Conto anterior: Hora da Revelação

E assim, a Hora da Revelação irrompeu por toda a terra, e era chegada a hora prometida, onde todas as perguntas seriam respondidas. E eis que o Portão para o Além se abriu, e por trás de suas portas brilhantes a verdadeira imagem da maré vindoura transbordou.


Liliana deu um passo para trás, afastando-se do vermelho carmesim do Rio Luxa. As provocações de Razaketh ressoavam em seus ouvidos; ela suspirou.

Estou velha demais pra essa besteira.

Ela firmou sua postura e prendeu os cabelos. O que Liliana sentia naquele momento não era medo ou empolgação; era expectativa. Considerando as circunstâncias, os dois primeiros demônios tinham sido fáceis de derrotar. O efeito-surpresa e seus ataques repentinos jogaram a seu favor.

Que sorte em ter o melhor ajudante do Multiverso.

Jace? Na escuta? Bem longe, dentro de sua mente, ela ouviu uma resposta.

Lili? Cadê você?! A gente está a caminho! A multidão

é enorme, eu sei. Estou na margem do rio, em frente ao portão. Jace, é o Razaketh, ele

"Onde está você, velhota?"

Mais uma vez, a voz do demônio ressoou em altíssimo volume.

O que restava da multidão à sua volta murmurava. Quem não havia fugido ainda ficou com os pés fincados onde estava, tremendo de medo e na incerteza do que estava acontecendo.

Liliana franziu o cenho. Ela sabia que ele seria o tipo que brincaria com ela. Ela não se deixaria morder a isca assim tão fácil.

"Liliana, eu sei que você está aqui . . ."

Ela se esgueirou entre o povo remanescente, e seus olhos acompanhavam o movimento da sombra maldosa que deslizava no ar em círculos preguiçosos acima do rio. Razaketh voou até o portão aberto e escaneou a multidão.

Liliana sentiu sua mão contrair.

Surpresa, ela olhou para baixo.

O movimento de sua mão tinha sido . . . involuntário.

Liliana levou sua mão até a altura dos olhos e uma onda de pavor explodiu em seu peito.

Seus próprios dedos acenavam para ela.

Liliana reagiu com uma interjeição de nojo e sacudiu sua mão.

Era só uma tática para assustar. Ela se recusou a sentir medo. Liliana levou esta mão até o lado esquerdo de seu vestido, na direção do Véu Metálico.

O demônio no portão gargalhou.

"Achei você."

As palavras dele causaram um arrepio em sua nuca.

No canto do olho Liliana viu que o resto das Sentinelas havia chegado. Eles não estavam em suas melhores formas, seus corpos machucados pelo combate corpo-a-corpo que acontecera na arena. Jace se moveu na direção de Liliana, mas ela levantou a mão, demandando pausa e cuidado. Os quatro pararam à sua volta, todos olhando para o demônio.

"Eu não sei até onde suas habilidades se estendem," Liliana sussurrou com voz baixa e urgente. "Mas ele é poderoso. Nós devíamos . . ."

Abruptamente, Liliana parou de falar. O demônio abaixou suas asas; suas palavras - suaves, firmes, calmas —ressoavam pela multidão.

"Vem aqui."

Assim que as palavras chegaram em seus ouvidos, Liliana sentiu sua postura endireitando e seu rosto perdendo a expressão. Com o chamado do demônio, as tatuagens labirintinas em sua pele se acenderam e ela gritava na privacidade de sua mente enquanto seu corpo entrava no rio de sangue, sem pedido ou permissão.

Art by Titus Lunter
Ilustração: Titus Lunter

Em sua longa vida, Liliana sobreviveu a diversos tipos de tortura. Ela lutou, perdeu, envelheceu, decidiu vender sua alma, e muito mais. Mas nada era mais insuportável ou causava mais fúria do que perder o controle. Ela acreditara saber das repercussões quando assinou os contratos com seus demônios há décadas, mas Liliana nunca visualizou os resultados de verdade.

A ira não era uma emoção que Liliana gostava de sentir, com nenhuma frequência. Era como um banho quente demais, uma chama incontrolável, um vestido que tinha uma textura irritante e dava coceira; não era a sensação certa para ela. Mas quando o demônio Razaketh forçou seu corpo rio adentro, Liliana carregou sua ira como um estandarte. Ela se deleitou na fúria que azedava e lutou, se segurando com todas as forças mentais na tentativa de recuperar o controle de si mesma.

Mas foi em vão. Não importava o quanto ela lutava mentalmente; seu ódio não chegou a transparecer em sua face. Sua raiva não contraiu nenhum músculo. Liliana não tinha controle algum sobre a única coisa que era de fato dela.

Que vá tudo ao mais fundo dos infernos!

Ela se segurava e gritava em sua mente, mas a ligação entre sua vontade e seus membros se mantinha quebrada.

Chandra e Nissa tentaram puxar o corpo de Liliana para longe do rio, mas um clarão de energia necromântica afastou suas mãos. As duas mulheres recuaram, tirando as mãos de perto antes que a podridão as atingisse.

Liliana conseguia ouvir Jace gritando em sua cabeça, e conseguia ouvir os ecos da voz de Gideon em seus ouvidos, mas sua atenção estava fixada à sua frente, em Razaketh.

Vá até ele - era o único comando que seu corpo reconhecia. Com o Véu Metálico guardado no bolso, o demônio perto demais e seus aliados impossibilitados de impedi-la de entrar no rio.

Ela queria arrancar os olhos do demônio e engolir cada um deles, inteiros. Liliana gritava obscenidades em sua mente, uma atrás da outra, na esperança de sua cascata de xingamentos e maldições fazer com que o demônio a largasse.

Mas ele não largou.

Liliana entrou em passos largos para dentro do sangue do Luxa. A sensação era quente, viscosa, completamente vil. Seu corpo continuava a andar para dentro do rio, cada vez mais fundo. Até os quadris. Até a cintura. Até o esterno.

Os pensamentos de Liliana saíram do protesto irado para gritos sem fim.

Ela sentiu sua perna roçar em alguma coisa morta embaixo d’água. Um peixe flutuava perto de seu ombro. O rio estava cheio de cadáveres frescos da vida selvagem afogada pelo sangue do ritual de Razaketh. Nada vivo sobrevivia dentro do lamaçal.

O volume da voz de Jace foi diminuindo em sua mente. Ela estava longe demais, fundo demais dentro do rio.

Liliana segurou o fôlego e sentiu sua cabeça ir para baixo da superfície.

O líquido era espesso e saturado, quente no contato com sua pele.

Seu coração batia rápido, assustado.

Eu não vou sentir medo. Ele é mais fraco do que eu, e eu consigo sobreviver a isto.

Uma voz roncou suave em sua mente: "Você só vai sobreviver a isto se você matar ele."

O Homem Corvo.

Liliana gritou. Sai daqui! Agora não! Não quero uma palavra sua!

"Você será livre somente quando matar cada um dos seus demônios, Liliana. Só assim eu vou lhe deixar em paz."

Liliana não tinha tempo para pensar nessa informação;

seu fôlego estava acabando.

A urgência aumentava; ela queria respirar, mas ela sabia que só se afogaria em goles de sangue. Ao mesmo tempo, o controle do demônio sobre o seu corpo ia além de seus impulsos, até mesmo para respirar.

Quando ela tinha certeza de que perderia a consciência, seu corpo nadou até a superfície e ela tomou fôlego urgentemente.

Ela cruzara o rio, e agora se arrastava até a margem oposta. Ela olhou para cima, tentando piscar com cílios pegajosos, para a base da Necrópole logo depois do Portão para o Além. Razaketh estava parado em uma plataforma de pedra acima dela; sua cara era tão presunçosa e desagradável quanto Liliana se lembrava.

Parte dela se sentiu tola. Nenhum outro demônio conseguia obter este tipo de controle sobre seu corpo. Como ela conseguiria lutar contra alguém que pode manipulá-la como a um fantoche? Que tipo de tática ela poderia usar para lutar contra isso?

Razaketh olhou para baixo. Sua cara reptiliana era difícil de ler, mas ele parecia contente em encontrar sua devedora. Enquanto Kothophed e Griselbrand eram distantes, Razaketh era brincalhão.

"Mas que surpresa deliciosa," ronronou o demônio.

Ele fez menção para que Liliana se levantasse do lodo; sem hesitar, seu corpo se levantou por ela, ajoelhado na imundície. Seu vestido grudava no corpo e o sangue começava a ressecar e criar crostas no calor do sol.

Liliana sentia que esta posição lhe daria cãibra nos pés, mas ela não conseguia se mover ou sentar com mais conforto. Ao invés disso, ela tentou domar seu pânico, determinada a se concentrar em sua respiração que ainda estava em um ritmo incomum.

O demônio deu um passo à frente e estudou sua vassala. "A idade avançada nunca combinou com você."

Razaketh a olhava com malícia e um sorriso reptiliano. Liliana queria arrancar a expressão da cara dele.

"Fico contente que você esteja aproveitando os benefícios do nosso acordo," disse o demônio, observando o sangue no vestido de Liliana. "Peço desculpas pela bagunça que fiz, mesmo. Um caro amigo deixou uma tarefa para que eu cumprisse."

Razaketh olhou para o segundo sol. "Que sorte sua, ter chegado agora... Você vai poder ver o show todo! Eu mesmo estou empolgado. É uma surpresa para mim também, sabe?"

Liliana teria dado um pulo se pudesse; De repente, uma garoa miúda badalou no fundo de sua mente—

Liliana! Estamos vendo você. A gente tá a caminho!

Liliana nunca sentiu tanto alívio ao ouvir o Jace dentro da sua cabeça. Razaketh não pareceu notar, e por um segundo ela agradeceu por não ter o controle de sua expressão facial.

Sem saber de nada, o demônio continuou a brincar com ela. "Peço desculpas por te forçar, Liliana, mas eu adoro um cãozinho que vem quando é chamado. E você é muito boazinha, não é?"

Preguiçosamente, ele levantou e abaixou um dedo.

Liliana sentiu que sua cabeça assentiu. Seus músculos doíam com a cãibra do esforço em sua resistência física, mas sua cabeça assentiu para cima . . . e para baixo . . . Para cima . . . e para baixo.

Razaketh sorriu e abaixou a mão. "Que bom."

Ele ficou quieto e considerou por um momento. Um olhar presunçoso repuxou as escamas de sua face quando ele pensou em um próximo comando.

"Late."

"Auau," respondeu Liliana com um tom de voz capaz de congelar um sol.

Razaketh fez um barulhinho de desgosto.

"Sabe, você realmente devia ler os contratos antes de assinar. Tem todo tipo de cláusula nojenta no meio deles. Os demais autores foram tão diretos... Mas eu gosto de alguns floreios em meus negócios."

Razaketh empinou o queixo e sem aviso algum a mão direita de Liliana cerrou o punho e veio com tudo até seu próprio rosto, parando a um cabelo de distância de seu olho esquerdo. Apesar de seu rosto estar congelado na expressão de obediência, sem demonstrar emoções, por dentro Liliana se contorceu.

Satisfeito com sua demonstração, Razaketh fez com que Liliana abaixasse seu punho. Enquanto seu corpo obedecia, a mente de Liliana se concentrava nas profundezas do rio, avaliando quantas coisas mortas ainda estavam afogadas no sangue abaixo de seus pés.

Razaketh endireitou sua postura e empinou o peito. "Então, velhota, me conta por que você está aqui."

O queixo de Liliana estralou com a atividade recuperada. Ela o balançou de um lado para outro. Apesar do restante de si ainda estar fora de alcance, ao menos suas palavras eram dela.

Ela fez cada uma valer.

"Você tem mais cinco minutos de vida," disse Liliana com voz resoluta. "Você vai ver como eu vou te matar."

Razaketh gargalhou. "Cinco minutos. Que precisão!"

A expressão facial de Liliana não mudou. "Eu sou uma pessoa muito pontual."

"Duvido."

"Eu matei Kothophed e Griselbrand," respondeu Liliana com um sorriso tão imperceptível quanto um fantasma; "e foi fácil."

Razaketh zombou dela. "Eram idiotas."

Liliana sorriu. "Você não está errado."

O demônio considerou novamente.

"Eu não vou matar você... mas eu posso te mutilar," Razaketh devaneava brincando com uma faca embainhada em seu quadril. "eu posso fazer com que você mesma o faça."

Liliana empinou o queixo. "Quatro minutos."

Razaketh riu novamente.

A voz do Jace apareceu mais uma vez na mente de Liliana.

Não se mexe.

Internamente, Liliana suspirou. Isso foi uma piada?

Uma pausa. Talvez.

A atenção de Liliana voltou ao demônio parado à sua frente,

e houve um silêncio constrangedor.

"Você não tinha mais nada além de uma ameaça vazia dessas? Estou quase decepcionado." Teatral, Razaketh meneou com a cabeça.

A voz de Jace apareceu novamente na mente de Liliana, carregada de pânico. Espera, Chandra, não vai na frente

"Quatro minutos é um pouco demais, não é mesmo?" Liliana disse em voz alta, com um sorriso cheio de falsa modéstia.

O demônio contorceu a face.

Liliana deu um sorriso largo. "E se fosse . . . agora?"

Um jato de fogo engoliu o demônio, vindo de algum lugar atrás da cabeça de Razaketh.

O demônio gritou.

Inundada pelo alívio, Liliana recuperou o controle sobre seu próprio corpo. Apressada, ela ficou de pé para olhar para a fonte das chamas enquanto o sangue do rio ainda pingava de seu vestido. Chandra direcionava um funil de chamas ao corpo guinchante de Razaketh, o que fazia com que seu corpo se contorcesse com selvageria e sua cauda chicoteasse a ermo na tentativa de lutar contra as chamas.

O demônio abriu suas asas e se lançou no ar. À toda velocidade, ele se jogou na direção da Chandra e se chocou contra o lado de seu corpo, jogando a piromante contra uma parede da Necrópole com um baque contundente.

Liliana lançou sua mão na direção do rio e canalizava seus poderes quando Razaketh se virou para ela com um rosnado.

"Eu acho que não," rugiu o demônio; Liliana sentiu seu ombro se deslocar.

Com um grito imediato - metade dor, metade fúria - ela sentiu sua voz desaparecer forçadamente. Razaketh tinha a mão esticada e o cenho franzido, e havia recuperado o controle.

De repente, um chicote de areia, pedras e juncos se chocou contra o lado do demônio que se concentrava. Um elemental gigantesco, formado com as margens do rio, levantou-se. Águas mananciais que não haviam sido tocadas pelo feitiço de sangue escorriam dele.

Com a concentração de Razaketh quebrada, Liliana recuperou o controle e estremeceu.

Ela não perdeu tempo algum em recolocar seu ombro no lugar com um resmungo, e rapidamente lançou sua mão na direção do rio. Enquanto ela tecia sua mágica, energias sombrias cascateavam dela.

Surpreso e ferido, Razaketh arranhava o elemental com suas garras para livrar-se dele e retomar aos céus. Atrás dele, Nissa ajudava Chandra a se levantar, ainda de olho em seu elemental. Quando Razaketh arrancou um pedaço enorme de terra do tórax do elemental, ele lançou uma garra para recuperar o controle sobre Liliana.

O esforço só funcionou pela metade; as pernas de Liliana cederam mas seu corpo permaneceu sob seu próprio controle.

O elemental golpeava Razaketh novamente, que virou toda sua fúria para a criatura. Ele arrancava montes de lama e juncos dos lados de seu corpo. Cuspindo e rosnando, ele usou sua cauda para abrir uma fenda no tronco do elemental. Quando ele levantou o punho para dar o golpe final, chamas banharam seu corpo mais uma vez - Chandra, de pé novamente, lançava uma rajada de bolas de fogo no demônio.

Liliana sentiu que o lado direito de seu corpo esmoreceu e ela caiu de cara.

Razaketh tinha uma mão em sua direção e outra prendia o elemental de Nissa no chão.

Liliana tentava respirar com o rosto no chão, sentindo areia em seus dentes. A alguma distância, ela viu o elemental perecer. Ficou claro que Nissa teve problemas em manter o mana suficiente para que o elemental se mantivesse na luta e saiu em retirada estratégica para trás de outra parte da Necrópole. Razaketh já estava no ar e conseguia desviar das chamas da Chandra com facilidade.

Jace! Liliana gritou em sua mente.

Mas quando a palavra se formou, ela parou.

Sua respiração havia parado.

Ela tentou inspirar, mas seu diafragma estava completamente parado.

Liliana tentou novamente, mas viu que não conseguia respirar.

Razaketh pousou em frente a Liliana, mas de costas para ela, provocando Chandra.

Liliana conseguia ver a Chandra do outro lado, mirando na direção do demônio. Ela notou que Chandra não conseguiria vê-la no chão daquele ponto.

Liliana não conseguia respirar, nem se mover, e a piromante mirava no demônio que estava diretamente à sua frente.

JACE!

Desvairado e distraído, a voz de Jace reapareceu em sua mente. Gideon à sua esquerda!

Liliana se contraiu quando sentiu uma mão invisível pegar no seu ombro. Jace deve ter dado camuflagem ao Gideon para ajudá-lo a chegar onde ela estava.

Ela viu o sural de Gideon aparecer em um lampejo e marcar três linhas grossas nas costas de Razaketh. Com o demônio uivando de dor, Liliana tossiu e inalou um só fôlego profundo, desesperado e salpicado com areia. Engasgando-se, ela se apoiou nos cotovelos e recuperou o fôlego.

A voz rouca do Gideon apareceu em seu ouvido. "Resolva rápido."

"É minha intenção," Liliana crocitou.

Ela sentiu uma magia luminosa e estranha envolver a área à sua volta. Gideon estendera sua invulnerabilidade, criando uma barreira de segurança entre ela e o demônio.

Um momento depois, o ar em torno deles estava envolto em chamas.

Liliana podia ver que Gideon se agachara perto dela e entrelaçara sua magia em torno dos dois - uma redoma dourada que servia de escudo contra a conflagração.

Razaketh se desequilibrou em meio às chamas e se debatia com selvageria antes de ser derrubado por um segundo elemental. O elemental prendeu Razaketh ao chão, e o bombardeio pirômano de Chandra criava bolhas na pele do demônio que rugia.

Liliana ficou de pé. Ela andou com Gideon posicionado atrás dela, mantendo o escudo de invulnerabilidade. Liliana sentiu um terceiro acorde de magia — Jace deve tê-los deixado invisíveis aos olhos de Razaketh.

Jace, eu preciso que você interrompa o controle dele sobre mim.

A voz de Jace ressoava com frustração. O que você acha que eu estava tentando fazer nos últimos dez minutos?

Ela não tinha paciência para isso.

Esquece a invisibilidade e se concentra nisso agora que ele se distraiu!

Os olhos de Razaketh saíram de foco.

Peguei ele, vai rápido, disse Jace com esforço.

"Gideon, em frente!" declarou Liliana.

Liliana andava para dentro da parede de fogo; o sangue que pingava de seu corpo entrava em calefação ao encostar no chão. A mão de Gideon alcançou seu ombro, fortalecendo a mágica que protegia a ambos.

Atrás dessa barreira de invulnerabilidade, o calor da conflagração parecia até agradável. Confortável, talvez. Liliana apertou os olhos contra a luz e discerniu a silhueta de Razaketh à sua frente, altercando-se com o elemental gigantesco de areia e água da Nissa; sua carne chamuscada pelo fogo em seu entorno.

Liliana puxou o Véu Metálico do vestido.

Você não precisa disso, disse Jace em sua mente, ele só vai te machucar

Liliana fez uma careta por causa da interrupção de Jace.

Mas se for ver . . . ele estava certo.

Ela não precisava do Véu agora.

Deixe que o demônio testemunhe todo o terror que ela pode criar sozinha.

Liliana guardou o Véu de volta no vestido. Se a situação ficasse feia, ela poderia puxá-lo de volta em qualquer momento, mas agora ela queria testar suas próprias habilidades. O demônio moribundo à sua frente fez com que ela se sentisse especialmente generosa.

"Razaketh," chamou Liliana.

Coberto de bolhas, o demônio estava preso às margens do rio. Sua face estava queimada, enrugada, derretida em uma careta de ira.

Liliana levantou sua cabeça, encarando Razaketh com uma superioridade que ela esperava que ele conseguisse sentir.

"Veja como eu vou te matar."

Ela esticou as duas mãos e estendeu seu poder até o rio.

O rio se movia, encolhendo e fervilhando. Razaketh arregalou os olhos.

Vai, agora! gritou Jace na cabeça de Liliana. Sua voz mental enfraquecia com todo o esforço; perto dela, a imagem dele tremulou e ele saiu de seu esconderijo ilusório. Liliana levou um susto ao vê-lo - o mago mental estava mais perto do que ela pensava. Jace contorceu o rosto e Liliana sentiu sua mão estremecer; Razaketh ainda tentava recuperar o controle. Com um movimento de seu pulso, um bestiário de morte saiu do rio de sangue. Uma massa contorcida de peixes, tartarugas, cobras, hipopótamos, garças e antílopes afogados saíram do fundo do Luxa. Com bocas abertas e dentes à mostra, eles se arrastaram para fora do rio e para o corpo queimado do demônio.

Liliana movia a massa como moveria seu próprio corpo. Ela tinha controle sobre cada barbatana, garra e dente que pulou para fora do sangue espesso do rio. Ela se sentia imensa: expandida, infinita, distribuída pelas ondas de carne reanimada. Ela não sabia onde ela começava e onde as centenas de mortos terminavam. Por um momento efêmero, Liliana se lembrou como era a sensação de ter poderes quase divinos.

O demônio se debatia, tentando sair da imobilização que o elemental de Nissa ainda fazia sobre ele. Com um giro e um rugido, ele se libertou e esticou suas asas - rasgadas como telas velhas em molduras apodrecidas - e ganhou os ares novamente. Liliana lançou energia necromântica nele e ele convulsionara em queda livre. Imediatamente, o atoleiro de mortos-vivos se lançou contra o demônio; garras e dentes e chifres rasgavam sua carne.

Chandra, Nissa e Gideon se viraram para não ver o massacre, mas Jace permaneceu ao lado de Liliana transfigurado, sem conseguir virar o olhar.

Liliana sentiu um toque gentil e cauteloso em um canto de sua mente; Jace pedia licença. Liliana aceitou que eles conversassem mentalmente. Olha, Jace, pensou ela, o que eu quero fazer agora.

A alguma distância atrás dela, Liliana ouviu Jace tendo ânsias de vômito.

Ele se afastou de sua mente na hora, mas Liliana nem se importou. Ela estava ocupada.

Razaketh uivava de dor; de repente, ele foi arrastado para dentro do rio com violência. Liliana torceu seu pulso e mais duas dúzias de crocodilos reanimados rugiram e se arrastaram do rio para a margem. Com a perna presa na mandíbula de um dos monstros, Razaketh tentou se levantar e se arrastar do rio, mas era tarde demais. Liliana abandonou seu controle sobre as outras criaturas e lançou sua energia e sua mente para os corpos dos crocodilos. Dentes afiados, musculatura forte, e a fome dos mortos pela carne dos vivos.

Com sua consciência dividida entre os vinte e quatro crocodilos à sua frente, ela rangeu os dentes e atacou. Suas vinte e quatro barrigas sentiam fome, e suas vinte e quatro mandíbulas se abriram. Sem humanidade ou hesitação alguma, suas vinte e quatro versões de si ingeriram o que restava do demônio Razaketh.

Ela banqueteava e ele berrava.

Os crocodilos terminaram de arrastar as sobras do demônio até o rio de sangue, espirrando vermelho em arcos pelo ar quando suas caudas batiam violentamente na superfície da água. Eram uma multidão de empurrões que cravavam seus dentes na carne do demônio.

Liliana conseguia se sentir saciada. Suas vinte e quatro mandíbulas prenderam membros e giraram semicírculos para arrancá-los de uma só vez. Suas vinte e quatro bocas cuspiam sangue e devoravam a carne chamuscada. Não restaria nada para voltar à morte-vida. Ela gargalhou, e os crocodilos rugiram em uníssono. A Maldição de Amonkhet não chegaria nestecadáver.

Enquanto sua mente dividida comia o demônio vivo com selvageria, seus próprios dentes rangiam junto.

Ela riu; mais atrás, ela teve a impressão de ouvir o Jace vomitar.

Liliana, chega, pedia Jace. Liliana, ele morreu. Por favor, pare.

Liliana engoliu em seu próprio corpo e não sentiu gosto de nada.

Ela estava esbaforida com tanto esforço, e sorria de orelha a orelha.

Ela se sentia saciada, aliviada, e deliciosamente monstruosa. Ela não queria parar.

Lili, deu.

Liliana abaixou os braços e se retirou dos corpos dos crocodilos. Eles murcharam e um momento depois nadaram rio acima por sua própria vontade reanimada. A Maldição dos Andarilhos já entrara em efeito.

Ela conseguiu!

Exausta, Liliana riu levemente e se deixou cair de costas na areia. Nenhum vinho era tão doce quanto a independência e nenhuma vitória satisfazia tanto quanto ter controle de si. Liliana não era sentimentalista, mas deitada nas margens do rio e olhando para o azul cintilante da Hekma, ela se viu com a sensação de que tudo seria mesmo possível. Como se ela pudesse se livrar do controle dos outros e das coisas que ela desprezava. A assistência das Sentinelas tinha mesmo sido o meio para que ela alcançasse seu objetivo. Bem como ela planejara!

Uma brisa quente soprou o cabelo do seu rosto, e do canto do olho ela viu o Jace. Ele estava de pé, perto dela, olhando para ela com uma expressão impossível de ler. Liliana conseguia sentir o cheiro do vômito no chão atrás dele.

"Eu consegui, Jace."

Liliana riu de leve mais uma vez.

"Eu jantei o corpo dele."

Jace não respondia. Que coisa.

"Os outros dois demônios foram muito mais fáceis. Eles não conseguiam fazer o que ele fazia comigo. E agora só falta mais um, e daí eu vou ser minha de novo."

A exaustão já se instalara; Liliana sabia que não estava fazendo muito sentido. Com esforço, ela se sentou.

"Você vomitou?" perguntou ela, com a respiração cansada.

Jace não respondeu.

Gideon, Chandra e Nissa se aproximaram com cautela. Eles tinham assistido a vingança de Liliana a uma distância segura e agora seguiam em frente com algum dano sofrido no conflito.

"Agradeço a vocês pela ajuda," disse Liliana com o fôlego ainda anormal e um sorriso grato.

Gideon cruzou os braços. "Fizemos o que tinha que ser feito. Agora nosso foco tem que estar na chegada do Nicol Bolas."

"Sim", disse ela, rasgando uma tira do vestido para amarrar os cabelos novamente. "Só um momentinho para recuperar o fôlego."

"Não há tempo para descanso" disse a Nissa, visivelmente perturbada. "Pelo que sinto, a magia de sangue que Razaketh conjurou iniciou uma reação em cadeia de feitiços. 'As Horas' que serviam de arauto para o retorno de Nicol Bolas precisavam ser iniciadas pelo demônio."

Liliana se levantou com pernas trêmulas. Ninguém se ofereceu para ajudá-la.

"Estamos mais preparados para enfrentá-lo sem o Razaketh no caminho" disse Liliana.

"Concordo," disse Gideon, "mas nós interviemos para salvar você apesar de você ter enganado a todos nós sobre a presença do demônio."

"E deu tudo certo, não deu?" replicou Liliana.

Chandra levantou os braços para acalmar a discussão. "A gente tá sem tempo pra falar sobre o que aconteceu. A gente tem que se dividir e impedir que mais vidas acabem."

"Eu . . . concordo" disse a Nissa. Ela olhou para o Jace e se manteve em silêncio enquanto eles conversavam mentalmente entre si.

Na calmaria, Gideon assumiu o comando.

"Precisamos reunir e conservar nossas forças. Se der, vamos querer emboscar o Nicol Bolas no momento em que ele chegar. Vamos pegá-lo de surpresa ao invés do contrário." Gideon olhou para Liliana nesse momento.

Liliana revirou os olhos. Ela não sentia vergonha nenhuma da maneira que derrubara o demônio. Ainda assim, ela não podia negar que os outros a olhavam com frieza. Gideon tentava esconder o cenho franzido, mas escondia muito mal. A boca da Chandra estava comprimida em uma linha fininha e apertada. Nissa não escondia a careta. Jace parecia o mais distante de todos.

"Vamos procurar um ponto de vantagem melhor e preparar para a chegada de Nicol Bolas" disse Gideon. Eles se viraram e voltaram na direção do portão, atravessando-o de volta para Nactamon.

Jace foi o único que permaneceu, olhando para Liliana com uma expressão impenetrável.

"Não olha pra mim desse jeito", disse Liliana.

Jace nem piscava. "Eu não vou ficar sem fazer nada se você perder a cabeça desse jeito de novo."

"Foi necessário." Liliana deu de ombros.

Jace balançou a cabeça. "Foi exagero."

Liliana desdenhou e sorriu. "Eu fiz o que precisava fazer."

Ela se virou, tirando o cabelo do rosto e apertando a amarra, e seguiu na direção dos outros.

Jace ficou ali por um momento a mais. Ele olhou para as manchas de sangue nas margens do Luxa e, apesar do calor da tarde e do suor que brilhava em sua testa, ele se arrepiou.


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