A Rota Vermelha
Observação: Esta é a Parte 1 de uma história a ser continuada
No profundo Desfiladeiro do Rio Umara, em Tazeem, uma dupla voava usando ganchos e cordas. Os dois, uma kor moldada pela batalha e um tritão alto e esbelto, ficavam parados apenas nos poucos momentos entre cada balanço. Nessas batidas de coração em pleno voo, parecia que o mundo se movia em torno deles, e não o contrário; em Zendikar isso era uma possibilidade.
Eles tinham viajado por quase dois dias desde seu último descanso no Caminho de Magosi, que fica a alguns dias subindo a costa do Halimar, tendo atravessado seu mar agitado desde o Portão Marinho, que era o seu lar. Eles estavam indo atrás de rumores sobre um edro caído — um artefato de eras longínquas do mundo.
Esse passeio pelos ares, saltando e balançando, desafiando as regras naturais, alimentava uma preocupação e ocultava outra: o esoterismo fica de lado quando um momento de desatenção pode jogar você na água abaixo.
O gancho principal de Akiri se prendia na ancoragem gasta, a linha ficava tesa enquanto ela balançava e caía com a confiança de alguém que sabia que nunca pousaria. No ponto mais baixo do balanço, o mundo todo era um borrão de sons e cores: o rio ruidoso abaixo dela branco e esmeraldino, as paredes do desfiladeiro em camadas carmesim e umbra em cada lado, o zunido de sua corda cortando o ar. Voar, para Akiri, era apenas questão de segurar-se.
Akiri e seu companheiro de viagem Zareth subiam o Desfiladeiro do Rio Umara, um vale longo, estável e bem texturizado por milênios pelo próprio rio. Com paredes íngremes de dezenas de metros da beira até o rio, o desfiladeiro era rico em pontos de ancoragem naturais e artificiais; os melhores deles eram pintados com cores vibrantes para fundeiros de linha afoitos atravessarem rapidamente. Um vento forte vinha das alturas do desfiladeiro, perfeito para navegação rio abaixo se alguém quisesse fazer a rota mais rápida até a Baía de Halimar. Era uma ravina própria para o voo, um dos poucos lugares estáveis em toda Zendikar. Para uma mestra como Akiri, viajar pelo desfiladeiro era tão fácil quanto caminhar.
Akiri puxou-se no balanço, utilizando seu impulso para lançar-se para cima e para a frente. Com um volteio do punho, ela estava livre, planando. Um momento de leveza entre o voo e a queda, crítico para descansar, recuperar o fôlego. Akiri fez as duas coisas, encontrou sua próxima ancoragem e jogou seu segundo gancho enquanto começava a cair.
Era uma coisa pequena. Um momento indesejável: o medo, velho amigo, sempre estava lá. Se o gancho errasse (impossível) ou se a pedra se rompesse (bastante possível, mas improvável devido à rocha que compunha o desfiladeiro) Akiri não voaria, ela cairia, e seria o seu fim. Mais uma kor engolida pelo Umara. Mais uma kor que se esqueceu do que Zendikar pensava deles agora; até mesmo quem nasceu para caminhar tropeça de tempos em tempos.
O segundo gancho de Akiri prendeu e segurou. Ela sentiu o impacto ressoando por sua corda, pelo braço, até o coração, e ela se lançou da terra sem medo. Nesse balanço, ela não falharia — ela voaria.
Gritos atrás dela lembraram Akiri que nem todos tinham uma prática tão meditativa.
Zareth, seu antigo amigo e companheiro, gritava animado toda vez que atingia o ápice, comemorava quando o gancho principal ou o segundo pegava ancoragem, e a incentivava.
“Akiri!” Zareth gritava mais atrás. “Vá pela Vermelha! A Rota Vermelha!”
A Rota Vermelha era uma rota de ganchos rápida e difícil pelo Desfiladeiro do Rio Umara. Akiri a conhecia bem — ela mesma começara a rota durante a Batalha, montando a Rota Vermelha para sua companhia de habilidosos fundeiros de linha. Na época, era para fugir de feras famintas e proles Eldrazi que perscrutavam os pontos altos do desfiladeiro; hoje em dia, fundeiros de linha corriam pela Rota Vermelha para se exibir e fazer apostas. Mudou para melhor.
Alguns balanços para ganhar impulso e ela estava pronta. No ápice do seu próximo balanço, ela segurou-se, girou no ar para olhar para Zareth com seus cabelos brancos batendo na face.
Voando atrás dela, Zareth ainda parecia o tritão larápio esguio que tentou roubar os ganchos dela há tantos anos, com apenas um pouco mais de idade em suas escamas e com seus próprios ganchos. A juventude, apesar de abandonar a muitos, nunca o deixou.
“Siga!” Gritou Akiri para seu velho amigo. Ela caiu, girando, e lançou os dois ganchos à frente dela — a Rota Vermelha tinha ancoragens nos dois lados, e ela precisaria da força dos dois braços para conseguir fazer a próxima seção. Ela confiava que Zareth faria os mesmos movimentos que ela, e até acompanharia seu ritmo.
O medo estava lá, sim, sempre. Mas a liberdade!
Os gritos contentes de Akiri e Zareth ecoaram pelo Desfiladeiro do Rio Umara. À frente, havia perigo — que era algo certo por toda Zendikar, especialmente considerando que eles tinham sido enviados pelo Portão Marinho para conferir os rumores sobre a queda de um edro — mas, por agora, isso parecia algo muito distante.
Juntos, Akiri e Zareth voaram.
Mais tarde, Akiri e Zareth acamparam à beira do desfiladeiro. O sol laranja-queimado se espalhava como uma gema de ovo pelo horizonte, e o som do Rio Umara bem abaixo era um rugido constante, mas gentil. A planície no topo do desfiladeiro se estendia pelo horizonte, cortada apenas por montanhas serrilhadas como lanças se elevando ao norte longínquo, onde se abriam em contrafortes baixos e, eventualmente, na escuridão ferida do Baluarte. As raízes de montanhas flutuavam acima do horizonte, como se alguém tivesse pegado alguns punhados de rochas e areia, atirando-os no ar, e congelado a chuva de silicato em plena queda.
Isso, pensou Akiri, provavelmente não está longe da verdade.
Akiri estava sentada contra o tronco de uma árvore baixa e torta, passando pasta-de-fundeiro nos braços cansados. Zareth estava um bocado longe, observando o pôr-do-sol. Na frente do sol poente, ele era uma silhueta escura, com uma sombra longa e bem definida.
Estar em missão com Zareth novamente mexeu com ela de maneiras que ela não esperava. Seu retorno recente para o Portão Marinho foi agradável, mas carregado com lembretes pesados. Lembretes do que foi feito não apenas a Tazeem, mas a toda Zendikar. Lembretes daqueles que cometeram o ato; pessoas que conseguiam dançar entre os mundos, pousar sua luz brilhante sobre eles por um momento, e depois partir deixando uma trilha de ruína.
O sol se pôs e o dia esfriou. Akiri lembrou-se do frio no Portão Marinho à sombra de Ulamog, frente à fera liberta de suas antigas amarras.
Akiri teve um arrepio. Quanto tempo eles ficaram presos embaixo da terra, e o que essa prisão fez com o mundo? E quem fez o mundo dela ser a prisão dos devoradores de mundos?
Uma raiva esmagadora mal contida, quase estourou: É por isso, pensou ela. O Portão Marinho, e a subida até Murasa. É por isso que você está aqui — lembre-se disso!
Toda uma vida de lembretes tão exaustivos quanto a Rota Vermelha do Umara. Akiri expirou para aliviar a tensão. É melhor respirar. Perceber que era o começo de uma noite calma, mesmo que úmida. O céu estava claro exceto por alguns cacos dos edros de Emeria, um deles baixo o suficiente para que sua cachoeira estivesse visível, como um véu de renda cintilante se derramando no ar aberto. Uma porção de vegetação crescia amontoada logo abaixo, um oásis na grama. Aves revoavam pelo seu centro, apeando com guinchos agudos quase inaudíveis contra o rugido do Rio Umara abaixo. Zendikar, a prisão; Zendikar, a ruína. Zendikar, o mundo ferido que ainda podia ser belo.
“Akiri,” chamou Zareth, “essa coisa que estamos indo atrás.”
“O edro?”
“Por que você acha que ele caiu?”
“Se eu tivesse que adivinhar” — Akiri olhou para o céu, na direção de Emeria — “ele caiu, simples assim.”
Zareth grunhiu. Ele seguiu o olhar de Akiri. “Nada ordeiro assim cairia sem motivo.”
“É verdade,” disse Akiri.
Os estudiosos do Portão Marinho estavam envoltos em sofismas pela natureza dos edros e os mecanismos pelos quais eles permaneciam suspensos no ar. Eles ficavam lá, sentados com telescópios, mapeando seus movimentos e as menores das oscilações, contratavam expedições — algumas que Akiri até liderara — seguindo cursos pelos quais se pode subir até Emeria, e brigavam sobre os nomes de camadas e marcos celestes; mas será que eles sabiam por que eles permaneciam no lugar, ou por que caíam? Não, não mais do que sabiam sobre sua função, ou quem os construíra.
Akiri não era afligida por esses temores acadêmicos. As bibliotecas e salões de estudo do Portão Marinho eram úteis para ela apenas porque forneciam comida e bebida para patrulheiros, fundeiros de linha e aventureiros da Casa Expedicionária. Ela se perguntava? Sim, claro que sim. Ela temia? Não mais do que alguém temeria a morte súbita; sim e não.
“Aquela hipótese colocaria você em companhias vanglórias, Zareth,” começou Akiri. Ela se levantou e jogou sua bolsa com pasta-de-fundeiro para Zareth. Ele a pegou no ar. “Quando você voltar ao Portão, eu posso apresentar você para alguns acadêmicos que estudam os edros,” disse Akiri. “Eles com certeza têm alguns bons livros sobre o assunto. Com bom valor de revenda.” Akiri falava com gentileza e contentamento.
Zareth gargalhou. “Ora, ora,” disse ele, “talvez.”
Akiri acreditava nele. Aquele Zareth fugiu há anos; aquele que voltou ao Portão Marinho e sua Casa Expedicionária agora era outra pessoa, em outros tempos.
Bem, assim esperava ela.
Com uma ceia de viajante — um guisado espesso com cebolas selvagens, tubérculos picados, carne defumada e raminhos de ervas encontradas ali perto — Akiri e Zareth se recuperaram dos esforços do dia.
“Você foi bem na Rota Vermelha,” disse Akiri para Zareth enquanto ele mexia o guisado fervilhante, “mas você precisa melhorar o desprendimento do seu segundo gancho — amanhã pegamos a Rota Verde para você praticar.”
Zareth assentiu com a cabeça. Ele provou o guisado e salpicou mais um pouco de sal no caldo. “É o meu ombro. Ele quebrou quando caí, enquanto aprendia a fundear.” Ele girou o ombro, movimento tal que Akiri percebia estar genuinamente limitado, mesmo que seja exagerado para provar seu argumento. “Se não, eu ganharia o título de mais rápido na Rota Vermelha,” disse Zareth, com um sorriso.
Akiri achava que não, mas não disse nada. Ao invés disso, ela apontou para os ganchos presos na cadeirinha dele. “Esses ganchos não parecem normais. Onde você os conseguiu?”
“São de um Enclave Celeste. Dos kor que viajam pelas Fossas de Ondu,” disse Zareth. Ele desprendeu um gancho de sua corda. “Corajosos fundeiros de linha os encontram nas ruínas,” disse ele, jogando o gancho para Akiri. “É o único lugar onde se pode encontrá-los. Tem que ter coragem, ou ser importante para alguém que tenha.”
Akiri examinou o gancho, revirando-o. Estava coberto com um entalhe fino e regular, um padrão geométrico que para Akiri parecia um labirinto em espirais. Ângulos e cantos, losangos e quadrados perfeitos. Não era natural, mas nada que ela reconhecesse — a não ser pelo que não poderia ser.
“Você encontrou esse aqui?” Perguntou Akiri.
“Não,” disse Zareth, “eu fui importante para alguém com coragem.” Um sorriso triste passou pelo rosto dele. “Enfim. Eles nunca vão deixar você na mão,” disse Zareth.
“Ainda assim,” disse Akiri, erguendo uma sobrancelha.
“Eu sei, o meu ombro. Não acredite em tudo o que dizem, tá?”
Aquele sorriso inteligente de Zareth. Akiri o conhecia bem; contentamento por cada canto. Provavelmente foi como ele caiu.
“É bonito,” disse ela, passando o gancho de volta a Zareth. “O padrão entalhado nele?”
“Iguais aos padrões na face de um edro.” Zareth assentiu com a cabeça. “Eu vi muitos deles em Ondu — pousei em um deles, até.” Ele virou o gancho em sua mão, e um sorriso miúdo passou pelo seu rosto. “Pegue,” disse ele, oferecendo o gancho a Akiri, “fique com ele, eu tenho mais.”
“Obrigada, Zareth,” disse Akiri, pegando o gancho para si. Ela pegou sua mochila, puxou sua linha principal, e prendeu o gancho do Enclave Celeste nela. Ela não precisava perguntar a Zareth quem o fornecera a ele — na verdade, pensou ela, talvez seja melhor que ela nem saiba. Ela guardou o gancho na mochila e voltou ao seu lugar com uma bolsa de estopa encerada, de onde ela puxou um mapa. Akiri desenrolou o mapa no chão seco e prendeu seus cantos com algumas pedras dali.
Zareth pegou conchas do jantar deles e sentou-se à frente dela. “Amanhã ou depois?” Indagou ele.
“Amanhã,” respondeu Akiri. “São quase dez quilômetros até essa cachoeira,” disse ela, apontando para uma queda d’água marcada no mapa, sem nome. “O edro deve estar na nascente.”
“Precisamos nos preocupar com eles?” Perguntou Zareth.
Por um momento Akiri ficou confusa, mas então—
O titã sem pele, eclipsando o sol. Cachoeiras da água do oceano derramando-se daquela forma que se assomava. Ele estende os braços do tamanho do horizonte, e o Portão Marinho treme e cintila com o calor.
—ela sabia.
“Não,” disse Akiri, “eles sumiram deste mundo. Nós vencemos.” Sua garganta estava seca como poeira, até mesmo agora, ao pensar neles.
Zareth comeu, observando o mapa — mas não estava realmente olhando para ele, notou Akiri. Olhando além dele. Ela conhecia aquele olhar, o olhar longínquo que tomava quem tinha visto coisas que ninguém deveria—
A noite tingida de laranja com fogo, o fedor dos mortos em rápida putrefação e os gritos dos vivos. Sua espada, pesada e pegajosa com um sangue que evaporava. Os Eldrazi matavam com um toque — alguns com sua mera presença. Aliados caíam desmoronados em cinza branca, sufocando o ar que ela respirava com dificuldade. A primeira onda das proles quase os sobrepujou, mas de alguma maneira eles conseguiram segurá-la; o ar fervilhava com energia e a próxima onda se chocou contra eles.
Ela se lembrou de como Zareth tinha pouca experiência durante a Batalha. Ele fora pressionado para a libertação do Portão Marinho porque conseguia segurar uma lança, e fora colocado na unidade dela porque tantos já tinham sido mortos. Ele era alto para sua idade na época, e os outros alistados achavam que ele era mais velho, mais experiente.
Ela tivera apenas um punhado de anos a mais de experiência do que Zareth quando os Eldrazi irromperam sobre o mundo, uma kor que se achava invencível porque aprendeu a voar como seus ancestrais, com corda e gancho, com a própria Zendikar como parque aberto. Ela era rápida com a espada, guerreira adepta entre um bando de campeões. Mesmo então, sua habilidade e graça foram aclamadas por toda Zendikar e tinham dado a ela um senso de estar além de si. Com seus parentes e amores ao seu lado, ela não temia a nada quando começou a ouvir notícias dos titãs irrompendo da terra. E se eles fossem apenas outra chance de cobri-la de glórias? Ela e seu bando se uniriam às forças dos Vivos, voariam triunfantes na face destas coisas que outros chamavam de “deuses,” e salvariam o mundo.
Ela pensara isso.
“Akiri,” começou Zareth, rompendo seu devaneio, “me desculpe por ter partido como eu parti.” Ele falava baixo, um sussurro que Akiri não sabia que ele podia fazer. “Eu não aguentava o silêncio. Eu achei que poderia ficar livre de tudo se eu fosse para longe. Longe do Portão Marinho, de Kaza e de Orah. Longe de tudo” — os pequeninos músculos de sua mandíbula pulsavam enquanto falava de uma dor antiga — “longe de você.”
O som do oceano nunca cessava. As lutas brutas em valas de humanos, kor e tritões contra zangões Eldrazi que formavam poeira e proles menores. Acima, os clarões e estalidos da magia dos caminhantes explodindo feras mais aterrorizantes.
Ela podia ter raiva dele. Akiri poderia ter ficado furiosa com ele, por como ele fugiu e pelas coisas que ele roubou. Por quanto Kaza chorara por ele. Orah certamente amaldiçoou Zareth por sua fuga e ameaçou matar o menino se ele voltasse, mas Orah estava sendo apenas Orah e Akiri sabia que ele só era dramático com sua raiva — escondendo seu amor e seus medos. Ela podia ficar com raiva dele; em sua própria juventude, Akiri aprendeu com dureza o custo de partir sem dizer adeus, mas ela também passou a perceber como era uma dádiva poder perdoar. Em Zendikar, seu pequenino mundo ferido, a cura não era algo passivo: era uma prática. Fosse refazer o mundo ou remendar a si, a cura dava trabalho. O perdão também.
“Zareth,” disse ela, “fico contente que você voltou.”
Zareth olhou para cima. Pela primeira vez desde que ele voltou pavoneando para o Portão Marinho dias atrás, ela viu o Zareth que conhecia.
“Eu nunca tive um lugar para onde voltar,” disse Zareth. “É bom. Parece que as coisas estão melhorando. Estar de volta no Portão Marinho me mostrou que fizemos algo mais do que sobreviver.”
“Nós fizemos mais do que sobreviver,” reforçou Akiri. “Nós salvamos o mundo. Agora, daremos poder ao seu povo, e em assim viveremos.”
Zareth sorriu miúdo. Algum tempo foi passado em silêncio antes dos dois voltarem à sua refeição. Eles ficaram sentados juntos debaixo da árvore acima do Desfiladeiro do Rio Umara, e a luz do sol se esgueirou para baixo do horizonte, e eles falaram sobre coisas nem um pouco importantes.
No dia seguinte eles chegaram no local do edro caído. A cachoeira — que relataram ter secado — corria com um fluxo estável.
“Bem,” disse Zareth entre fôlegos, se apoiando nos joelhos, “não tem nada aqui.” Ele ficou de pé e olhou em volta, ali do pequeno pico que eles tinham subido. O pico tinha a forma de uma bacia, aninhando um lago que nascia sem fonte visível, alimentando um riacho raso que se derramava pelo desfiladeiro abaixo. O pico estava oculto pela bruma, e a luz do dia estava fortíssima ali no alto. Pouca vegetação crescia a não ser por pedaços de grama retorcida. Era menos oásis e mais um excerto, uma faixa de terreno que parecia completamente fora de lugar onde estava.
“Ei, Akiri!” Gritou ele. “Cadê a pedrona?”
Akiri estava um pouco longe, perto da beirada do lago que alimentava a cachoeira que eles tinham passado boa parte do dia subindo. Exceto pelo calcário branco em suas mãos e antebraços, não se podia dizer que ela tinha acabado de liderar a escalada do dia. O cenho dela estava franzido. Com as mãos nos quadris, ela olhou em volta para conferir. Talvez alguma mágica? Ou algum efeito perene do Turbilhão que ocultou o edro da vista deles?
O lago que alimentava a cachoeira tinha uma beleza cromática e era a única coisa notável nesse pico infértil. A água cristalina com minerais vibrantes em vermelhos, azuis, verdes e amarelos ao fundo estava tão imóvel quanto um fôlego preso. Não precisou de mais nenhuma investigação para ver que Zareth tinha razão.
“Não é uma pedra, é um artefato,” clamou Akiri, de longe. Três dias de viagem difícil, fundeando linha com mais essa subida final para não encontrar nada. Nem uma pedrona.
“Pelo menos o lago é bonito,” disse Zareth.
Akiri grunhiu. Era um lago bonito mesmo. “Não beba dele,” disse ela.
“Envenenado?”
“Possivelmente.” Akiri arrastou uma pequena pedra da beirada para dentro do lago. Ela pulou para dentro d’água e depois sumiu. “Mas é provavelmente magia,” disse ela.
“Talvez tenha sido isso o que aconteceu com o edro?”
“É certamente possível.”
Eles ficaram de pé e deixaram que o vento preenchesse o silêncio. Ele assobiava, solitário.
“E agora?” Perguntou Zareth.
Akiri olhou de volta para Zareth e depois além dele. A inteireza de Tazeem se espalhava brumosa e dourada além da cachoeira bagunçada pelo vento. Sua resposta estava oculta, além do seu campo de visão.
“Voltamos para o Portão Marinho,” respondeu Akiri.
Nenhum farol conseguiria ser visto dessa distância, mas se poderia imaginá-lo com a cidade logo abaixo. Distante, brilhante, mas cheio de promessa. Uma cidade cintilante na boca da Baía de Halimar.
“Ainda temos trabalho a fazer,” disse Akiri. “Lá atrás. Ali em cima.”
Zareth espiava com ela, procurando pelo horizonte leste. “Nesse meio tempo, é uma bela vista,” comentou ele. “Não está de todo ruim, mesmo que todo o trabalho não esteja feito.”
Akiri deu-lhe um sorriso leve. “Vamos lá, então, Zareth,” disse ela. “Vamos para casa.”
Apesar de longe do Portão Marinho e não muito maior do que um grande salão e alguns edifícios, o Caminho de Magosi era um farol da civilização no interior. Acima da poderosa cachoeira de Magosi, o Caminho era o maior posto de parada para viajantes e mercadores que utilizavam a rota segura Umara acima ou abaixo, e uma base comum de acampamento e estação de pouso para exploradores.
Uma constante sobre o Caminho era o ronco grave do próprio Magosi. Sendo a cachoeira mais alta ao longo do desfiladeiro, as Quedas de Magosi se formavam onde o Rio Umara dava uma única descida íngreme de cem metros. Algum antigo acidente geológico rasgara o mundo aqui, erguendo uma seção dele e partindo a outra. Impassível por séculos, peritos do Portão Marinho entalharam uma série de lances de escada na parede, após a liberação da cidade; vertiginosa, ela ainda assim permitia que viajantes tivessem uma subida relativamente segura do desfiladeiro inferior até o superior. O Véu D’Água de Magosi ecoava a história de Zendikar: algo antigo fizera algo terrível com o mundo, alguns morreram, outros sobreviveram, nada mudou e Zendikar continuou a tremer e se sacudir, tomada por uma febre planar. E então, o mundo e seus povos se adaptaram.
Akiri e Zareth, pela primeira vez em dias, passaram uma noite sentados em volta de uma mesa, em cadeiras robustas, comendo algo que lhes fora servido, que pagaram com moedas e crédito de mercadorias que trouxeram consigo de sua expedição. Eles até tinham bebidas geladas e ouviam música tocada por um grupo valente de tritões que tentava superar o som grave e constante da cachoeira de Magosi. Dúzias de kor, tritões e humanos se amontoavam no salão principal do Caminho, comendo e conversando, barganhando por pequenos itens e trocando notícias e rumores que acumularam em suas viagens. Do lado de fora havia os ruídos de bestas de carga dóceis — contratáveis para a viagem pela próxima subida do Caminho, por quilômetros — carregando o vento com seu aroma inebriante.
“Ah, a civilização,” suspirou Zareth, terminando seu copo. Ele mastigou um pouco de gelo e massageou a nuca com suas mãos. “Acho que vou pegar mais um desses,” disse ele, chacoalhando seu caneco, “e tomar outro banho — tinha esquecido como a água quente faz bem para as escamas.” Zareth pegou o bolsão compartilhado deles e puxou a corda para abri-lo.
Akiri, terminando de comer, apontou para o bolsão com o queixo. “Vai ter que usar suas habilidades pra encontrar algo aí dentro,” disse ela. “Nós gastamos o que tinha nessa refeição e nos suprimentos que precisamos pra voltar.” Akiri ergueu uma sobrancelha e olhou para a mochila de Zareth, repousada sobre a grande mesa, ao lado do equipamento dela. “O que tinha, do que eu soubesse, de qualquer modo.”
“Ora, você não me deixa aliviar o peso de nenhum bolso daqui,” reclamou Zareth.
“Somos representantes do Portão Marinho, Zareth. Não somos mais recrutas esfomeados.”
“Certo. Somos membros sedentos do Portão Marinho, Akiri,” replicou Zareth. “Os acadêmicos recebem suas taxas de manutenção; eu não vejo diferença em pegar a nossa parcela.”
“Os acadêmicos ganham suas taxas com trabalho,” disse Akiri, ocupando-se em tirar suas coisas da mesa. “Assim como ganhamos com o nosso. Agora, sobre isso...” Akiri enfiou a mão no bolso principal da mochila e pescou uma pequena bolsa, jogando-a na mesa à frente de Zareth. Ela caiu com um baque pesado, e o som de ouro.
“É sério?” Gargalhou Zareth. Ele agarrou a bolsa, a abriu, tateou e puxou uma moeda.
“Encontrei trabalho. Paga metade agora e metade no final,” disse Akiri. “Uma caravana indo para o Elmo de Coral, partindo amanhã.”
“Pelo menos é no caminho,” disse Zareth. Ele puxou mais algumas moedas da bolsa, a amarrou e ficou de pé. “Saímos amanhã cedo?”
“E lá tem outro jeito?”
Zareth gargalhou. “Certo, então vou lá pegar outra bebida.” Ele ficou de pé.
“Zareth,” chamou Akiri, fazendo-o parar. Ela virou a bolsa de moedas e pedras roladas caíram de dentro. Zareth riu e ergueu as mãos.
“Pego no flagra,” disse ele. “Pago essa rodada, então?”
“Pega alguns daqueles bolinhos,” pediu Akiri. “Aqueles com molho dentro.”
Zareth saiu e voltou com comes e bebes. Ele sentou-se, passando a parte dela pela mesa, e os dois começaram a comer.
Mais tarde, com a noite e o aumento da multidão, Akiri e Zareth sentaram-se no deque do Caminho, na lateral do penhasco, terminando mais uma rodada de salgados fritos e bebidas geladas. Eles tinham passado um bom tempo se atualizando nas novidades — de verdade — e talvez fossem as bebidas geladas ou a atmosfera casual depois de tanto tempo na estrada, mas em meio à conversa leve, Zareth fez uma pergunta a Akiri que marcaria o momento como o fim da noite.
“Quando voltarmos ao Portão Marinho,” disse Zareth, “você está planejando nos colocar como voluntários para alguma missão secreta. Uma expedição para dentro de um dos Enclaves Celestes.” Zareth se reclinou na cadeira. “É por isso que estávamos lá atrás daquele edro, não é?”
Akiri não negou. “Murasa,” disse ela. “O Portão Marinho acha que poderíamos encontrar algo útil de um edro recém-caído, mas isso precisava de um edro que fosse encontrado.”
“O que tem em Murasa?” Indagou Zareth. “Esses Enclaves Celestes estão todos mortos e velhos.”
“Eu não sei,” disse Akiri. “Nossa patrocinadora está disposta a gastar bastante moeda, apostando que tem alguma coisa esperando por lá. Algo poderoso.”
“Que Akiri é essa?” Indagou Zareth. “Disposta a apostar seu sonho em um mundo melhor, em um palpite.”
Akiri assentiu com a cabeça. “O dinheiro é bastante,” disse ela. “Ninguém gasta tanto dinheiro em um palpite. É uma aposta — de que a coisa que encontrarmos em Murasa poderia ajudar a consertar o nosso mundo.”
“Eu sei que é um padrão comigo, mas...” Zareth se inclinou para a frente, abaixando a voz, “nós poderíamos fugir no meio da noite e seguir para alguma outra terra. Eu e você juntos, sua habilidade e o meu charme? Não nos faltaria nada."
Akiri meneou a cabeça. “Este é o nosso mundo, com todas suas agonias e doenças. Consertar o que foi feito a ele é a nossa luta, nosso fardo, nosso lugar,” disse Akiri. “Nós não podemos fugir.”
“Pode ser que a gente não volte,” contra-argumentou Zareth.
“Sim,” disse Akiri. “Temos a mesma luta que qualquer
“E se não encontrarmos nada?”
Akiri bebeu um gole.
“Esperança, pelo menos, suponho que dê pra levar,” sugeriu Zareth. “Dar às pessoas algo para sonhar.”
“Esperança? Não,” disse Akiri, firme, mas não sem bondade. “As pessoas não podem fazer uma espada fervente com esperança, ou afiar o sentimento para fazer uma adaga delicada.” Akiri balançou a cabeça. “Eu não quero dar esperança, eu quero criar poder para o nosso povo. Encontrar uma maneira de dar ao nosso povo — todo o povo de Zendikar — os meios de dar forma a alguma arma para a sua dor e utilizá-la para curar este mundo para sempre,” disse ela.
Zareth se afastou, menos conspiratório. Akiri estava séria, rígida.
“Olha, acho que foi o suficiente,” disse Akiri, rompendo a rigidez que a tomara. Ela indicou os canecos e pratos vazios. “Eu vou dormir. Vejo você amanhã?”
“Estarei lá, Akiri,” disse Zareth, em voz baixa.
“Vai mesmo?”
“Você me pediu para estar lá,” disse Zareth, “então estarei lá.”
Akiri observou Zareth por um longo momento. Zareth não via Akiri a Viajante Destemida, veterana condecorada e lendária fundeira de linha, mas sim a Akiri sem títulos, a jovem oficial kor que o puxou da escuridão no Portão Marinho. Sua pele clara coberta das cinzas de seus amigos mortos e a paisagem em decaimento. Os olhos dela, iluminados pela luz da fogueira, vazios com terror — mas ainda o levando à frente. A Akiri que pousou a lança de um homem morto nas mãos dele e disse que ele precisava lutar contra as coisas que matavam o mundo com um toque, ou ninguém ficaria vivo quando a Batalha acabasse.
“Estarei lá, Aki,” disse Zareth, mais uma vez.
“Ótimo,” disse Akiri. “Ótimo,” repetiu ela, em voz baixa, enquanto partia.
A noite se arrastou bastante e Zareth não passou nenhuma parte dela dormindo.