Akiri falling from Trailer

Akiri conhecia a sensação de cair tão intimamente quanto a força de suas mãos. Ela não temia o fluxo de ar no seu rosto ou o modo com que seu estômago pulava para a garganta. Ela era a melhor fundeira de linha em Zendikar, e ela aprendeu há muito tempo que, às vezes, para subir você tem que cair.

Mas ela nunca caíra tanto e por tanto tempo. Ela nunca caíra sem esperança.

Ela conseguia ver o Enclave Celeste de Murasa diminuindo acima dela enquanto tombava. E se ela fechasse os olhos, Akiri veria o semblante calmo e indiferente de Nahiri e o Núcleo em sua mão, naquele momento terrível antes de ter sido empurrada da ruína flutuante.

Naqueles primeiros segundos de desespero, Akiri lançou suas cordas e ganchos em cada plataforma ou edro inclinado ao seu alcance. Mas, ao invés de se despedaçarem, os pedaços do Enclave Celeste de Murasa estavam se movendo. Estavam se remendando como um quebra-cabeças impossível, e seus ganchos perderam ancoragem, sendo esmagados antes que Akiri conseguisse se salvar.

Logo, a única coisa em volta dela era o céu.

Esses são os últimos momentos da minha vida, percebeu ela. O pesar e a raiva a atingiram como um soco. Akiri não conseguira salvar ou proteger a nada que ela amava naqueles minutos de desespero, antes de Nahiri empurrá-la.

Zendikar. Zareth. Ela fechou os olhos e pensou no seu amigo e amor, afastando a imagem do rosto paralisado em um grito no momento da morte dele, lembrando-se dele gargalhando, fundeando linha com ela, com aqueles olhos brilhantes e cheios de travessura.

Akiri abraçou a memória dele enquanto esperava pelo chão. Logo, ela veria Zareth.

O impacto lhe tirou o fôlego. Seu pescoço e membros se lançaram dolorosamente para a frente. Depois, voltaram.

De repente, Akiri não estava mais caindo.

Estranho, pensou ela. A morte é mais gentil do que eu imaginava. Ela esperara sentir os galhos das árvores harabaz quebrando contra o seu corpo, pelo menos, se é que ela conseguiria sentir algo. Ao abrir os olhos, ela esperava apenas escuridão, mas em volta dela havia apenas o céu claro e azul. Ao virar a cabeça, ela viu a Baía do Rachacasco a várias dezenas de metros abaixo, suas árvores balançando e se debatendo contra as ondas inexoráveis.

“Quê?” Sussurrou ela. Ela estava suspensa em pleno ar. Impossível.

“Peguei você!” Alguém gritou mais acima.

Akiri olhou para o alto novamente, apertando os olhos por causa do sol, e ela mal conseguiu discernir uma figura esbelta se apoiando em um cajado. Ela estava de pé no que parecia ser uma escada feita de galhos. Mas isso também parecia impossível.

“Quê?” Sussurrou ela, novamente.

Forest
Floresta | Ilustração: Tianhua X

Akiri teve a sensação de ser erguida e percebeu que havia um galho de espinheiros enroscado firmemente no seu tórax.

Ao se aproximar da silhueta na escada, ela viu que era uma elfa com cabelos longos e escuros, usando roupas verdes. Mais abaixo na escadaria, um homem com cabelos bagunçados pelo vento e olhos claros subia cuidadosamente.

O espinheiro pousou Akiri gentilmente na escada, a menos de um metro da elfa.

“Obrigada,” disse Akiri, depois de um momento. Foi só o que ela conseguiu dizer.

“Você está bem?” Perguntou sua salvadora.

“Sim.” Akiri olhou para cima, para o Enclave Celeste de Murasa. Estava quase inteiro agora, como se eles nunca tivessem ativado a armadilha. Como se Akiri e seu grupo não tivessem acabado de lutar por suas vidas. Como se Zareth tivesse morrido em vão. “Não,” sussurrou ela, enquanto seus joelhos perdiam as forças.

“Calma” — a elfa a pegou pelos ombros, a apoiando — “eu seguro você.”

“Quem é você?” Perguntou Akiri.

“Meu nome é Nissa,” respondeu ela e, com um sorriso tímido, adicionou: “aquele subindo devagar é o Jace.”

Jace grunhiu enquanto subia até elas. “Estou sem prática. Não temos masmorras elevadas em Ravnica.”

Akiri os observou por um momento. Havia algo sobre os dois que ela não teria reconhecido alguns dias antes, algo que ela sempre dispensou como mitos e histórias de acampamento. Uma sensação de poder sem palavras, que continham segredos vastos como o mundo. A sensação de que eles tinham um pé aqui...e o outro acolá.

Igual a Nahiri.

“Vocês conseguem viajar para outros mundos, não é?” Indagou ela, se retraindo das mãos de Nissa.

Nissa e Jace se entreolharam. “Você sabe sobre planinautas?” perguntou Jace.

Os mitos chamavam vocês de caminhantes. Planinauta. Meu demônio tem um nome, pensou Akiri, com o peito apertado e cheio de pesar. “Eu conheci Nahiri. Foi ela quem me empurrou.” Ela apontou para o Enclave Celeste.

Ela notou que nenhum dos planinautas pareceu estar surpreso. Os dois estavam encarando o Enclave Celeste de Murasa.

“Ela já está com o Núcleo?” Indagou Nissa, cerrando as mãos ao lado do corpo.

“Sim.” Uma imagem do rosto cruel de Nahiri apareceu em um lampejo na mente de Akiri. E o rosto morto de Zareth.

“Ainda podemos alcançá-la,” disse Jace, começando a subir novamente. “Rápido.”

“Não, Jace!” Exclamou Nissa. “Veja!”

Akiri olhou para onde Nissa estava apontando. Ao longe, ela conseguia discernir uma figura de cabelos brancos correndo pelo ar, como se descesse um lance de escadas. Akiri reconheceu o trabalho com pedra. O vislumbre de Nahiri fez o estômago de Akiri retorcer.

Nissa estendeu a mão bruscamente, lançando dúzias de flechas de espinho na direção de Nahiri. Mas a distância entre as duas era grande demais. Nahiri teve bastante tempo para bloquear o ataque com um movimento de punho e um pedregulho bem colocado.

Akiri se retraiu, preparando suas cordas. Espere, pensou ela. Ainda não.

Ela ouviu Jace expirar atrás dela, e Akiri se virou para vê-lo encarando Nahiri ao longe. Ele estendeu três dedos na direção da litoforjadora, como se fosse um ataque, e Akiri prendeu a respiração.

Nada aconteceu.

E então Nahiri cambaleou, segurando os dois lados de sua cabeça. A boca de Jace estremeceu.

Nahiri recuperou o equilíbrio em um instante e deslizou até parar nos degraus de pedra. Ela se virou na direção de Jace.

Até mesmo dessa distância, a malícia no olhar gélido de Nahiri fez sua pele arrepiar.

“Cuidado!” Akiri gritou, empurrando Jace para fora do caminho antes que um pedregulho se chocasse contra ele.

E então, ela estava caindo novamente. Desta vez, segurando Jace.

Akiri era a melhor fundeira de linha em Zendikar por algum motivo, e ela estava esperando o ataque de Nahiri. Em segundos, ela lançou a corda em sua mão e prendeu seu gancho na escadaria de vinhas. Ela utilizou seu impulso para fazer um balanço para desviar de outro pedregulho e, com três movimentos de mão ante mão, ergueu a si e a Jace de volta para a escadaria de espinheiros.

Quando ela olhou para o céu novamente, Nahiri sumira. Akiri expirou, aliviada por estar fora do campo de visão de Nahiri e furiosa que ela tenha escapado.

“Isso foi...” disse Jace para Akiri, se recuperando, “impressionante.”

“Nahiri contratou meu grupo por um motivo. Nós somos...éramos...os melhores do mundo,” respondeu Akiri. Com uma pontada de preocupação, ela se perguntou onde estavam Orah e Kaza.

Por favor, estejam vivos, pensou ela.

“Precisamos segui-la, rápido!” Disse Nissa quando ela começou a subir os espinheiros.

“Ah, se é velocidade o que você quer...” sugeriu Akiri com uma certeza gélida. Ela era Akiri, a Viajante Destemida, e era a mestra desse domínio. Este era o seu lar. Ela começou a rodopiar outra corda.

Fundeando linha e com as vinhas de Nissa, eles voaram além da Baía do Rachacasco e das copas das árvores harabaz, até as imponentes e infames falésias de Murasa. Akiri varria o céu como um pássaro por aquelas alturas estonteantes, apesar de precisar ajudar Jace. Dessa vez, sua queda era praticada, controlada, apesar do seu coração estar tomado pelo pesar.

Ela não podia deixar Nahiri fugir.

Mas eles ainda eram lentos demais. Até que ela, Nissa e Jace alcançassem o planalto florestado além das falésias, Nahiri tinha sumido.

Nissa cerrou os punhos e se apoiou contra uma enorme árvore jurworrel. Ali, ela ficou imóvel e fechou os olhos, com a cabeça levemente inclinada para um lado.

“O que ela está fazendo?” Sussurrou Akiri, para Jace. Jace deu de ombros.

“Ouvindo,” respondeu Nissa. Depois de um momento, ela abriu os olhos. “Ela foi para o norte, mas não sei dizer exatamente para onde. Nahiri contou a você aonde iria depois?” Perguntou ela para Akiri.

Akiri meneou a cabeça. Agora que ela estava no chão novamente, as memórias de Zareth a cercaram. Ela tinha passado tempo demais com os misteriosos planinautas. Ela compreendia agora que eram tão perigosos quanto os Eldrazi. “Obrigada mais uma vez por me salvarem,” disse ela, reunindo suas cordas.

“Aonde você vai?” Perguntou Jace, alarmado.

“Preciso encontrar Orah e Kaza.”

“Quem?”

“Meus amigos. Espero que Nahiri não os tenha matado também.” Akiri engoliu em seco. Ela não sabia o que faria se perdesse seu segundo grupo aventureiro mais uma vez. Sua segunda família.

“Sua ajuda seria útil,” suplicou Jace.

“Bom, não vão ter,” replicou Akiri. “Trabalhar para Nahiri foi um dos meus maiores erros. Ela usou o Núcleo...Zareth” — Akiri respirou fundo — “Cansei de ajudar gente de outros mundos.” Ela não tinha certeza de onde Nahiri tinha vindo, mas não era da Zendikar que ela amava.

“Eu não sou de outro mundo,” disse Nissa, em voz baixa. “Eu nasci aqui. Em Bala Ged. Minha tribo...minha tribo foi quase toda devastada pelos Eldrazi. E eu sinto a destruição por todos os lugares deste mundo.” Ela endireitou a postura e olhou nos olhos de Akiri. “Este é o meu lar e sempre será. E eu me recuso a deixar que Nahiri o altere para sua visão pétrea e morta.” Ela falava com suavidade, mas com uma determinação feroz em sua postura, em sua voz.

Pela primeira vez, Akiri notou como a floresta inteira parecia se inclinar na direção desta pequenina elfa. Como se estivesse esperando por um comando dela.

“Então você deve saber,” disse Akiri, “que o Núcleo corrompe e mata. Bestas, árvores...

Pessoas, ela não teve forças para dizer.

O semblante de Nissa mostrava dor, mas não surpresa. “Então, você não tem ideia de onde ela deve ter ido?” Perguntou ela.

“Nenhuma,” respondeu Akiri.

“Talvez eu tenha,” disse Jace, parecendo culpado. As duas mulheres olharam surpresas para ele. “Eu espiei os pensamentos dela,” admitiu ele. “Ela está indo para a Cidade Cantante.”

Akiri conhecia as lendas sobre a Cidade Cantante. Diziam que quem caminhava por suas ruínas enlouquecia.

“Creio que olhar a mente dela tenha sido a decisão certa,” disse Nissa, gentilmente. Então, o cenho dela franziu. “Mas por que ela quer ir para lá?”

“Porque foi construído pelos antigos kor,” respondeu Jace.

“O quê?” Nissa e Akiri perguntaram, em uníssono.

“Bom, é uma conclusão lógica,” disse Jace. “Eles construíram as cidades antigas deste mundo.” Mas os olhos de Nissa estavam fechados novamente, escutando.

“Eu consigo chegar lá mais rápido sozinha,” disse ela.

“Nissa, espere,” começou Jace, alarmado.

Mas estava claro para Akiri que Nissa não esperaria por ninguém. Já tinha um emaranhado de raízes de jurworrel se levantando embaixo dela, erguendo-a no ar. “Eu vou derrotar Nahiri e destruir o Núcleo,” disse ela, olhando para Akiri. “Eu prometo.” Mas dessa vez, atrás da determinação silenciosa, Akiri ouviu raiva.

Akiri assentiu com a cabeça. “Se apresse.”

“Nissa,” disse Jace, mas nenhuma das duas lhe deram atenção.

Igual a uma linha lançada com propósito, as raízes se incharam e deslizaram floresta adentro.

E então Nissa sumiu.

“Nissa!” Jace gritou, chamando-a. Mas não havia mais nada onde ela esteve, exceto pelo murmúrio da floresta e as árvores altas. Ele se virou para Akiri. “Você pode me levar até a Cidade Cantante?”

“Posso, mas não vou.” Akiri prendeu uma corda em uma raiz espessa de jurworrel acima dela. Ela precisava encontrar os grifos que ela e o grupo tinham usado para vir até Murasa. Ela esperou que Orah e Kaza estivessem na Baía do Rachacasco esperando por ela.

Por favor, estejam bem, pensou ela.

“Por favor, Akiri,” pediu Jace, se aproximando dela.

“Você não é muito bom ouvinte, não é?” Comentou Akiri, erguendo-se do chão. “Eu perdi o suficiente por um dia.”

Por uma vida. Zareth.

“Perdão,” começou Jace. “Eu costumo ser um ouvinte decente. É uma época...bem, alguns anos bem pesados, para ser honesto.”

Sim, foram sim. Akiri se puxou para cima da raiz e procurou pelo próximo ponto de ancoragem.

“Espera, seus amigos são Kaza e Orah, certo?” Perguntou Jace.

Akiri parou, encarando o homem de azul. “O que tem eles?”

Jace fechou os olhos e pressionou os dedos em suas têmporas por um momento. “Estou sentindo duas presenças lá na baía. Suponho que seja o restante do seu grupo. Mas não sei dizer ao certo.”

Akiri agarrou a corda e deslizou até o chão. “Como você faz isso?”

Jace deu de ombros. “Eu sou um mago. Eu sou bom com ilusões e pensamentos.”

“Foi assim que você leu a mente de Nahiri?” Perguntou ela. Jace parecia culpado, e Akiri se retraiu com a ideia de seus pensamentos estarem sendo lidos por esse estranho de outro mundo.

A minha mente é só minha, pensou ela enraivecida, caso Jace estivesse ouvindo. Fique longe dela.

Ela começou a subir novamente.

“E se eu prometesse levar o Núcleo para outro lugar? Para fora de Zendikar?” Jace gritou na direção dela.

E isso quer dizer o quê? Akiri queria perguntar, mas se parou com um leve calafrio. Os Eldrazi eram de algum lugar de fora de Zendikar. Era melhor nem saber.

“Então o Núcleo não seria mais um perigo?” Perguntou ela, em vez disso.

Jace assentiu com a cabeça.

Isso fez Akiri parar. Zareth iria querer que você salvasse Zendikar. O pensamento fez seu coração doer. Roubar o objeto perigoso e mandá-lo para outro mundo? Zareth teria adorado a ideia. E Akiri tinha que admitir; era uma boa solução. Com um suspiro, ela se virou de volta para Jace.

“Eu levo você até a entrada da Cidade, para você ajudar Nissa,” disse ela, cuidadosamente, “mas só isso.”

“Obrigado, Akiri,” disse Jace, aliviado.

Se ele estava lendo seus pensamentos, ela não percebeu sinal algum enquanto abriam caminho até a Cidade Cantante.

Só muito depois de ela reencontrar Orah e Kaza na Baía do Rachacasco, Akiri notou que nunca tinha dito seu nome a Jace.


Jace seguiu Akiri pelas enormes e emaranhadas árvores jurworrel até que elas abriram caminho para uma floresta que havia sido arruinada pelos Eldrazi. Aqui, a paisagem doentia e escurecida fez o estômago de Jace se apertar com a culpa, apesar de notar que havia vida nova tentando crescer no lodaçal.

Ele prosseguiu.

Ele a seguiu enquanto as árvores irrompiam contra escarpas altas como a Barreira de Murasa. Ele a seguiu enquanto escalavam as pedras rachadas, onde os rosnados graves de feras escondidas nas cavernas às vezes faziam a rocha sob suas mãos vibrar.

Jace seguiu Akiri até o Planalto de Na e pela densa floresta mais além. Ele estava aliviado de não ter que fazer essa jornada sozinho, já que as árvores jaddi iam ficando mais densas e mais sombrias conforme se aproximavam da cidade.

Akiri ficou calada durante a jornada toda, exceto para sussurrar “Cuidado com os vormes” ou “Tem goblins por aqui. Faça o mínimo de barulho possível.”

Jace conseguia perceber que ela estava segurando sua preocupação e pesar, tentando não demonstrar, embora fosse bem óbvio para ele. Talvez o fosse por ele estar segurando seus próprios segredos dolorosos.

Eles chegaram em uma interrupção da floresta. À frente deles estava o que restou de uma cidade muito antiga. Era como se fosse um dos enormes Enclaves Celestes acomodado no solo. Suas torres de pedra estavam tombadas e partidas, e suas muralhas estavam cobertas de musgo e flora. O ar tinha um cheiro ruim e empoeirado, e tudo zunia misteriosamente. O portão na entrada era feito de mármore — escuro e enorme e retorcido e belo, se entrelaçando e enroscando em um padrão complexo como os das árvores jaddi. Ele se assomava à frente de Jace e Akiri.

“Algum conselho?” Perguntou ele.

“Não enlouqueça,” respondeu ela.

“Certo.” Jace endireitou o capuz. “Agradeço a sua ajuda. E...meus pêsames pelo seu amigo. Eu sei como é perder alguém próximo.”

Akiri assentiu com a cabeça, com os dentes cerrados e emoções suprimidas. Ela se virou e começou a ir embora, mas depois parou.

“Espero que a sorte de Nissa dure mais do que a minha,” disse ela, por cima do ombro. Depois, ela sumiu sob a sombra das árvores.

“Certo,” disse Jace, mais uma vez, se aproximando do portão.

Estava destrancado.

O lado de dentro era um labirinto de ruínas. Aposentos cobertos pelo musgo e corredores se estendiam à frente dele, sem saída visível. O coração de Jace afundou. Estava claro que isso não seria fácil. Por mais que ele adorasse um enigma, essa não era uma boa hora para se perder.

Por todos os lugares havia um zunido grave, ligeiramente desafinado, que Jace não conseguia ignorar.

À sua direita, algo se moveu. Jace lançou uma proteção mágica em volta de si imediatamente. Ele seguiu o som, dobrou uma esquina e viu uma figura de cabelos brancos, virada de costas.

“Olá, Jace,” disse Nahiri, sem se virar. “É claro que você está aqui.”

“Eu vim em nome de Nissa,” disse ele.

“Naturalmente.”

“Ela diz que esse Núcleo destruirá Zendikar.”

Nahiri se virou e olhou para ele, fechando a cara. “Quem disse isso foi a pessoa que libertou os Eldrazi neste plano de existência.”

Jace rangeu os dentes. Ele também foi um dos planinautas que acidentalmente libertaram os Eldrazi. “Ela achava que estava fazendo o melhor possível.”

“Como está fazendo agora?” Nahiri ergueu uma sobrancelha, e Jace não tinha resposta. “Diferente daquela tonta que mora em árvores, eu sei que estou certa.”

“Igual a quando você sabia que era certo prender os Eldrazi aqui?” Replicou Jace.

O semblante de Nahiri ficou nublado com raiva. “Como ousa?”

“Nós não compreendemos o Núcleo Litoforme,” disse ele, inexpressivo, apesar de continuar segurando firmemente sua proteção mágica. “Me dê o Núcleo, Nahiri, e juntos vamos poder desvendar seus mistérios. “Em Ravnica.”

Nahiri parou e, por um momento, Jace teve esperança.

Então, ela entrou em posição de batalha.

“Nunca,” rosnou ela. E com um golpe de sua mão, ela uniu as pedras nos dois lados de Jace.

As rochas esmagaram a barreira de Jace, o que as desaceleraram o suficiente para que ele conseguisse desviar do caminho. Ele rolou para trás, se preparando para o próximo ataque, criando uma dúzia de Jaces ilusórios à sua volta.

Mas Nahiri já estava correndo caminho adentro. Xingando, Jace cancelou as ilusões e correu atrás dela.

Ele disparou por corredores antiquíssimos, vendo brevemente arcos espiralados e pátios desmoronados. Ele correu, seguindo as pegadas que Nahiri deixadas na poeira enquanto ela cruzava por passagens estreitas e corredores serpenteantes.

Ele correu por escadarias quebradas e retorcidas. Para as entranhas desta antiga cidade kor.

Foi aqui que o estranho zunido da cidade se tornou uma canção perturbadora. Era um réquiem para algo que Jace não sabia nomear, suas harmonias doces e vibrações graves o encheram de tanta tristeza e saudade que ele considerou parar de perseguir.

Não, eu tenho que parar Nahiri, pensou ele, ouvindo os passos dela à frente. Estavam ficando mais lentos. Ele manteve o ritmo.

Cidade adentro, a melodia foi ficando mais alta, mais complexa e distorcida, mais insistente. Jace rangeu os dentes. Ele conseguia ver a silhueta de Nahiri ao longe. A canção assombrosa fazia suas juntas doerem.

Eu tenho que alcançar Nahiri. Jace cambaleou até o corredor em espiral.

Mas um passo era pior do que o outro. A música aumentou, o canto assombroso aumentou, exigindo toda sua atenção. Jace cambaleou, grunhiu.

Eu tenho que encontrar...

Ele viu que agora havia arcos de magia azul em volta dele, iluminados no tempo da música. A canção abafava todo o som, todo o pensamento. Jace caiu de joelhos, tampando os ouvidos com as mãos.

Eu tenho que... Eu tenho que...

Ele estava com dificuldade para se concentrar e se agarrou em um pensamento. Não. Surta. Agora.

Era arriscado e não tinha sido experimentado antes, mas Jace estava desesperado. Ele soltou os ouvidos e tentou uma mágica, uma que ele queria testar eventualmente, mas não tinha tido a chance ainda. Uma magia que era delicada e perigosa. Uma magia que bloqueava qualquer som que entrava em seus ouvidos.

Maddening Cacophony
Cacofonia Enlouquecedora | Ilustração: Magali Villeneuve

O canto atingiu um crescente impossível. Cada fibra do seu corpo teve espasmos, sua mente gritava pedindo por algum alívio, começando a se esfarrapar.

E então, em meio a uma nota, a canção parou.

Jace deu um suspiro. Sua magia funcionou.

Em segundos, sua mente clareou e suas juntas destravaram. Ele conseguiu ver Nahiri caída no chão à frente dele, com as mãos cobrindo os ouvidos. Ele ficou de pé e foi rapidamente até Nahiri, movendo as mãos acima dela e aumentando o raio de sua magia para cobri-la.

Ela grunhiu e cobriu os olhos. Jace se preparou, sem saber ao certo qual seria a próxima reação da litomante, preocupado com um ataque.

Ele a chamou telepaticamente. Você está bem, Nahiri?

Ela cambaleou e ficou de pé, endireitou os ombros e olhou friamente para Jace. Você quer um agradecimento?

Claro que não, Jace sorriu para dentro.

Ela fechou a cara e olhou para os próprios pés. Eu não tinha ouvido antes. O canto. Então, quando ouvi, achei que eu era poderosa demais e ele não me afetaria.

Jace assentiu. Esse plano de existência sempre foi cheio de surpresas.

O Núcleo e eu não vamos sair de Zendikar, Jace. Sua postura endireitou mais ainda, com um olhar firme de desafio.

Certo. Jace percebeu que teria que mudar de tática se ele quisesse convencer Nahiri. Aonde você vai, então?

Para o centro da cidade. Ativá-lo.

Jace esperou, cruzando os braços.

Nahiri revirou os olhos. As runas dizem que tem um ponto de foco mágico lá que pode canalizar a energia do Núcleo por toda Zendikar por meio das linhas de força.

Isso chamou a atenção de Jace. Universalizando a transformação?

Nahiri assentiu, com preocupação na face.

Jace viu, então, como Nahiri imaginava seu plano de existência curado. Era Zendikar transformada. Cidades vastas e belas com milhares de pessoas criando, vendendo, vicejando. Arcos entalhados e uma arquitetura complexa de tirar o fôlego por todos os cantos. E, acima de tudo, o plano estaria estável. Seguro.

Esta imagem lhe lembrou de Ravnica.

Eu não vou impedir você, Nahiri, se você prometer não utilizar o Núcleo até que nós estudemos esse mecanismo com mais detalhes.

Nahiri parou, considerando, e depois assentiu. Eu não tenho desejo algum de ferir o meu lar.

Mas Jace conseguia ver os pensamentos dela e sabia que a definição que Nahiri tinha de ‘ferir’ não era a mesma dele, ou a de Nissa. Ela destruiria cidades e exércitos inteiros para atingir seus objetivos.

Ele também sabia que se fosse compreender os mistérios do Núcleo ele teria que compreender como ele era ativado. Que, se fosse para ser alguma espécie de arma útil nas batalhas por vir, seu poder misterioso tinha de ser quantificado primeiro.

E ele sabia que eles precisariam de toda arma que os planos poderiam oferecer quando enfrentarem Nicol Bolas novamente.

Então, com um sorriso apaziguador, ele se virou para Nahiri e pensou: Nos leve até lá.


Nahiri e Jace viajaram pelo labirinto que era a Cidade Cantante, sua trégua em uma corda-bamba tensa no espaço entre os dois. Nahiri ficava perto de Jace, para garantir que estivesse dentro do alcance da sua magia. Ela nunca mais queria ouvir aquelas vozes loucas e assombrosas novamente.

Enquanto caminhavam, ela mantinha uma das mãos passando pelas paredes de pedra com musgo, e a outra na bolsa de couro pendurada em seu quadril. O Núcleo sob sua mão estava cálido e ela sentia seu poder vibrante. Lhe fazia sorrir.

Mas ele também continuava a sussurrar, algo baixo o suficiente para que ela não conseguisse entender. Talvez, quando ela tivesse um momento depois de restaurar Zendikar a sua antiga beleza, ela tentaria decifrar o significado dos sussurros.

Felizmente, Jace ficou quieto, talvez vendo em seus pensamentos furiosos que ela repetia o mantranunca mais, nunca mais.

As vibrações das pedras os levavam por corredores que pareciam sem fim, pátios vazios, para cima em escadarias rachadas e espiraladas. Ela estava tão perto, agora. Tão perto de encontrar o ponto de foco no centro da Cidade Cantante. Tão perto de finalmente consertar todo o dano que ela ajudou a criar, há tanto tempo.

Quando eles subiram a última escadaria, eles se viram no meio de um jardim antigo, agora coberto pelo mato e tomado por raízes de jaddi, samambaias, musgo e flores em um púrpura intenso. Ainda havia algumas treliças e fontes secas, e as sombras de caminhos entre eles.

Jace ergueu as mãos e as abaixou lentamente, encerrando a magia de silêncio. O zunido misterioso da cidade voltou, mas não ficou mais alto.

“E agora?” perguntou Jace.

Ela puxou o Núcleo Litoforme de dentro de sua bolsa de couro. Ele brilhava na sua mão com promessas de poder. Seus sussurros ficaram frenéticos, furiosos.

“Você ouve isso?” Indagou Nahiri, segurando o Núcleo.

“Ouvir o quê?” Perguntou Jace, franzindo o cenho.

“Nada,” disse Nahiri, rapidamente. “Vamos lá.”

“Aonde?”

Nahiri apontou para uma grande estrutura à frente deles, como um gazebo. Até mesmo de onde estavam, ela conseguia ver como estava arruinado, em colapso. Mas não era o mesmo para tudo em Zendikar?

Ela guardou o Núcleo de volta na bolsa e caminhou a passos largos.

Algo estava errado. A sensação foi crescendo ao se aproximarem do edifício arruinado, e Nahiri percebeu que o gazebo tinha caído sobre si mesmo, esmagando o que estava ali dentro.

“Não,” disse Nahiri, correndo até a entrada desmoronada e pousando suas mãos sobre ela. As vibrações da rocha disseram a ela que o dano foi recente.

“O que você está fazendo?” Indagou Jace.

“Consertando!” Exclamou Nahiri enquanto as rochas em volta dela começaram a se mover. Ela podia desfazer esses danos. Ela tinha que fazê-lo.

“Não se incomode,” disse uma voz atrás deles. Nahiri girou e viu Nissa de pé nas ruínas do antigo jardim, com o cajado em uma das mãos e a outra fechada em um punho ao lado do corpo. Ela estava firme e ereta, com um olhar calmo, mas perigoso.

“O ponto de foco,” disse Nahiri, entredentes, “era aqui.”

“Era,” respondeu Nissa, com frieza, “até que os elementais o destruíram.”

“Você fez suas criaturas fazerem isso?!” Gritou Nahiri. Levaria dias, senão semanas, para desfazer os danos aos canais mágicos daqui.

“Eu não faço elas fazerem nada,” respondeu Nissa. “Eu as ajudo e elas me ajudam. Eu sou a guardiã de Zendikar, e elas são a incorporação viva deste plano.” Atrás dela, um elemental gigante apareceu. Seus membros eram feitos de raízes e folhas, e sua cabeça tinha uma galhada gigantesca que mais pareciam asas. “Não é verdade, Ashaya?”

Ashaya, Soul of the Wild
Ashaya, Alma da Natureza | Ilustração: Chase Stone

Nahiri fechou a cara, mas a aparição de um elemental tão formidável a fez parar. Tanto ela e Jace deram um passo para trás.

“Nissa.” Jace ergueu as mãos em um gesto pacificador. “Eu prometo que não vou utilizar o Núcleo, ou deixar que alguém o use,” disse ele, olhando para Nahiri, “até nós o entendermos.”

“E o que sua palavra significa quando a outra parte não vai respeitá-la?” Replicou Nissa. Ela estava encarando Nahiri.

“Caso ela não o faça,” disse Jace, com uma calma irritante, “ela vai se encontrar em uma ilusão impressionantemente crível da Cidade Cantante. Só que dessa vez eu não vou segurar a canção.”

“Enxerido,” sibilou Nahiri. Ela jurou silenciosamente nunca mais confiar em ninguém.

“Não quero brigar com vocês. Não quero, mesmo,” disse Nissa para Jace e Nahiri. “Nós todos já lutamos o suficiente. Nós merecemos um pouco de paz.”

“Eu concordo totalmente, mas...” começou Jace, “eu acho que Nahiri tem um bom argumento. A antiga Zendikar era linda. Eu vi as memórias dela.”

“Está vendo, até mesmo o enxerido concorda comigo,” disse Nahiri, satisfeita. Finalmente alguém estava sendo sensato.

“Jace, nós já falamos sobre isso. Os elementais—”

“Crescerão novamente. Tudo volta a crescer.”

“Nem tudo,” discordou Nissa, em voz baixa.

“A Zendikar que eu conheço é forte, inquebrável,” argumentou Nahiri.

“Considere a estabilidade,” raciocinou Jace. “Como as pessoas deste plano poderão prosperar sem medo do próximo Turbilhão.”

Nissa deu um passo para trás. E mais um. “Eu confiei em você,” disse ela, para Jace. O horror e a dor em sua face estavam claros.

“Nissa,” implorou Jace.

“Você não vai querer lutar comigo,” ameaçou Nahiri, pousando a mão sobre a bolsa de couro com o Núcleo.

Nissa a encarava diretamente. “Nem tente.”

Mas Nahiri tinha cansado de escutar. Ela tinha enfrentado dragões anciões e vampiros imortais. Ela não seria detida. Não agora. Não por alguém tão pequenina e mole e incerta. Não quando estava tão perto.

Com um movimento dos punhos, Nahiri criou dúzias e mais dúzias de espadas incandescentes. Uma para cada motivo da sua fúria nos últimos mil anos. Com outro movimento de punho, ela lançou as espadas diretamente contra Nissa.

Mas antes que todas suas armas fizessem contato, um borrão derrubou todas as espadas do ar.

Algo colidiu contra Nahiri e tirou seu fôlego, lançando-a ao chão.

Ela rolou e ficou de pé, preparando-se para contra-atacar. Mas o que ela viu a fez parar. Ao lado dela, ela viu Jace prender o fôlego.

Nissa estava flutuando a alguns metros do chão, com os cabelos revoando atrás de si e energias verdes perpassando por ela. Até mesmo de longe, Nahiri conseguia sentir a raiva de Nissa e sua intenção de proteger essa Zendikar fraturada a qualquer custo. Pois, à frente de Nissa, estava Ashaya com todo o seu poder.

A Alma da Natureza parecia inchar com forças e com o impulso de proteger. Seu olhar estava fixo em Nahiri, seus olhos brilhando verdejantes com energia, e ela ergueu quatro dos seus galhos que pareciam braços, atingindo Nahiri com um estalo feroz.

Nahiri rolou para longe bem a tempo. Passando o braço pelo ar, ela ergueu pedras em torno de si e as lançou contra a elemental. Mas as pedras quebraram como vidro contra os galhos, e a criatura nem mesmo estremeceu. Ela virou sua cabeçorra para ela.

A elemental ergueu seus enormes braços mais uma vez.

“Corra!” Jace gritou de trás dela.

Nahiri sempre achou que a retirada era para covardes. Mas Ashaya era implacável. Preciso proteger o Núcleo. Acima de tudo.

Então, ela fugiu.

Juntos, ela e Jace desviaram e saltaram e correram pelo jardim antigo, utilizando toda ilusão e contra-ataque que conheciam. Mas ainda não foi o suficiente. Ashaya era vasta demais, rápida demais. Jace e Nahiri foram derrubados por raízes em cada oportunidade, até que eles só puderam deslizar na direção das escadas, de volta para as entranhas da Cidade Cantante.

O canto assombroso preencheu seus ouvidos. Jace conjurou sua mágica imediatamente para bloquear o som, e juntos eles correram pelos caminhos cobertos de musgo. Ocasionalmente, elementais de musgo ficavam em seu caminho, mas eles eram menores e mais fracos, sendo defletidos facilmente pelas contramágicas de Jace ou um punho certeiro de rochas.

A fúria de Nahiri alimentava sua escapatória. Mas, pela primeira vez em muito tempo, ela também sentiu uma nesga real de medo. Ela tinha subestimado a elfa.

Quando eles chegaram na entrada da cidade e viram os velhos portões de mármore, Nahiri expirou e correu mais rápido. Ela estava quase lá.

Mas então, ela notou uma figura pequenina e familiar de pé na entrada. E, desta vez, Nissa e Ashaya estavam cercadas por dúzias e mais dúzias de outros elementais.

Nahiri e Jace pararam de correr, derrapando.

“Como?” Perguntou Nahiri, resfolegante. “Como você está viajando...tão rápido?”

“Zendikar é o lugar onde eu pertenço. É o coração do meu poder e das minhas forças,” respondeu Nissa. “Eu conheço todos os caminhos e como utilizá-los. Mas vocês dois” — o rosto dela se encheu de fúria, e atrás dela elementais nascidos da flora do Murasa começaram a se levantar — “vocês nunca entenderão. Vão embora da minha casa.”

“Nissa, espere!” Gritou Jace.

“Este é o meu lar, moradora de árvore.” Nahiri se preparou, invocou as rochas em volta de si, e ela sentiu a Cidade Cantante atrás dela estremecer em resposta. “Esse é o meu lar há milhares de anos. E eu não vou deixar você vencer.”

Nahiri estendeu os dedos e ergueu as rochas, invocando todo seu poder para o ataque.

Mas os elementais eram mais rápidos, avançando como uma horda furiosa na direção de Jace e Nahiri. E, naquele momento, Nahiri compreendeu.

A Batalha pela alma de Zendikar tinha começado, e seria uma luta implacável.