A guarnição do Forte Adanto já se acostumara com ataques frequentes, tempestades violentas e todo tipo de coisas desagradáveis do mundo à sua volta, mas eles nunca imaginariam quem viria da costa aos tropeços até suas barricadas elevadas.

Guardas e sacerdotes espiavam pelas muralhas espessas e altas do Forte para ver a figura mirrada e louca abaixo deles. Era um hierofante, um homem vampírico de hábito, coberto de areia e com as bochechas afundadas pela fome. Seus olhos pareciam selvagens e sua barba estava espessa e embaraçada com a ambivalência de um louco. Ele gritou a plenos pulmões para as faces que o espiavam acima: “Conquistei as ondas e a própria morte, graças a Sant’Elenda!”

Os guardas se entreolharam, incertos. O homem lá abaixo rasgara a túnica do peito e caíra de joelhos, e seus dedos com longas unhas se cruzavam em oração. Suas preces eram altas, sem noção alguma de si. Os guardas mortais recuavam, desconfortáveis — quem quer que fosse, o Jejum de Sangue o tomou.

“Maravilhas em milagre! Artérias vazias e línguas de fora, ela nos deu a vida! Regozijai, seus tolos cálidos!”

Os guardas humanos não ousaram abrir a portinhola. Um vampiro em meio ao seu Jejum de Sangue era um perigo tremendo. Alguém que se perdeu não conseguiria discernir o sangue dos fiéis do sangue dos pecadores. Ao invés disso, um dos guardas chamou um sacerdote para ajudar-lhes.

O vampiro faminto fora do forte rezava com ainda mais fervor. “Eu abandonei o sustento para me levar mais perto da abençoada Sant’Elenda, e cá estou!”

Ele tomou um saquinho mofado amarrado em sua cintura e jogou um bolo bagunçado de metais ao chão. Os guardas conseguiram discernir que era um sextante amassado, e uma mistura de outras ferramentas de navegação arruinadas.

“EU SABIA QUE NÃO PRECISÁVAMOS DESTAS FERRAMENTAS D’ENGANAÇÃO!” Gritou o vampiro. “Minha fé n’Elenda nos trouxe até cá!”

A sacerdotisa do Forte Adanto chegou até a portinhola. Ela chamou o vampiro através da porta de madeira grossa. “Nenhuma nau esteve à vista hoje. Que embarcação lhe trouxe até cá?”

“A flutuação sacrossanta d'uma fé inviolável!” Uivou o vampiro. “A melhor nau em toda Legião do Crepúsculo! Vim pel’A Coragem de Sua Majestade!”

A sacerdotisa vampírica arregaçou suas mangas e assentiu aos guardas que abrissem o portão. Os guardas levantaram as trancas e puxaram as correntes enormes do portão, e o vampiro faminto tropeçou porta adentro.

A sacerdotisa perdeu o fôlego. “Hierofante Mavren Fein?”

“Sant’Elenda veio primeiro!” Delirava Mavren Fein. “Seu sacrifício é nossa sobrevivência e seu altruísmo é o modelo de nosso sucesso! Passei pelos ritos há duzentos anos, e sob a guia de Sant’Elenda, a Primeira, encontraremos o caminho da imortalidade sem precisarmos de sangue!”

A sacerdotisa agora ajoelhava-se a pegar os pedaços quebrados das ferramentas de navegação de Fein. Ela olhou para cima, chocada, e fitou Mavren Fein. “Seriam estas as ferramentas de navegação da tua nau?”

“Eu sabia que não precisávamos delas!” Respondeu Mavren Fein, e cuspiu.

De repente, ele ficou imóvel, farejando o ar até olhar para o alto e ver os guardas no topo das muralhas do Forte.

Os guardas se afastaram da beira, mas não foram rápidos o suficiente.

Mavren Fein sibilou e correu para a muralha com os olhos fixos nos humanos acima. Ele pôs-se a escalar o lado do Forte Adanto com suas garras, e farpas quebradas de madeira voavam para longe em sua subida feroz. Sua face era uma máscara terrível, com dentes à mostra e olhos arregalados. Ele rosnou e terminou sua subida, agarrando o guarda humano mais próximo dele com unhas afiadíssimas, como facas.

O homem gritou surpreso e Mavren Fein o mordeu enlouquecidamente por sobre a cobertura metálica entre o maxilar e a clavícula. Apesar de ninguém conseguir reagir a tempo de impedir a loucura do vampiro por sangue, o ataque foi em vão — seus dentes não perfuraram a armadura antes que os outros guardas corressem até eles e o chutassem da beira da muralha. Ele atingiu o chão com um baque surdo, e em um segundo a sacerdotisa do Forte Adanto estava em cima dele, segurando-o firme ao chão para evitar outro ataque.

“Tua fé está aparente, Mavren Fein,” disse a sacerdotisa entre dentes, com todo o esforço, “mas teu Jejum de Sangue deve acabar se quiseres ficar no Forte Adanto. Quebra teu Jejum de Sangue, Hierofante. Tua reverência é manifesta, mas tua missão requer todos teus sentidos.”

A sacerdotisa lutou com Mavren Fein para ajudá-lo a ficar de pé, e começou a encaminhá-lo às celas da prisão.

A Legião do Crepúsculo não fazia muito uso de aprisionamentos longos, mas células de prisão temporária eram necessárias para recuperar a saúde total de prisioneiros antes de suas sentenças.

Mavren Fein foi levado até o porão abaixo da igreja que fica ao centro do Forte. As paredes eram de terra forrada com madeira, iluminadas por delicadas lamparinas à óleo. A sacerdotisa abriu um portão de ferro ao final do corredor e guiou Mavren cela adentro. O choramingo de um homem passava por baixo da fresta entre as paredes.

“O Manoel matou um compatriota por uma briga durante um jogo de cartas,” disse a sacerdotisa para Mavren Fein, com um gesto para a cela ao lado. “Hoje, ao pôr-do-sol, será ele a quebrar teu jejum. Vou preparar o que for necessário para a cerimônia.”

A sacerdotisa fechou e trancou o portão, e partiu de volta para cima.

Mavren caminhava em círculos em sua cela, com o estômago roncando e dentes tremendo com empolgação.

“Conheces Sant’Elenda, criminoso?” Perguntou ele, através da parede.

Um choramingo escapou do outro lado. Mavren Fein fechou seus olhos e ergueu suas mãos.

“Sant’Elenda, a mais devota entre os devotos, a Primeira e a Fiel. Nascida imortal, a freira guerreira ordenou que seus irmãos e irmãs na fé guardassem o Sol Imortal nas montanhas de Torrezon. Escuta!”

O choramingo tornou-se um ganido.

“Pedrón, o Perverso, matou todos. Ganancioso, culpado, maldito traidor de seu povo!” Mavren cuspiu. “Mas ela? Ela sobreviveu; ela tinha quase três metros de altura! Suas madeixas eram como asas de corvo e unhas como a ponta de um raio! Ela correu para fora lutar contra Pedrón, mas o Sol Imortal fora roubado do inimigo por um monstro alado no céu!”

Os soluços na cela ao lado pararam. Aparentemente, Manoel estava a escutar.

“A fera tomou o Sol Imortal e o levou para oeste, e Sant’Elenda o seguiu! Fé convicta! Abençoada Sant’Elenda!”

" ... Como ela se tornou o primeiro vampiro?" Murmurou o Manoel da cela ao lado. Ele deu um ganido quando Mavren Fein lançou seu corpo inteiro contra a parede entre eles.

“Ela era genial! Era uma visionária! Ela recorreu a magias sombrias e tomou para si o fardo da imortalidade até que o Sol Imortal pudesse ser retomado novamente. Brilhante, maravilhosa, abençoada Sant’Elenda, a Primeira e a Fiel. Ela procurou por muitos séculos e voltou — sim, ela voltou a Torrezon e ensinou seus Ritos aos nobres para que nós pudéssemos tomar o sacrifício e ajudarmos em sua busca. Genial! Visionária! Abençoada pela própria Noite!

Mavren Fein arranhava a parede de madeira.

“Eu fui um dos primeiros. Eu assisti suas velas vindo para o oeste, e tive de esperar que meu dia chegasse para segui-la. Paciência paciência paciência. Eu sou muito bom em esperar.”

Mavren Fein ficou em silêncio. O único ruído era a respiração pesada do Manoel na cela adjacente.

O vampiro ajoelhou-se com mãos trêmulas, maníaco em seu Jejum de Sangue.

Ele enfiou seus dedos sob as tábuas da parede que o separava do humano.

E então, o Manoel gritou.

Em um só movimento, Mavren Fein puxou a parede e ela estourou pelos lados. Ele arrancava as tábuas de madeira e mergulhava por elas para alcançar sua presa.

Uma só respiração se sucedeu até que seus dentes estivessem no pescoço do criminoso, e o aroma cúprico de sangue preencheu todo o ar.

Mavren Fein consumiu despreocupado.

Alarmados pelo barulho repentino, a sacerdotisa e os guardas correram até as celas, e pararam com a imagem à frente deles. Eles assistiram a Mavren Fein se alimentar em reverência. O vampirismo era uma maldição, um fardo que alguém coloca sobre si em prol do bem maior. Esta condição vampírica era um autoflagelo triste, mas necessário. O que era deles não poderia ser devolvido sem sacrifícios como este.

Mavren Fein tomou um fôlego enorme e limpou sua boca com a manga de sua camisola. A noção de si retornara às suas faces, e seu corpo ficou imóvel.

“Sacerdote, diz-me teu nome.” Sua voz era calma e comedida. Era o completo oposto do vampiro que delirava e gritava com selvageria mais cedo.

“Márdia,” disse a Sacerdote. Ela curvou sua cabeça. “Peço desculpas que não pude realizar toda a cerimônia para quebrares teu Jejum de Sangue—”

“Está tudo muito bem, minha cara e pia Márdia,” disse Mavren Fein. Ele terminou de limpar-se e ficou de pé, com as mãos cruzadas à sua frente. “Peço perdão pela bagunça que fiz.”

“O restante de tua tripulação está morta, pois?” Perguntou Márdia. Suas mãos fizeram um movimento rápido de bênção.

Mavren suspirou e afirmou com a cabeça. "Sim. Nós naufragamos quando os instrumentos de navegação foram destruídos. Uma pena. Mas pretendo continuar nossa missão mesmo assim.”

“Com que recursos podemos lhe ajudar, Hierofante?”

Mavren Fein deu um sorriso gentil. “Uma muda de roupas. Um cajado. Não necessito de bússola.”


VONA

Vona de Iedo, Abatedora de Pecadores, Açougueira de Magan, colheu sua reputação por séculos de guerras. As Guerras Apostasinas lhe forneceram entretenimento por tanto tempo que lhe garantiram uma espada sempre ensanguentada — sempre podendo saciar sua sede. Reino após reino no continente de Torrezon se prostrou frente à Igreja Unificada à Coroa, e Vona se deleitava com cada conquista.

E agora, no convés de seu navio, ela aproximava-se com vontade do navio da Coalizão Brônzea no horizonte.

Naturalmente, o melhor dia da vida de Vona foi seu segundo nascimento, quando passou o dia ajoelhada em uma igreja trabalhando no feitiço que prenderia sua vida em serviço perpétuo da coroa e da igreja. Ela pensava com frequência sobre aquela primeira degustação do sangue de um herege e sobre os votos que ela fez enquanto ela conjurava a mágica: “Nossa sede será nossa penitência. Nosso serviço será nossa vida. Agora e para sempre, o sangue dos culpados nos trará sustento até que consigamos descobrir a imortalidade verdadeira.” Vona lembrou-se do fluxo de vida nova, a dor da fome em suas entranhas. Seus dons eram incríveis; ela conseguia caminhar sem fazer ruído algum, como uma predadora - e matar com a mesma habilidade. Ela nunca teve medo de caminhar sozinha à noite pois a alma da própria noite batia em seu coração, e corria por suas veias. Por que raios a igreja iria querer parar sua sede pelo sangue?

É claro que ela manteve esta opinião somente para si por vários séculos. Quando toda Torrezon estava finalmente sob o controle da Legião do Crepúsculo, Vona teve dificuldades na transição para uma vida pacífica. Ela havia se tornado uma nobre com suas próprias terras, mas o território era pouco fértil e rochoso, e ficou visível rápido que ela não era habilidosa para administrá-lo. Seu aborrecimento durou uma década. Um dia, em uma crise de tédio, ela decidiu quebrar a monotonia. Era um jeito rapidinho de passar o tempo, tão mundano quanto uma brincadeira de crianças. Ela perseguiu e espiou cada um dos servos de seu feudo em suas camas e em seus campos, e durante uma semana contente ela matou cada um deles como se fosse um jogo agradável. Vona regozijava-se com todo aquele esporte, e abandonou suas humildes terras.

Isso faz cinquenta anos.

Assim que a Rainha Miralda anunciara que estava a formar uma frota para viajar em busca da Sant’Elenda — A PRÓPRIA Sant’Elenda! — Vona se ofereceu como voluntária para liderar a primeira nau que saiu do porto. Ela tinha sede. Tanta sede. Não importava se sua presa era culpada ou não, ela beberia e se saciaria por todo o caminho.

Só funcionava se ela não contasse a ninguém como ela não se importava com as regras que a prendiam. O segredo mantinha a novidade.

E agora, havia um navio da Coalizão Brônzea à vista.

Vona estava na proa de sua nau, olhando para o mar com seus olhos precisos e inumanos. Agora, sua missão tinha a mesma empolgação e mantinha seu tédio longe.

O nome A Truculenta estava rabiscado em um dos lados, e sua tripulação estava distraída com a praia ali perto. Um sireno que sobrevoava o mastro já deve ter visto a nau de Vona, mas eles eram apenas uma migalha em um horizonte que escurecia rápido.

Vona sentia fome, e pela natureza de suas crenças, A Truculenta estava cheia de traidores culpados e prontos para o consumo. Abordar um navio pirata era uma ironia necessária para mantê-la saciada.

De repente, uma onda inclinou o navio para a frente com violência, e Vona se agarrou ao guarda-mancebo para recuperar o equilíbrio.

“De onde esta tempestade veio?!” Gritou ela para seu navegador.

O humano apontou com seu astrolábio para a praia. “Deve ter sido invocada! Os Arautos do Rio de Ixalan têm fama de serem elementa—”

“Não me importa que fama eles têm! Concentra-te no navio da Coalizão Brônzea — estamos quase perto o suficiente para uma abordagem!”

Vona viu seu sacerdote erguer seu cajado no ar, conjurando uma fumaça negra espessa que envolvia toda sua nau. A Truculenta estava tentadoramente próxima (e pelos céus, Vona estava faminta).

Mas o céu passou de um cinza de garoa para nuvens negras e raivosas, e o mar ergueu a nau de Vona bem alto para a crista de uma onda antes de descer novamente. A tripulação trabalhava a erguer as velas e virar a nau na direção do vento, mas as ondas incessantes ameaçavam virar a todos.

Vona viu a linha branca que fazia limite entre a praia e um afloramento de rochas. Ela arregalou os olhos e os fechou firmemente no exato momento em que sua nau foi lançada contra a lateral do leixão.

Ela caiu ao mar e rolou entre as ondas, com o corpo solto como uma boneca de pano em meio ao puxar e ao empurrar do mar. Eventualmente, ela conseguiu chegar à superfície com esforço.

Atrás dela estavam os destroços de sua nau, à sua volta estavam os corpos de seus tripulantes pontilhando o branco da areia fininha, e à sua frente estava uma muralha de selva densa e escura.

Com esforço, Vona caminhou pela água que estava na altura de sua cintura, sentindo seu pé escorregar nas rochas abaixo dela antes de recuperar o equilíbrio.

Ela caminhou até a praia e tropeçou sobre pedaços de madeira quebrada enleada com algas marinhas. Barulhos na água atrás dela indicavam que ela não era a única sobrevivente, e de fato alguns membros esfarrapados de sua tripulação estavam caminhando em sua direção enquanto recuperavam o fôlego. Eles eram importantes do mesmo modo que estranhos no mercado são importantes — estão vivos, têm seus objetivos e suas tarefas, mas sua função era periférica.

A tripulação de Vona era um meio para atingir um fim. Eles chegaram às praias de Ixalan e portanto atingiram seus objetivos. Mas o dela? Seu propósito era tocado pela divindade, e conferido a ela pela rainha em pessoa.

Uma sensação antiquíssima mexeu com seu coração. Vona de Iedo, Açougueira de Magan, agora estava mais perto da Sant’Elenda do que nunca.

Um sorriso barbárico se espalhou pelas maçãs de sua face. Enfim, cá estou.

Ela caminhou uma parte e nadou outra para sair da maré baixa. Alguns de sua tripulação pediam socorro ou batiam pateticamente nas ondas, mas Vona ignorava a todos. Ela e sua tripulação estavam a perseguir a embarcação da Coalizão Brônzea há dias. Vona instruíra seu navegador a preparar a abordagem para alimentar os vampiros e prepará-los para a expedição em terra que viria a seguir. Afinal, seu povo precisaria de todas as forças. Agora, ao observar o navio pirata encalhado ao lado do seu, ela entendeu que era uma serendipidade.

Vona estava exultante. Se os rumores estão correctos, a estrangeira que carrega a bússola é sua capitã.

A vampira parou por um segundo e ponderou suas opções. Ela poderia esperar até que a líder aparecesse ... ou ela podia emboscar a capitã dentro da mata fechada. O sorriso aberto de Vona retornou. Fazia tempo demais desde sua última caçada.

Alguns piratas rolaram pelas ondas até a areia atrás dela. Vona farejou o ar.

Um homem esfarrapado e traumatizado sentou-se na areia abraçado com um braço recém-quebrado. Suas roupas tinham os farrapos típicos da pobreza da Coalizão Brônzea, e sua face era amarrotada como linho. Ele fixou os olhos em Vona e saiu de costas na areia, se empurrando para longe com suas pernas cansadas.

“Por favor, não! Não sou criminoso!”

Vona andou a passos firmes e olhou para o pirata de cima, soberba. “Reconheces a soberania da Rainha Miralda?”

“S-sim! Reconheço!”

A vampira zombou dele. “Então deves saber o que Sua Majestade pensa de mentirosos. Considero-te culpado por enganação, e criminoso aos olhos da Igreja.”

Seu decreto foi pontuado por um turbilhão de ruído e areia, e Vona silenciou com eficiência o grito que subia da garganta do pirata.

Ela bebeu com ganância e sentiu o sangue do pecador a encher-lhe com justo propósito. Passou por sua cabeça que ela sabia a bagunça que fazia, mas não lhe importava. O mar lavaria sua sujeira.

Satisfeita, a vampira tomou um fôlego largo e pegou uma espada que a praia trouxe até o seu lado.

Vona marchou para dentro da muralha verdejante.

Ela não era um tipo paciente. Ela sabia que sua tripulação a seguiria quando pudesse.

Além disso, ela não precisava deles para a próxima tarefa. Ela era a Açougueira de Magan, e o Sol Imortal era dela por direito.


JACE

Jace se sentiu grato por ter lembrado que sabia nadar.

No caos da tempestade, ele e Vraska abandonaram o navio e pularam para o mar. Jace agarrou um pedaço de madeira que flutuava, para conservar suas energias, e começou a bater pés como propulsão para chegar até a areia. Ele suspirou aliviado quando viu Vraska subir a superfície com a boca cheia de água salgada. Ela nadou para perto com braçadas confiantes e firmes, e os dois começaram a se aproximar da praia.

“Alguém começou aquela tempestade,” notou Jace, cuspindo água salgada.

“Tinha uma elementalista na praia, sobre aquela rocha lá,” apontou Vraska. “Não consigo ver agora.”

Jace olhou para o afloramento rochoso. A nau da Legião do Crepúsculo que os perseguia estava à esquerda dele. Ela foi arremessada contra as rochas, mas uma das embarcações pequenas haviam sobrevivido. O barco flutuava em um ângulo desnivelado nas águas rasas, próximo de um delta largo.

“Tá vendo aquele bote? Podemos subir o rio para dentro do continente,” disse Vraska. “Eu vou tentar achar a tripulação. Não morre.”

Relutante, Jace assentiu com a cabeça e voltou-se para a praia. Ele acabara de sobreviver a um desastre náutico e não tinha intenção alguma de morrer agora.

A areia daqui era mais grossa do que a da Ilha Inútil. Ela estava pontilhada por rochas indóceis e depósitos de algas, e a maré baixa deixava tudo com o fedor do mar. O ar estava carregado com o peso da tempestade conjurada, e a brisa que vinha era pesada e úmida.

O efeito era desconcertante. Era hora de sair dali antes que a coisa ficasse inevitavelmente sangrenta. Ele sentiu que estava no portão de saída de uma corrida, como se alguma portinhola fosse se abrir e um coelho fosse libertado para que ele perseguisse.

Ele começou a seguir para o bote encalhado. Agora que estava fora d’água, ele pôde ver os danos enormes que a tempestade causara. A Truculenta fora esmagada contra a lateral da nau da Legião do Crepúsculo. Pedaços de um navio estavam enfiados no outro, e suas massas de madeira se confundiam uma com a outra. Jace sabia que corpos boiavam na água, mas não ousou olhar de perto para discernir quais eram seus amigos e quais eram seus inimigos.

Seu coração prendeu na garganta. Malcolm. Calçola. Gavven. Amélia. Essas eram as únicas pessoas que ele se lembrava de conhecer na vida.

Jace ouviu o som de uma frase murmurante crescendo em sua mente. O som era faminto, furioso, como o de algum tipo de animal. Ele olhou à sua direita e viu uma vampira de armadura brilhante correndo à toda velocidade na direção dele pela areia.

Um raio de pânico atravessou a mente de Jace, mas quando seus instintos o tomaram, sua percepção pareceu pausar.

A mente da vampira apareceu para ele, vidro contorcido e tufos de energia frágil. Jace estendeu sua vontade, sentindo a imensidão de seu próprio poder, e fez um esforço considerável para permitir que somente a pressão de uma ponta de alfinete alcançasse seu alvo. Ele deu a esta pequenina expressão de poder um simples comando: durma.

O tempo voltou à velocidade normal. Jace perdeu um fôlego. A vampira à sua frente cambaleou na areia e desmoronou no chão, roncando.

Jace congelou onde estava e olhou com surpresa agradável para a vampira aos seus pés.

"JACE!"

Vraska corria em sua direção.

FECHA OS OLHOS— gritou ela mentalmente, com voz alta o suficiente para que a mente dele a ouvisse.

Jace pregou os olhos e ouviu algo cair num baque surdo na areia atrás dele.

Ele olhou para trás e para baixo. Havia um vampiro petrificado a seus pés. A coisa parecia ter caído de dentro de um museu. O vampiro estava congelado em meio a sua corrida, suas roupas solidificadas em detalhes finíssimos e impossíveis de talhar, e os detalhes capturados iam até aos poros de seu rosto. Se Jace não soubesse, teria pensado que esta era uma estátua entalhada por mãos de mestre. Era quase bonita.

Vraska parou de correr na frente dele.

“Perdemos o Edgar,” disse ela firmemente, virando-se de volta para o navio. Jace a seguiu, deixando a vampira dormindo e seu tripulante de pedra para trás.

A tripulação sobrevivente d’A Truculenta estava se recuperando do naufrágio e se preparando para lutar. Vários vampiros nadavam para a praia com facilidade, apesar do peso óbvio de suas armaduras. Seus dons pareciam ser úteis para outras coisas além de se alimentar, pelo jeito.

Calçola correu pela areia com facilidade até Vraska, com sua cauda arrastando atrás dele.

“A gente luta, vocês vão!” Gritou ele. Vraska se ajoelhou para falar com ele.

“Vamos juntos como tripulação,” disse ela concisamente.

Calçola sacudiu a cabeça. “A gente luta com Crepúsculo, você encontra o Sol! Encontramos depois!”

“Como vocês vão encontrar a gente?” Perguntou Vraska.

Calçola apontou para Jace. “Seguir ilusão bonitinha!”

Vraska assentiu. “Jace vai fazer alguma ilusão alta quando conseguirmos sair do barco, rio acima. Pede pro Malcolm conferir no alto a cada hora, procurando pela gente,” disse Vraska, confirmando resoluta com Calçola.

O goblin assentiu e voltou até os sobreviventes aos tropeços em duas patas, agitando duas pequenas facas em cada uma de suas mãos, parecendo uma boneca de pano assassina.

“Calçola!” Chamou Vraska mais uma vez. O goblin se virou e o restante da tripulação atrás dele escutava sua capitã atentamente.

“Não viemos pra ficar. Deixe o povo daqui em paz,” disse a górgona, “mas matem todos os vampiros que encontrarem.”

O goblin sorriu abertamente, e a tripulação d’A Truculenta desembainhou suas armas e avançou contra os vampiros.

Jace sentiu um arrepio, apesar do calor de verão. Ainda bem que ele estava do lado dos piratas.

“Beleren! Vamos!” Chamou ela, antes de correr até o bote já na direção do rio.

Jace e Vraska correram a passos pesados pela areia molhada da praia até o pequeno barco perto do delta do rio. Eles gradualmente pisavam da areia molhada e lisa para a areia seca e granulosa que levantava para dentro de suas botas enquanto corriam. Eles passaram pelo corpo de um tripulante pirata encharcado no próprio sangue, e Vraska xingou. Pegadas ensanguentadas saíam do corpo do homem para dentro da mata fechada.

Vraska olhou para Jace, que corria logo atrás dela. “Jace, você precisa camuflar a gente.”

Ele fechou os olhos e criou um véu de invisibilidade sobre ele e Vraska. Ele escondeu seus movimentos de corrida pela praia e conjurou uma ilusão para disfarçar suas pegadas.

Vraska alcançou a água rasa do estuário e entrou no barco. Jace subiu para dentro do barco e tentou recuperar seu fôlego.

Na segurança do véu ilusório de Jace, Vraska se ocupou em içar as velas.

O barco era pequeno, provavelmente dedicado à pesca e viagens de patrulha. Suas velas negras tremularam, e de repente uma brisa terral empurrou-os rio acima para dentro da selva.

“É melhor usarmos o vento enquanto der. Vamos ter que remar um bocado depois,” lembrou Vraska.

Eles assistiram o início da batalha na areia, mas quando passaram para dentro do labirinto de árvores eles perderam A Truculenta de vista. O barulho da luta e o som das ondas foram aos poucos sendo substituídos pelo chilrear de insetos e pelos gorjeios de répteis voadores acima deles.

A selva aqui era diferente da Ilha Inútil, e Jace estava maravilhado com o tamanho das árvores. Na ilha havia restrição espacial para o crescimento delas, mas aqui as árvores eram largas e altíssimas. Ele se sentiu miúdo, uma miniatura de si mesmo jogada dentro de um jardim gigante.

Vraska se ocupava tentando ajustar suas velas para capturar a brisa que diminuía. Depois de um tempo ela desistiu e puxou os remos debaixo de seu assento. Seu cenho estava franzido, visivelmente preocupada.

“Você está preocupada com o restante da tripulação,” notou Jace quando começou a remar. Vraska assentiu.

"Sim. Mas eles sabem cuidar de si mesmos,” disse ela. “Eu sou capitã deles, não mãe. Eles vão encontrar a gente depois de eliminarem a ameaça.”

A copa das árvores começou a fechar acima deles.

Forest
Forest | Art by Min Yum

O verde e as sombras cercavam sua embarcação, e o rio começou a estreitar até virar um canal profundo. Galhos se cruzavam acima, e o sol sumira por completo. O ar era pesado, pegajoso com o cheiro almiscarado de terra úmida.

Ele olhou para o lado do barco. Um cardume brincalhão nadava logo abaixo. Ele conseguia discernir suas formas na água turva.

Jace olhou para a frente e Vraska estava olhando para ele de um jeito estranho, com uma intenção que ele não conseguia interpretar apenas julgando sua expressão facial. Ela parecia quase enjoada com toda a hesitação.

“Que foi?” Perguntou ele.

Ela respirou fundo.

“Nenhum de nós dois é daqui,” soltou ela.

Jace piscou uma vez. “Bom, óbvio. Você disse que somos de Ravnica—”

Ela retorcia o rosto, relutando para falar, mas relutando mais ainda para guardar o segredo sozinha. “Ravnica não fica neste plano de existência.”

Jace ergueu as sobrancelhas até onde elas podiam. “Neste plano de existência?”

Vraska estava visivelmente tentando descrever em palavras o que ela queria dizer. Ela guardou a bússola que Jace lhe devolvera, e falou com as mãos.

“Você me contou que o seu corpo desapareceu e reapareceu quando você chegou aqui, e apareceu um símbolo sobre a sua cabeça, certo?”

Jace assentiu.

Vraska respirou fundo e ficou bem imóvel. Uma estranha sombra escureceu o barco, e seu corpo sumiu de vista.

Jace pulou de pé tão rápido que quase caiu do barco para dentro da corrente do rio.

Ele ouviu um baque repentino e se virou — Vraska reaparecera na outra extremidade do barco — no mesmo lugar onde estaria se o barco não estivesse se movendo rio acima — e o mesmo símbolo de triângulo e círculo apareceu sobre a cabeça dela.

O queixo de Jace não tinha como cair mais.

Vraska agitou as mãos como se terminasse um espetáculo. “Eu também sou. E normalmente, quando a gente—” ela apontou para si e para ele, “—faz esse negócio—” ela gesticulou em volta dela, “—a gente viaja para outros planos de existência. Somos planinautas.”

Era informação nova demais para absorver de uma vez só. Jace começou a fazer a primeira de trinta perguntas que pularam em sua mente ao mesmo tempo.

Vraska estendeu a palma da mão para interrompê-lo. “Espera eu terminar! Agora, quando tentamos transplanar, alguma coisa nos puxa de volta, e não podemos sair. Né? Eu acho que Orazca não contém apenas o Sol Imortal. Ela também guarda o encantamento que nos mantém aqui. Fui instruída a fazer um feitiço para contatar outro plano quando encontrarmos o Sol Imortal, e depois disso acho que vamos conseguir ir embora.”

“Mas é possí—”

Um dragão me ensinou a navegar, Jace. Quem dirá o que é possível ou não?”

Jace estava incrivelmente empolgado por juntar as peças do quebra-cabeça. Ele fixou os olhos em Vraska e pensou alto, com vigor. “A gente pensava que a bússola apontava apenas pra cidade, mas ela aponta para florescências de magia poderosa.” Ele fez um gesto de cabeça na direção do bolso de Vraska. “Ao invés do norte magnético, ela aponta para o norte etérico, e também para grandes alterações de tipos parecidos de magia. É por isso que ela apontou pra mim quando você me encontrou, e é por isso que ela está provavelmente apontando pra você agora. Eu tentei te contar lá no barco, antes de naufragarmos.”

Ela puxou a bússola do bolso. Ela estava apontando para Vraska, mas aos poucos começava a voltar para outro ponto ao passo que a marca sobre sua cabeça ia desaparecendo.

Jace afirmou com a cabeça, confirmando sua teoria e mexendo em um botão no lado para que a segunda luz apontasse para o que ele agora sabia que era o norte etérico. Ele o ligou e desligou, e a ponta virada para Orazca permaneceu no lugar. “Podemos mapear com precisão uma rota, calculando o ângulo entre o norte etérico e Orazca ... ou podemos seguir a direção que aponta para grandes expressões de magia, como você vinha fazendo. Uma dessas opções é menos elegante, mas funciona.”

"Isso é ... incrível," disse Vraska, piscando enquanto olhava para a bússola taumática. Ela sorriu, e depois gargalhou. “A barreira deve depender da mesma magia que usamos pra transplanar! É por isso que a bússola aponta para lá! Você resolveu o enigma!”

Jace disfarçou seu olhar tímido, dando de ombros em um movimento bem coordenado. Vraska continuou. “Eu tinha tanta certeza que quem me mandou pra cá iria acabar comigo se eu não descobrisse para o que a bússola apontava. Mas agora temos uma chance, graças a você!”

“Nós dois temos talentos,” respondeu Jace, humilde.

Vraska abriu um sorriso largo. “E os seus são incríveis!” Ela parou por um momento. Algo no rosto de Vraska mudou. Suavizou. “Jace, desculpa que eu não te contei sobre transplanar. Eu não sabia se podia confiar em você quando te encontrei. Não vou mais esconder.” As ondas lambiam o lado do barco enquanto era a vez de ela remar. “Eu nunca tive a chance de te agradecer pelo que você disse na noite que estávamos aportados no Banco de Areia. Ninguém escutou a minha história como você. Obrigada.”

Jace sorriu. “Sua história tem que ser contada. Eu que agradeço por compartilhá-la comigo.”

O sorriso gentil que ela lhe retornava fez com que ele parasse de se mexer. Era vulnerável e honesto. Olhos fixos nos dele.

Ela tinha parado de remar.

Tudo nesta selva era colorido e supersaturado. Tudo pesava com significado. Jace tinha dúzias de perguntas, todas elas com um tom bem diferente uma da outra, uma mixórdia de perguntas mundanas e fantásticas. Ela gostava de ler? Quais eram as propriedades metafísicas do espaço entre os planos de existência? Como transplanar era diferente de conjurar uma mágica normal? Qual era sua sobremesa favorita?

Mas algo no fundo da mente de Jace chamou sua atenção.

Ele analisou as margens do rio. Ele passou vários segundos sentado em silêncio, estendendo seus poderes para ver se estavam sendo seguidos. A invisibilidade conjurada sobre eles ainda funcionava. Mais ou menos um quilômetro em torno deles estava vazio, mas havia impressões na beirada. Ele se concentrou o máximo que pôde para aumentar seu raio de percepção.

Vraska olhava atentamente para ele. “Você sentiu a presença de alguém?”

Jace assentiu. "Uma humana, uma vampira, uma tritã ... e um minotauro."

O cenho de Vraska franziu, confuso. “Um minotauro?!”


HUATLI

O manguezal fechado abriu para areia fofa, e Huatli sentiu sua montaria afundando um pouco mais com cada passo na areia da linda praia à sua frente. Ela se virou e fez um movimento breve com a mão para seu segundo capitão — foi nesta área que o tritão foi visto pela última vez.

Era aqui que ela encontraria seu guia para levá-la até a Cidade Dourada.

O ânimo de Huatli melhorava ao contemplar seu desafio.

Em resposta, seu pé-de-garra deu um gritinho de empolgação.

A ligação entre dinossauro e cavaleira era próxima. Alguns cavaleiros preferiam criar suas montarias desde que saíam dos ovos. Outros pegavam dinossauros selvagens e os marcavam magicamente. Huatli era muito prática. Suas montarias não eram seus filhos ou bichinhos. Eram ferramentas a serem tratadas com respeito, e uma extensão do seu eu-guerreiro.

O céu acima dela tinha um tom cinza raivoso, e ondas agitadas quebravam no afloramento rochoso que saía do mar. Perto das pedras, Huatli conseguia discernir dois navios quebrados e arrebentados. Um trazia as cores da Coalizão Brônzea e o outro tinha as velas negras da Legião do Crepúsculo penduradas aos farrapos em seus mastros quebrados.

Uma pessoa chamou sua atenção. Ela deve ser uma pessoa, mas era diferente de todos que Huatli já conhecera na vida.

Sua pele tinha um tom verde-esmeralda, mais reptiliana do que qualquer outra coisa, e seus olhos brilhantes e dourados estavam arregalados, procurando por sobreviventes. Um emaranhado de cipós saía de sua cabeça e lambia o ar, e ela usava a casaca e as calçolas de uma capitã.

Huatli sabia que não era prudente se aproximar dos navios. Qualquer tempestade que os tritões tenham conjurado fora suficiente para encalhar os navios, mas provavelmente não fora suficiente para eliminar a todos que estavam dentro. Apesar de seu treinamento como guerreira lhe dizia para afastar os invasores, Huatli sabia que não era prudente se distrair.

Inti se aproximou à direita de Huatli. Ele montava um presa-de-lâmina — uma montaria robusta e bem maior do que o pé-de-garra de Huatli, que era menor e mais ágil. Inti olhou para sua capitã e apontou para uma rocha protuberante próxima dos navios naufragados. Sua outra mão tocava a rede que estava amarrada ao lado de sua sela.

Huatli assentiu. Ele deve conseguir ver o Arauto do Rio que moldou aquela tempestade.

Ela virou-se para Teyeuh. “Volte para a cidade e convoque nossas forças para deter os sobreviventes.”

Teyeuh assentiu e ordenou seu chifre-rendado de volta para dentro da selva verde-escura.

Huatli e Inti seguiam paralelos à linha entre a praia e a floresta, ainda escondidos pela mata fechada. Eles passaram pelos mangues e pela água salgada até o afloramento onde Inti vira o alvo.

Na praia, atrás deles, ouviram o som do grito de um homem. Huatli não se virou para olhar a fonte — ela sabia que não podia perder o foco. Ao invés disso, ela ordenou que seu pé-de-garra saísse da selva para a luz do sol. Os gritos pararam abruptamente mais atrás, e ela viu um corpo caído na rocha mais à frente. Huatli pediu a sua montaria que se aproximasse, para ver melhor.

Lá, caída na rocha e em frente ao oceano vasto e sem fim, estava uma tritã inconsciente.

Ela parecia velha; suas barbatanas eram longas e desbotadas nas pontas, e penduricalhos de jade flutuavam em torno de sua face. Quem quer que seja, deve ter invocado a tempestade que afundou os dois navios, e se era importante como Huatli sentiu que ela era, ela saberia a localização de Orazca.

O coração de Huatli se dobrava em ansiedade. Esse plano parecia péssimo desde o começo, mas ver a tritã na frente dela fez com que parecesse impossível.

Como eu convenceria a inimiga mais antiga do Império do Sol a me ajudar?

Sua coragem encheu e ela franziu o cenho, determinada. Eu vou encontrar algum jeito!

Huatli se aproximou e desmontou. Enquanto ela caminhava na sua direção, a tritã começou a se mexer, grogue, tentando ficar de pé. A tritã mais velha estava visivelmente tentando se estabilizar quando fixou os olhos em Huatli e em Inti ao lado dela, e as barbatanas de sua face retraíram firmemente, surpresa.

“Não tenho intenção de atacar você,” disse Huatli, firme.

A tritã fechou os olhos.

Huatli se eriçou. O que ela estava fazendo?

A tritã inspirou, expirou, e então olhou nos olhos de Huatli. “Ele está seguindo para lá. Saia do meu caminho, ou eu a farei sair.”

Do que ela está falando? Huatli segurou sua lâmina firmemente. Os Arautos do Rio tinham fama de serem obtusos. Ela sabia que negociar com um deles para garantir um guia seria difícil, mas seus instintos lhe diziam que negociar com esta aqui seria como pedir a um dos xamãs do Império do Sol conselhos sobre o que comer hoje. Nenhuma resposta seria concreta.

“Meu nome é Huatli, sou a futura Poetisa Guerreira do Império do Sol. Me diga o seu nome.”

“Eu sou Tishana dos Arautos do Rio,” disse a tritã com cautela, “e Ixalan está em perigo.”

Ela jogou a mão para o alto e uma onda quebrou na rocha onde eles pisavam.

Tática de intimidação. Huatli não se assustava facilmente. Ela manteve sua posição. “Por que Ixalan está em perigo?”

As barbatanas de Tishana batiam agitadas nos lados de sua face. “Um dos Arautos do Rio traiu nossa causa e está indo para lá agora. Kumena pretende desequilibrar dependências radicais.”

A tritã lembrava Huatli o que poderia acontecer se ela fundisse um dos xamãs do Império do Sol com uma tia meio doida. Uma mística sábia e perceptiva com o vocabulário da excêntrica da cidade.

“Eu quero ir até Orazca, mas preciso de um guia.”

As barbatanas da tritã pularam. “O quê?!

“Ela a viu,” interrompeu Inti, olhando para Huatli.

As barbatanas da tritã se esticaram.

Huatli escolheu suas palavras cuidadosamente. “Eu conjurei magias estranhas, e vi uma cidade dourada.”

Tishana a olhou inexpressiva. "Você viu uma cidade dourada."

"Sim."

"Não seria a Cidade Dourada?"

Huatli franziu o cenho, envergonhada. Esta conversa parecia familiar demais. “Eu vi Orazca,” respondeu firme.

Inti interrompeu com uma voz comedida. “A Cidade Dourada precisa ser encontrada se quisermos proteger nossos povos, o nosso e o seu.” Ele fez um gesto para indicar o caos que ocorria na praia.

Tishana virou-se para Huatli e se inclinou para fazer uma pergunta. Sua face era severa e direta, com o foco de uma predadora. "E você simplesmente precisa ir até lá? E não tomar posse? Não reclamá-la para os seus, em nome do seu Império?”

A boca de Huatli formava uma linha rígida e severa. Ela se ajoelhou e fincou sua arma no chão, olhando de baixo para a tritã com puro respeito em seus olhos.

“Algo em mim fez com que eu visse a cidade. Tenho certeza que isso prova como minha missão é crucial para a sobrevivência tanto do Império do Sol quanto dos Arautos do Rio. Não somos povos inimigos.”

Imóvel, a tritã estudou a face de Huatli. Ela parecia olhar através de sua face, e Huatli se sentiu incrivelmente jovem olhando nos olhos de Tishana enquanto estava ajoelhada no chão, subordinando-se a ela.

Tishana cerrou suas pálpebras e moveu os lábios para um só lado enquanto pensava em sua resposta. Ela abaixou a mão e a colocou na frente da testa de Huatli.

Sentindo-se estranhamente quente, Huatli sentiu como se alguém tivesse acendido uma chama em seu coração.

Tishana abriu seus olhos. “Eu senti sua presença há alguns dias,” disse ela.

Huatli não conseguiu segurar um olhar de repulsa e surpresa.

A tritã se afastou, ignorando sua reação. “Eu senti um puxão enorme de energia em nosso mundo, como se um golfinho tentasse pular de um rio.”

Tishana era mais que irritante. Huatli entendia de metáforas, mas a tritã funcionava a um nível inteiramente diferente.

“Você sabe o que era?” Huatli sussurrou com urgência.

As pupilas da tritã se contraíram. “Eu apenas sei que a superfície de nosso mundo não pode ser atravessada de baixo para cima. Alguns podem cair, mas após afundarem, não conseguem pular para fora.”

Huatli não fazia ideia do que Tishana queria dizer com aquilo.

“Eu senti um puxão parecido na manhã de hoje,” disse ela, “na direção do mar. E mais uma vez, há dois meses atrás, bem além do horizonte. Mas aquela energia não pertencia a você.”

A tritã se ajoelhou e olhou nos olhos de Huatli. “Se você diz que viu uma cidade quando perscrutou as beiradas de nosso mundo, eu acredito em você.”

Inti olhou para Huatli, sorrindo orgulhoso. Huatli se sentia grata por ele estar ali lhe dando apoio.

“Mas eu quero que você me dê sua palavra, Huatli.” Tishana olhou fixamente para ela. “Nós vamos até a cidade para afastar Kumena, pois a presença dele ameaça a vocês tanto quanto ameaça a nós. Se você tentar reclamar Orazca para si, não hesitarei em matar você.”

Huatli se sentiu incerta sobre como a expedição funcionaria. Esta seria uma viagem muito interessante, mas ela não tinha outra opção.

“Obrigada, Tishana.”

Huatli subiu em sua montaria e estendeu sua mão para ajudar a tritã a montar com ela.

Tishana olhou para a mão como se ela fosse feita de insetos. “Eu viajarei sozinha,” disse ela, com o cenho franzido.

A tritã ergueu um pequeno item de jade de um saquinho e o colocou no chão.

Ela ergueu sua mão e a jade acendeu por dentro, o brilho de um vaga-lume preso dentro do verde manchado.

A rocha e os cipós que estavam no chão do afloramento rochoso onde estavam começou a vibrar, se aproximando do totem de jade como se fossem ferro perto de um ímã. A rocha e a madeira se curvaram e expandiram, coletando o totem e começando a dar forma a um elemental. Em poucos momentos, o que era uma pedra erodida pelo mar era agora um elemental feroz, tão alto quanto o pé-de-garra de Huatli.

Tishana ergueu um pé no momento em que parte da madeira viva formou um estribo. Ela subiu e se agarrou sobre sua nova montaria elemental.

“Sigam-me,” disse ela.

Huatli engoliu em seco. Essa mulher tinha um poder imenso.

Ela comandou seu próprio dinossauro e olhou para a areia abaixo deles, e viu uma cena de caos absoluto. Alguns sobreviventes nadavam dos destroços de ambos os navios, e uma grande poça de sangue manchava o branco da praia. Uma vampira corria para a mata fechada.

Huatli apontou na direção da conquistadora que fugia. “Inti, siga aquela vampira! Me encontre na floresta quando terminar de afastá-los.”

Inti arranhou a lateral das rochas com sua montaria, entrando na selva.

Huatli assobiou uma rápida melodia, na esperança de Teyeuh não ter se afastado demais. Silenciosamente, ela agradeceu a Teyeuh por se lembrar de seu treinamento; Teyeuh ouviu o comando e imediatamente virou-se para seguir o vampiro selva adentro, junto com Inti.

Correndo na direção de Orazca, sem dúvida, Huatli riu consigo mesma. Sanguessuga patética.

O início de um poema floresceu em sua mente enquanto ela trotava em seu pé-de-garra pelo outro lado do afloramento rochoso. Ela olhou na direção dos navios destruídos e devaneou sobre como seu poema começaria a contar sobre esta expedição.

Um navio tripulado por sanguessugas perseguia um navio tripulado por pulgas ...

“Pare. Olhe para o rio,” gritou Tishana com voz de comando. A tritã virou o elemental que montava e seguiu na direção do rio. Huatli a seguiu e parou ao lado de Tishana.

Tishana suspirava com a impaciência de uma professora muito ocupada. “Alguém está conjurando uma ilusão lá na água.”

Huatli olhou para onde a tritã apontava, para o ponto onde a água do oceano se misturava com o rio, e transfixou-se. O rio se movia gentil e lentamente. Nenhuma onda perturbava sua corrente, mas havia uma marola gentil cortando a água. Não havia fonte detectável, e estava claro que não havia nada que estivesse nadando logo abaixo.

"Que ... esquisito. Tem certeza que é uma ilusão?” Perguntou Huatli.

Tishana deu uma risadinha sarcástica. “Eu conjuro ilusões há mais tempo do que você respira.”

“Mas você acha que alguém da Legião do Crepúsculo fez aquilo?”

A tritã meneou a cabeça. “Estas ilusões vão além da maestria deles. Me preocupo que seja uma ameaça ainda maior.”

Sem aviso algum, a tritã virou sua elemental e seguiu selva adentro.

Huatli rosnou frustrada e pediu que sua montaria se apressasse para segui-la. Elas correram para dentro da mata fechada, mantendo a marola do rio à vista.

Folhas e cipós batiam no rosto de Huatli, e seu coração cantava esperançoso. Talvez fosse esse o seu destino, afinal. Tudo nesta situação era novo e desconfortável, e Huatli não gostava de admitir que estava ansiosa, mas as coisas pareciam estar dando certo até agora. Até onde ela sabia, nenhum Arauto do Rio tinha trabalhado com um guerreiro do Império do Sol por vontade própria.

A assistência de Tishana ainda lhe parecia extraordinariamente estranha. Huatli não conseguia não imaginar se a tritã planejava se aproveitar de sua confiança. Não ajudava nada que ela não conseguia ler Tishana.

O pé-de-garra de Huatli gorjeou empolgado. Seus pés batiam em um ritmo firme na vegetação rasteira da mata.

“O Império do Sol ouviu os sussurros?” Gritou Tishana por sobre as folhas que batiam e o ar úmido da selva que voava por elas.

“Você quer dizer sussurros de verdade, ou rumores?”

A tritã ignorou seu pedido de explicação. “Um dos nossos ouviu uma conversa no posto avançado do Banco de Areia. Depois, nós corroboramos a informação com informações de um dos seus. Há uma capitã na Coalizão Brônzea que possui uma bússola que pode localizar a Cidade Dourada,” disse Tishana. “Ela tem pele esmeraldina, e—”

“—Seus cabelos parecem cipós?” Completou Huatli.

A tritã ficou em silêncio. Apenas o bater de rocha e madeira de seu elemental no chão da floresta interrompia o silêncio.

“Eu a vi nos destroços,” disse Huatli. “Se ela possui o que você diz, com certeza aquela marola é dela.

“Ela deve ser uma ilusionista habilidosa.” Os olhos de Tishana acompanhavam a marola do rio.

Huatli apertou as rédeas de seu dinossauro. “Então, devemos ficar prontos. Quando o rio estreitar e eles não puderem prosseguir, nós atacamos.”

“Precisamos mais de sua bússola do que deles mortos,” disse Tishana.

“Eu não pretendo matá-los,” disse Huatli, ofendida e irritada.

Tishana estalou a língua, decepcionada. “As brumas essenciais da manhã,” disse ela com um movimento sábio de cabeça.

Huatli mordeu o lábio, frustrada. “Por favor, pode esclarecer o que as brumas—”

“A localização de Orazca é um segredo até para nós.”

A confiança de Huatli explodiu em uma cratera.

“Você não sabe onde ela está ... nem uma ideia?"

A tritã a olhou inexpressiva. “Nós sabemos sua localização geral.”

Huatli fechou a boca e cerrou os dentes. Ela respirou fundo e fez o que pôde para esconder a frustração que a assomava. “Mas está além do território do Império do Sol, certo?”

“Está além da serra que separa Pachatupa e Quetzatl, e além do lago depois disso.”

Huatli considerou sua topografia mental. “Ao norte ou ao sul do Vale Perdido?”

“Ao sul.”

“E é só isso que vocês sabem?”

“Sim.”

Huatli assentiu. Ela sentiu que sua missão era mais do que parecia.

Nós vamos precisar daquela bússola.


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