introspecção. Mais simples dar nome a um adversário e partir de primeira procurando uma briga. Ela bateu o punho contra a palma aberta, mostrando os dentes para seus companheiros de célula.
— Certo, disse Neyali. — Eu vou encontrar Reyana. Ninguém é obrigado a vir comigo nessa missão. Reyana é minha amiga e...
— Ela é da nossa família também, disse Elham, passando seu machado de batalha por cima do ombro, sua postura impedindo qualquer objeção. Sua panturrilha brilhava com ouro polido; uma prótese simples, bem articulada e muito bem feita.
— Posso estar cometendo um erro.
— Todos perdemos alguém, disse Saheena, a voz se espremendo. Seus olhos desviaram o olhar, as expressões se enevoando. Todos na célula conheciam a história: eles eram os únicos remanescentes de uma família enorme, cheia de tios e tias. — Se dermos sorte, podemos assegurar que Reyana não seja um desses.
A célula se mobilizou em uma hora. A maior parte foi rumo ao leste, levando a maior parte dos suprimentos para um acampamento vizinho, junto dos pássaros de fogo. Apenas Otharri permanecia com Neyali, evitando se separar da amiga.
Após despedidas rígidas, o que restou da célula de Neyali, os mais corajosos e mais teimosos, rumou na direção do Complexo de Restauração. A rota podia ser mais traiçoeira: os túneis que levavam ao complexo não eram distantes das principais artérias da Camada da Fornalha, se enrolando em suas bordas. Embora não tivesse interseção com nenhuma das forjas, a estrada era longa e aquilo por si só trazia risco de encontros indesejados.
Mas nada ocorreu.
A estrada se manteve irritantemente vazia.
Quase como se tivesse sido liberada de propósito. Como se algo os aguardasse. Poderiam ter perdido a cabeça se não tivessem encontrado acampamentos mirranianos no caminho: um nas ruínas do que um dia havia sido uma fábrica; outro na barriga estripada de um golias, espiras retorcidas de aço preto se erguendo como costelas quebradas; o último em um cemitério de estruturas bizarras desmoronando. Em cada acampamento, Neyali e seu grupo descobriam a mesma coisa: entes queridos haviam desaparecido, sem sinais de que haviam sido levados à força.
Ela foi por conta própria, insistia a vozinha de novo. Neyali estava achando difícil ignorar, mas antes que pudesse reconsiderar suas lealdades, eles chegaram nas cercanias acima do Complexo de Recuperação.
Uma dia, havia sido um complexo prisional. Jaulas deformadas se erguem em torres instáveis, as barras amassadas, cedendo em alguns lugares, como se o que estava dentro estivesse desesperado para sair. Muitos foram ocupados por figuras abaixadas: mirranianos capturados, esperando serem ungidos com óleo brilhante. Maquinário serpenteava por entre os cercados, se enroscando neles como uma paródia de vida vegetal. O que chamou a atenção de Neyali foi o poço no centro do Complexo de Recuperação, um zigurate invertido repletos de tubulações pretas parecidas com veias. Cada nível era repleto de mecanismos impossíveis, partes móveis cujo projeto Neyali não conseguia decifrar.
E corpos, ela percebeu.
Incontáveis corpos phyrexianos, forçados a ajoelhar antes de ter seu metal removido, a carne deixada para trás. Havia fileiras e fileiras deles, como uma audiência silenciosa observando a plataforma na sua própria base. Uma única figura ocupava a a fatia estreita de metal. Neyali sentiu seu coração pular; ela Reyana, algemada e caída.
— Observe os céus por mim, amado, sussurrou Neyali, beijando o rosto de Otharri. Com um gesto de seu braço, ela lançou o pássaro de fogo no ar. Neyali voltou sua atenção para seus camaradas. — Há toda chance no mundo disso ser uma armadilha e eu ser uma imbecil, mas Reyana é minha amiga. Eu prometi que não a abandonaria. Pretendo cumprir essa promessa. Mas nenhum de vocês fez o mesmo voto idiota. Não haverá julgamento ou censura caso vocês escolham ir embora. Se forem embora agora, vocês irão embora com honra.
Os mirranianos reunidos trocaram olhares, mas nenhum falou até que Saheena finalmente disse em uma voz entediada:
— Você quer perder tempo ou devemos checar o perímetro?
Eles fizeram três circuitos do Complexo de Recuperação antes de Neyali desistir. Para todos os efeitos, o local não tinha defesas. O detector de pureza de ar não revelou nenhum aumento de partículas tóxicas: o sinal normal de phyrexianos escondidos. Estava vazio, exceto por Reyana e aquela coleção de corpos.
— E agora?, disse Elham após voltar ao ponto de observação original.
Ela olhou para onde Reyana estava, preocupada. Neyali queria dizer “eu não sei”, mas não podia. Estavam contando com ela. Elham estava contando com ela, esperando ordens. A mulher tinha sido uma heroína, uma mentora e havia confiado em Neyali para tomar seu lugar quando ela o deixou vago.
Neyali engoliu em seco.
— Vou descer sozinha.
Isso assustou Elham. — Isso é imprudente.
— É estratégico, respondeu Neyali. — Se não vimos alguma coisa e for mesmo uma armadilha, o foco estará em mim, dando ao resto de vocês tempo para retaliar.
— E se estivermos em desvantagem numérica?
— Então vocês fogem.
— Neyali...
— Vocês têm duas ordens, disse Neyali, esperando que fossem ouvir sua autoridade, não o tremor na sua voz. Ela sabia o que a bravata podia significar. Completação. Às vezes Neyali imaginava quanto do original restava após a phyresis. Se restava o bastante da mente para gritar eternamente sobre o corpo havia se tornado.
Se ela também gritaria.
— Uma guarda de honra, rosnou Saheena, vindo da direita, teimosa como o ferro.
— Certo. Neyali respondeu de pronto. — Três de vocês. Comigo. O resto de vocês. A suas estações.
Os mirranianos a saudaram, se dispersando exceto pela matriarca vulshoque e seus dois filhos, que apareciam agonizantemente jovens na luz vermelha. Em formação fechada, eles a seguiram rumo ao poço abaixo: Saheena servia como vanguarda, seus filhos flanqueando Neyali.
Da mesma forma que sua jornada ao Complexo de Restauração, a expedição até Reyana foi sem incidentes. Os phyrexianos mortos permaneceram inertes, como estátuas, apesar de Neyali ter certeza de que eles iriam saltar nos quatro a qualquer momento, como uma massa de carne desfigurada. Nada se moveu.
Eles chegaram na plataforma. Ela balançava com o peso deles, embora não o bastante para se erguer como confirmação. Reyana não respondeu. Ela só ficou lá, olhando para longe, a respiração curta e irregular.
— Reyana, suspirou Neyali, se ajoelhando do lado da amiga.
Com cuidado, ela colocou Reyana se costas. A aurioque, apesar da rigidez, estava acordada: olhos abertos, sem foco, expressão enevoada com a mesma miséria que Neyali havia visto naquela noite, antes da amiga sair caminhando no escuro.
—Reyana, Neyali disse de novo, como se o nome da amiga fosse um feitiço. — Sou eu. Viemos tirar você dessa.
A mulher aurioque piscou uma vez, os cílios longos e pretos como óleo. Seu olhar se focou. A agonia em sua expressão se fortaleceu. — Desculpe, Neyali. Eu só estava tão exausta.
Neyali meneou a cabeça.
— Não há nada para perdoar. Nós somos uma família — disse Neyali, a primeira vez que ela tinha colocado esse sentimento em palavras, a voz repleta de emoção. Sua atenção foi atraída pelas correntes enroladas em torno dos pulsos e braços de Reyana: eram de feitura incomum, mais elegantes do que os phyrexianos costumavam usar, mais como tendões oxidados, mais bonitos. — E família fica junta.
— Sinto muito, Reyana disse de novo em vez de responder, seus dedos tocando os de Neyali, subindo por seus antebraços; havia alguma coisa contemplativa em seus movimentos, como se estivesse avaliando a amiga ou, mais precisamente, a decisão que ela representava. — Eu realmente sinto muito.
O ar se acelerou. Um brilho de luz vermelha alaranjada subiu pelos braços de Reyana, passando por suas amarras, chegando até os nós dos dedos de Neyali. A última se afastou para atrás instintivamente. Menos de um segundo depois, a luz escureceu e se materializou em um nó de correntes, caindo na plataforma com um baque. Reyana, não mais presa, se sentou placidamente, piscando para seus colegas de célula como se fossem estranhos.
— Eu sabia, rosnou a matriarca. — Traidora.
— O que eles prometeram a você, Reyana? Neyali chorou, furiosa por seus medos — aquela vozinha, aquela que havia suspirado de novo e de novo, ela foi por conta própria — terem se provados corretos. Neyali avaliou os arredores. Tarde demais para correr, mas os quatro ainda poderiam ganhar tempo para o resto da célula. Ela só precisava dar o sinal, se assegurar de que o resto sabia que devia evitar heroísmo de última hora. Seu olhar se ergueu para o ar sufocado por fumaça; Otharri não estava à vista.
Teria ele sido capturado?
Não. Impossível. A única forma de Phyrexia ter Otharri era como um cadáver, e isso não aconteceria sem uma luta que ecoaria por toda a Camada de Fornalhas. Havia um motivo para os mirranianos verem as fênixes como símbolos da esperanças e os phyrexianos as verem como presságios de morte. Ele estava em algum lugar na fumaça, Neyali tinha certeza. Vá embora — ela pediu em pensamento para o pássaro de fogo. Fuja. Leve os outros para um lugar seguro. Não deixe que o peguem.
— Paz!, gritou Reyana, cambaleando até ficar de pé. Ela chorava enquanto falava, cada palavra um soluço. — Não somos todos como você. Não quero morrer com medo, Neyali. Não quero uma vida como a da minha mãe. Quero que pare. Você entender? Quero que isso acabe. Quero a paz perfeita que minha mãe recebeu. Slobad — ele prometeu que haverá paz. Que eu serei reunida com as pessoas que eu amo, por quem eu anseio, de quem eu sinto falta.
— E você será, veio uma nova voz por trás de Neyali, uma voz surpreendentemente normal dadas as suas origens.
Ela se virou, vendo Slobad na beira do poço. Neyali o havia visto antes, e não teve boas impressões dele na época: só mais um horror phyrexiano em um exército de milhões. Agora, ela estava próxima o bastante para estremecer diante da verdade dele. Sua pequena forma goblinoide estava integrada a um construto massivo de cabos e chapas de metal, um ombro ostentando uma dragona com um tríptico de cabeças goblin gritando e Neyali podia ver onde os membros de Slobad tinham sido serrados, onde eles tinham sido amputados nas juntas e soldados no exoesqueleto de um corpo phyrexiano similar a um golem.
— Não somos seus inimigos, ele disse. — Lá fora, o mundo é duro e frio e toma tudo. Amigos, família. Mas aqui? Estamos seguros. Somos família. E temos todas as pessoas que amamos, uh?
Slobad olhou para suas mãos enormes e depois para o quarteto.
— Você é Neyali.
Seus companheiros assumiram posição, armas prontas. Antes morte que a completação, Neyali pensou. — Não tenho medo de você.
— E por que deveria ter? Não há nada cruel aqui, uh? Não queremos machucar nenhum de vocês. Só queremos nos reunir com aqueles que amamos, disse Slobad suavemente. — Os mirranianos procuram você em busca de liderança. Por que não guiá-los para casa, onde serão amados?
— Pai? — choramingou um dos vulshoques mais jovens, sua lança caindo das mão.
Um aspirante surgiu ao lado de Slobad: um homem vulshoque, com chifres, quase inteiramente trajado de aço.
— Mantenham o foco — ela avisou aos aliados. — Não esmoreçam.
— Eu ofereço uma escolha a vocês. A vocês quatro, disse Slobad. — Para o resto dos mirranianos escondidos.
Neyali sentiu o coração apertar.
Slobad sabia.
— Estamos com você, seja o que você decidir, disse Saheena calmamente. — Diga para morremos contigo e morreremos. Até o fim, Neyali. Havia uma leve falha na calma de sua voz e Neyali questionou se ela havia jurado aquelas mesmas palavras ao parceiro que achava estar morto, que agora aparecia diante deles, ou pelo menos a casca dele. — Estamos com você até o fim.
Neyali olhou de volta para onde Reyana estava. Ela estava de joelhos, as mãos retorcidas juntas em oração, balançando no lugar. Estava chorando: lágrimas, não óleo, e era muito pior que se Reyana tivesse sido corrompida. Saber que Reyana havia escolhido isso. Saber que ela havia optado por ser uma isca.
Neyali, a imbecil que era, havia entrado direto na armadilha, mesmo que cada instinto tivesse implorado para que ela não o fizessem. Mas ainda havia salvação.
— Por que deveríamos confiar em você? — disse Neyali. — Como eu sei que você não vai levar todos nós, de qualquer forma? Urabrask deu suas ordens. Você não devia ter coisa melhor pra fazer do que nos prejudicar?
— Prejudicar? Por que eu prejudicaria você, uh? Não quero. Só quero ajudar.
Neyali engoliu em seco, olhando para aqueles que ela havia liderado até a ruína.
— Deixe esses três irem, se você acredita nisso.
— Feito.
— Neyali...
Vão, disse Neyali. — Antes que ele mude de ideia.
Ela podia sentir a matriarca vulshoque tensa, seus filhos trêmulos: um choramingo mordido por um, um suspiro de frustração engolido por outro. Então, Saheena acenou, quase imperceptivelmente. Os três passaram por Neyali. Mantendo sua palavra, Slobad e seus asseclas não fizeram nada, apenas observando com seus olhos brilhantes de fundição.
Era piedade da parte de Slobad, Neyali decidiu, que ela fosse colocada em uma jaula muito acima de onde Reyana aceitaria o óleo brilhante. Desse ponto, Neyali quase conseguia fingir que sua amiga era uma estranha, uma traidora com quem ela havia rompido laços. Pelo menos o resto da célula está segura, Neyali pensou para si mesma, se agarrando às palavras como se fossem a salvação. Pelo menos Otharri estava seguro.
Ela se agarraria àquilo enquanto pudesse. Com sorte, quando a hora chegasse, seria o que a retardaria o bastante para um guerreiro da resistência a derrotar.
Para surpresa de Neyali, não foi um sacerdote que veio começar a transformação de Reyana, mas o próprio Slobad. Havia uma ternura em como o goblin disse à amiga de Neyali para ficar de joelhos, uma graça em como ela se abaixou, o círculo de bronze do seu rosto se erguendo como se fosse receber uma bênção.
Neyali desviou o olhar, incapaz de aguentar o olhar.
Pelo menos o resto da célula está segura, Neyali disse para si mesma de novo. Pelo menos Otharri está seguro.
Ela ouviu um clique gentil, então: patas repousando nas barras acima da sua cabeça. O pássaro de fogo trilou uma série de sons baixos como cumprimento, o bico enfiado entre as ripas.
— O que está fazendo aqui? — Neyali sussurrou, tentando manter o alívio longe da voz e falhando. — Você tem que ir.
O pássaro de fogo fixou um olho incrédulo nela e inalou.
— Sou só uma pessoa. Não valho a pena. Você...
Neyali riu de forma delirante, incapaz de se conter, atingida pela própria hipocrisia. Tudo isso havia acontecido por causa de apenas uma pessoa. Ela havia dado tudo para salvar Reyana, acreditando que sim, aquela vida podia ser tão importante.
Otharri soprou.
O ar sulfúrico foi de laranja sujo para um branco azulado incandescente conforme as chamas do pássaro de fogo incineravam as barras. Cinzas, ainda tingidas de ouro, se soltaram na brisa. Ele mergulhou para a próxima jaula, fazendo isso de novo e de novo, enquanto um alarma soava no Complexo de Recuperação. Otharri cantava um chamado às armas desafiador.
E Neyali respondeu com um grito contente dela mesma.
— Não é — ela urrou. Magia saltou de cada um dos mirranianos que Otharri soltou, manchas de fogo que grudavam em suas peles. Neyali olhou para onde Slobad esperava com a marreta em mãos — Não é aqui que eu morrerei.
Se eles se movessem rápido o bastante entre as estruturas gigantes, não haveria chance dos phyrexianos alcançarem. Os poucos que subiam pelas jaulas eram afastados pelo fogo de Otharri. Neyali procurou por Reyana no caos e a encontrou atrás, olhando para o clamor. Apesar de tudo, ela ainda esticou a mão, uma tentativa final.
Reyana se virou.
Então era isso. Neyali engoliu em seco. O que ela daria para ter tempo de discutir com Reyana, tempo para insistir que não havia motivo par se render, que Reyana precisava lutar. Mas elas tomavam suas próprias decisões. Seus caminhos haviam se separado. Neyali saudou sua ex-amiga. Na distância, ela podia ver sua célula — não só aqueles que haviam escolhido seguir Neyali em sua missão quixotesca, mas todos — invadindo o Complexo da Recuperação para abrir uma rota de fuga. Mais tarde, ela teria tempo para ficar de luto.
Agora ela precisava liderar seu povo para longe.