História anterior: Impacto

Cinco Planeswalkers chegam a Amonkhet para caçar um dragão. Como Sentinelas, eles juraram proteger o Multiverso contra as ameaças que se espalhavam pelas Eternidades Cegas, e o dragão Planeswalker Nicol Bolas era talvez a maior dessas ameaças. Então eles partiram para Amonkhet, um mundo de tempestades de areia e monstros terríveis. Um cenário infernal que eles já esperavam. Até que um deus apareceu, os salvou dos vormes de areia e os guiou em direção a uma cidade. Que tipo de cidade seria capaz de prosperar sendo reinada por Nicol Bolas? E que tipo de deus poderia viver sob as garras opressoras dele?


Deuses? Aqui?

Gideon havia se preparado para muitas possibilidades no mundo planar de Nicol Bolas. Mas ele não esperava ver deuses caminhando por entre os horrores do deserto. Seriam eles peões de Nicol Bolas? Será que o dragão era tão poderoso que podia manipular forças divinas em seu favor? Ou seriam eles uma força imortal que se opunha a Nicol Bolas e ao poder dele nesse mundo, assolado pelos agentes monstruosos do dragão? Qualquer uma dessas hipóteses daria credibilidade à advertência de Ajani sobre o poder absoluto do dragão Planeswalker.

Ele parou em meio à areia que dançava com o vento do deserto e passou os dedos pela têmpora. Jace e Chandra caçoavam um do outro de forma bem-humorada, incitados por ocasionais comentários sarcásticos de Liliana, e o ruído começava a pressionar a parte de trás dos olhos dele, chegando até o cérebro. Ou talvez fosse o calor seco e a ação inclemente da luz solar.

Ele fez uma careta enquanto Liliana passava por ele, condenando-a por ter conseguido agitar Chandra e irritar Jace. Sim, ela os tinha salvado do fogo em Innistrad, sem dúvida. Mas desde então ela não fazia mais nada além de contrariá-los e caçoar de todos. Ela não tinha noção do que significava ser parte de um grupo. Liliana apenas os acompanhava.

E por que não?, ele pensou. Todos temos nossos próprios motivos para estarmos aqui. É tão complicado ter tudo isso misturado; nossas emoções, impulsos e objetivos.

Ele sentiu uma mão fria tocando seu braço e respirou fundo antes de se virar e sorrir para Nissa. A pressão no cérebro dele havia aliviado um pouco e, sem uma palavra, ele e a elfa continuaram a caminhada pela areia.

Art by Volkan Baga
Arte de Volkan Baga

Eles já estavam perto da redoma reluzente que haviam visto de longe. A areia soprada pelas tempestades se acumulava ao redor da barreira mágica. E, pior ainda, a barreira estava cercada de . . .

"Zumbis!" Liliana exclamou. Ela pareceu animada demais com isso, na opinião de Gideon. As criaturas dessecadas estavam em pé na areia, imóveis, espreitando a cidade protegida pela redoma.

Ele apressou os passos para alcançar os outros. "Liliana, tire os zumbis do caminho, e eu vou tentar atravessar a redoma."

Jace ergueu uma sobrancelha para ele.

"Ahn, bem, essa é minha sugestão. Alguma outra ideia?" Gideon se lembrou que não era o general daquela pequena tropa de Planeswalkers. Jace, pelo menos, esperava ter alguma voz nas decisões de liderança.

E Liliana faria o que lhe desse na telha, de qualquer forma.

"Talvez seja possível simplesmente atravessar", disse Jace. "Mas, considerando o que vimos nesse deserto, suspeito que essa barreira seja muito forte. Supondo que ela sirva para manter vormes de areia do lado de fora e não para manter pessoas do lado de dentro."

"Você acha que conseguiria contornar a magia dela?" Gideon perguntou.

"Claro que sim. Mas só vou poder saber mais quando tiver uma chance de examiná-la." Jace olhou para Nissa, atrás dele, e os olhos do mago brilharam com uma luz azul, sugerindo que ele havia começado uma conversa telepática em particular com ela.

Complicado, Gideon pensou novamente.

Por outro lado, o trabalho deles em equipe não seria complicado quando chegassem à barreira mágica brilhante. Liliana e Chandra abriram caminho por entre os zumbis, e Jace e Nissa se uniram e lançaram um feitiço, que abriu um buraco um pouco maior que os braços abertos de Jace, permitindo a entrada deles. Gideon foi o primeiro a passar pelo buraco e entrar na cidade, que mais uma vez ultrapassou todas as expectativas dele sobre como seria o mundo de Nicol Bolas.

Ele estava nos arredores da cidade, onde campos viçosos à esquerda faziam fronteira com majestosos edifícios de pedra, ruas amplas e esguios obeliscos. Não havia sinal do deus que havia guiado o grupo até ali, mas a chegada das Sentinelas chamou alguma atenção: cerca de uma dúzia de pessoas estavam reunidos a uma distância segura ou respeitosa, observando-os cuidadosamente.

"Olá!" Gideon disse, erguendo uma mão e caminhando adiante com um sorriso aberto, ainda que sua mente estivesse acelerada, tentando pensar no que dizer a essa gente sobre ele e os amigos.

E sobre Liliana, ele pensou. Como explicar que ela comanda os zumbis com um simples gesto?

A saudação dele foi respondida, não pelas pessoas que estavam ali, mas por um bater de asas no ar acima deles. Ao olhar para cima, ele viu um homem alado, com cabeça de pássaro e corpo de humano. Um aviano, ele supôs, mas sem os traços de falcão ou coruja daqueles que ele havia conhecido em Bant há muitos anos. Mas em vez de pousar e falar com Gideon, o aviano passou por ele voando em direção à barreira iridescente que eles haviam atravessado.

Jace ainda mantinha a passagem aberta para Nissa, e Liliana estava concentrada em impedir que os zumbis do deserto os seguissem cidade adentro. Os três foram surpreendidos quando o aviano grasnou para eles: "O que estão fazendo?" Ele pousou bem ao lado de Jace e o cutucou com a ponta do cajado, que tinha um par de chifres muito parecidos com os que ainda podiam ser vistos no horizonte, ao lado do segundo sol. "Saiam da frente para que eu possa consertar—"

Antes que ele pudesse terminar a frase, Jace abaixou os braços, e o buraco que ele havia aberto na barreira mágica voltou a se fechar.

"—o Hekma", completou o aviano. Ele olhou para Jace, piscou lentamente, e levantou e abaixou o longo bico enquanto analisava o forasteiro de cima a baixo, desde sua cor pálida e as estranhas tatuagens azuis, até as botas azuis e igualmente estranhas. O aviano deu um passo para trás e examinou os demais da mesma forma, parecendo particularmente interessado no cabelo vermelho de Chandra e nos olhos verdes e brilhantes de Nissa.

"Olá", repetiu Gideon. Dessa vez ele teve que se esforçar mais para sorrir, diante do cajado com chifres do aviano.

"Que roupas são estas?", perguntou o aviano.

Art by Jakub Kasper
Arte de Jakub Kasper

Liliana soltou uma gargalhada, e Gideon lançou um olhar sério para ela.

"Deixe comigo", Jace murmurou na mente dele, enquanto se aproximava para falar com o aviano. "Confie em mim", ele disse, "estas roupas são a última moda em . . . " Ele franziu as sobrancelhas. ". . . No distrito de Sef?"

Normalmente, Gideon preferia que Jace não bisbilhotasse a mente dos outros. Mas nesse caso foi uma dádiva, permitindo que ele respondesse exatamente o que o aviano esperava.

"O que vocês estão fazendo no deserto?", perguntou o aviano. "E o que fizeram com o Hekma?"

Jace se virou e olhou para a barreira iridescente. "Sério? Você não aprendeu esta técnica ainda, sendo . . . um vizir da . . . Guarda do Hekma? Ora, mas é claro, é por isso que vim aqui ao . . . distrito de Nitin, para ensinar a você. Com Kefnet. É claro."

"T—talvez eu—", gaguejou o aviano.

"Talvez você deva convocar Temmet", disse Jace. "Ele saberá o que fazer."

O aviano fez que sim com a cabeça rapidamente, abriu as asas e voou em direção ao coração da cidade.

"Quem é Temmet?" perguntou Chandra.

"Algum tipo de autoridade", disse Jace. "Você vai adorá-lo."

Chandra bufou.

"Escutem", continuou Jace. "A questão é delicada. O vizir Eknet não faz a menor ideia da existência de outros lugares além desta cidade. Por isso eu disse a ele que somos de outro distrito. Nós não cruzamos o deserto vindo de outro lugar. Na cabeça dessas pessoas, não existem outros lugares. Ainda mais uma extensão infinita de outros lugares."

"Bem, talvez seja a hora de abrirem os olhos", disse Chandra.

Gideon balançou a cabeça. "Não. Não devemos atrair a atenção além do necessário, pelo menos até sabermos com o que estamos lidando. Chegar aqui e mudar toda a visão de mundo deles não vai nos ajudar a encontrar e vencer Nicol Bolas."

E nosso amigo Eknet já está desconfiado", acrescentou Jace. "Eu não bisbilhotei o bastante para saber exatamente do que ele está desconfiado."

"E o dragão?" disse Liliana.

"Não vi nada sobre ele", respondeu Jace. "Pelo menos não nos pensamentos imediatos do aviano."

Nissa apontou para a direção em que o vizir voou. "Esse deve ser o Temmet", ela disse.

"Não pode ser", disse Chandra. "Quantos anos ele tem, catorze?"

"Shh", pediu Gideon, virando-se para a figura que se aproximava.

Jovem, por volta de seus dezesseis anos, calculou Gideon. Mas caminha com pose e confiança. E o equilíbrio de um soldado bem treinado, Gideon pensou. Ou talvez um dançarino, ele corrigiu.

"Olá", disse Gideon, tentando reunir o pouco de animação que lhe restava.

E pela terceira vez ele foi praticamente ignorado, pois a atenção do jovem se voltou para Liliana, como é comum entre a maioria dos jovens. "Bom dia", ele disse com uma breve reverência. "Sou Temmet. O vizir Eknet disse que . . . Bem, o que ele disse não fez muito sentido."

Gideon e Jace se entreolharam. "Foi o melhor que eu pude fazer", disse Jace na mente de Gideon.

"Não foi o suficiente", rosnou Gideon de volta, mas sem ter certeza se Jace ainda estava ouvindo. "A situação está prestes a ficar feia."

Liliana retornou a reverência de Temmet e começou a tentar manipular o jovem com seu charme. "Não", ela disse, "tivemos certa dificuldade em explicar a ele a particularidade de nossa circunstância. Fico muito grata por você ter vindo em nosso auxílio."

O jovem estufou levemente o peito, mas apesar da bajulação de Liliana, a desconfiança tensionava a voz dele. "Naturalmente. Qual é o problema?"

"Passamos algum tempo caminhando pelo deserto", ela disse, "em uma missão especial para o Chifrudo." Ela moveu o queixo sutilmente na direção dos grandes chifres que assomavam no horizonte.

Temmet arregalou os olhos e se virou para olhar para os chifres. "Que ele retorne prontamente", ele disse rapidamente, como que por reflexo.

Retornar? pensou Gideon. Então ele não está aqui. Então Liliana mentiu para nós?

"Parece que algumas coisas mudaram na nossa ausência", ela continuou. "Você faria a gentileza de nos guiar pela cidade?"

"E que sejamos considerados dignos", disse Temmet, cerrando as sobrancelhas para ela.

Liliana inclinou a cabeça sem entender, mas Jace se aproximou, repetindo as palavras do jovem. "Perdão", ele adicionou. "O sol nos deixou desnorteados."

"É uma expressão que eles dizem", murmurou a voz de Jace na mente de Gideon. "Sempre que Nicol Bolas é mencionado. Colabore."

"Sim", disse Liliana. "Por isso seria fundamental ter a assistência de um jovem tão versado e importante como nosso guia."

Gideon viu desconfiança nos olhos do jovem. Tudo errado, ele pensou. Ele mandará nos prender a qualquer instante.

Enfim, disse Temmet concordando com a cabeça. "Naturalmente. Mas creio que você verá que as coisas não mudaram tanto quanto imagina. Tudo está em ordem conforme o Deus-Faraó—que ele retorne prontamente—", ele repetiu a fórmula enfaticamente dessa vez e pausou para que eles pudessem responder.

"E que sejamos considerados dignos", Jace murmurou, e os outros o acompanharam.

"—comandou antes de partir, então estaremos preparados."

"Me alegra muito saber disso", disse Liliana sorrindo.

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Arte de Jonas de Ro

Temmet os conduziu por avenidas amplas e contínuas, por casas retangulares, elevados obeliscos e imensos monumentos, alguns desafiando a gravidade. Os largos canais levavam a água de um grande rio que ele enxergou ao longe, e os jardins verdejantes floresciam, em contraste com o deserto do lado de fora da barreira mágica. A cidade tinha a atmosfera de um parque, cheirando a água fresca e pedra aquecida pelo sol. Sempre no horizonte, os dois chifres curvos de Nicol Bolas, o chamado Deus-Faraó, eram uma constante lembrança do propósito de Gideon ali, à direita do segundo sol menor, que pairava perpetuamente, de maneira impossível.

Os habitantes da cidade eram bastante heterogêneos. Além de humanos e outros avianos, ele avistou uma espécie com chifres, semelhante aos minotauros de Theros, pessoas com cabeça de chacal, e uma raça reptiliana, com cabeça de cobra, sem pernas. Mas o que mais chamou a atenção de Gideon foi o que eles faziam. Ele não viu estabelecimentos comerciais, artesãos trabalhando, ninguém realizando quaisquer trabalhos manuais. Em vez disso, todos estavam envolvidos em treinos de combate, exercícios atléticos e estudos—atividades de soldados—sempre em grupos de mais ou menos uma dúzia. Todos pareciam estar no auge do condicionamento físico.

É por isso que o Temmet disse que estavam todos preparados para o retorno do Deus-Faraó? Gideon se perguntou.

"Para que estão treinando?" Chandra pensou em voz alta, enquanto passavam por um grupo de pessoas emparelhadas para lutar.

Temmet seguiu o olhar dela. "Creio que estes iniciados estão se preparando para a Prova de Força", ele disse. Ele fez que sim com a cabeça, apreciando o que via. "Imagino que Rhonas irá considerá-los dignos."

Com um olhar austero, Gideon interrompeu Chandra antes que ela fizesse outra pergunta. A resposta de Temmet deixou claro que ele esperava que os forasteiros soubesses o que aquelas pessoas estavam fazendo.

E então, finalmente, Gideon viu trabalhadores—de certa forma. Temmet dizia algo sobre o grandioso monumento que estavam construindo, mas a atenção de Gideon se voltou para as figuras que carregavam um grande bloco de arenito vermelho em direção à construção. Cobertos da cabeças aos pés em linho branco, estavam enrugados o bastante para convencê-lo de que não poderiam estar vivas.

Mais zumbis?, ele pensou, imaginando a felicidade de Liliana. Múmias, dessecadas e preservadas?

De fato, Liliana mal conseguiu conter o contentamento na voz quando observou: "Sempre me impressionou um uso tão sábio dos mortos."

"De fato!" Temmet exclamou. "Os Ungidos fazem todo o trabalho aqui, para que os vivos se dediquem apenas ao treino. Que sistema poderia ser mais perfeito?"

"Não posso imaginar algo melhor", disse Liliana, sorrindo para Gideon.

Eles seguiram uma avenida, e mais uma vez Gideon se viu na presença de uma divindade.

Mesmo antes de vê-la, ele sentiu toda insegurança e ansiedade que sentia se dissipando, e uma calma tomou conta de seu coração, acompanhada por um calafrio que subiu sua espinha e despertou cada nervo do corpo dele.

Em comparação com os deuses que caminhavam pelo horizonte de Theros, ou até os titãs divinos de Eldrazi, a deusa com cabeça de gato era pequena, porém mais alta que as pessoas ao redor, que não chegavam nem à altura dos joelhos dela. Ela estava vestida de branco e dourado, e empunhava um imenso arco de ouro. Inicialmente, Gideon pensou que o rosto felino fosse uma máscara de ouro, mas os olhos azuis-celestes piscaram, a boca formou um caloroso sorriso, e ela se ajoelhou no chão.

A deusa . . . 

Se ajoelhou.

Diante dela se reunia um grupo de crianças pequenas com menos de dez anos. Cada uma tinha um cajado nas mãos e mantinha uma posição de combate. A deusa tocou delicadamente o pé de uma das crianças—sim, as pernas estavam muito afastadas uma da outra.

"Oketra saberá o que fazer com vocês", disse Temmet, caminhando em direção à deusa. A voz dele sugeriu uma ameaça, mas Gideon se sentia ameaçado na presença dela.

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Arte de Chase Stone

Quando criança, Gideon conheceu o deus do sol, Heliode, que pousou a mão sobre o ombro dele e o convidou para ser o campeão do deus do sol. Mas aquela não era a verdadeira forma de Heliode. A divindade dele estava velada, e sua estatura reduzida. Gideon não sabia que era ele até comparar a aparência do homem com a estátua do deus.

Esta deusa era diferente. Mesmo que este corpo não fosse sua verdadeira forma, a divindade dela não estava de forma alguma velada. Gideon podia senti-la em todos os seus nervos; ela cintilava no campo de visão dele, e ressoava em seus ouvidos quando falava. Temmet os conduzia até ela e, ao se aproximar, Gideon viu a adoração e devoção nos rostos das pessoas ao redor da deusa; as crianças que treinavam, os mais velhos que as supervisionavam e os outros que pareciam ter se reunido ali só para estar na presença da divindade.

Se ao menos eu pudesse sentir essa devoção novamente . . . Ele balançou a cabeça. Como eu poderia confiar em uma divindade novamente?

A missão de Heliode resultou na morte dos amigos mais próximos de Gideon, os Irregulares. O deus da morte, Érebo, os destruiu com um estalar de dedos, punindo o orgulho arrogante de Gideon. A ideia de voltar a depositar a confiança dele em um ser divino seria como trair suas memórias.

E então ela olhou para ele. No mesmo instante, com satisfação ele se deixou ser visto, e ela o enxergou. Ainda apoiada em um joelho, a deusa ergueu um dedo até ele e o tocou no peito.

"Você é um dos meus, Quiteon Iora", ela disse. Paralisado pelo olhar da divindade, ele sentiu o espírito queimando com um ardor incandescente. Não havia nada mais, nenhum outro lugar e ninguém mais em todos os planos infinitos do Multiverso naquele momento além dele e da deusa—Oketra, ele sabia o nome dela, assim como ela sabia o dele, seu nome original. Ela representava unidade, ordem, solidariedade; corações unidos em um propósito comum e corpos trabalhando cooperativamente. Nada sobre ela era complicado. Ela era exatamente o que deveria ser, e era bom e certo ela estar ali, agora, com ele.

Ela desviou o olhar, e ele quase perdeu o equilíbrio. Ela observou os companheiros dele, e suas sobrancelhas macias e douradas franziram sutilmente. "O resto de vocês ainda não têm o destino decidido. Ainda não."

Ela havia terminado. Com perfeita elegância e suavidade, ela se ergueu, e todas as pessoas ao redor da deusa, inclusive Gideon, se curvaram e a veneraram—não por medo ou obrigação, mas por terem o coração cheio de amor por ela.

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Arte de Cliff Childs

Depois, ela se afastou, e o ar se tornou frio, mesmo com o sol. Gideon permaneceu no lugar e a observou até perdê-la de vista. Então ele ergueu o olhar para um templo imponente, cujo entalhe representava a imagem divina da deusa, até que Chandra o deu um empurrão.

Temmet estava falando com ele agora, não mais com Liliana, e pela primeira vez o jovem sorria para ele. Gideon tentou se lembrar o que Temmet havia dito, mas ele continuou falando: ". . . dois quartos acabam de vagar perto daqui. Peço desculpas por não termos mais espaço disponível no momento. Sigam-me, por favor."

A mente de Gideon girava. Eles vieram aqui para caçar um dragão e, em vez disso, encontraram uma divindade. Jace, Liliana e Ajani descreveram Nicol Bolas como o mais terrível dos vilões, e este era seu lar supostamente criado por ele, mas se era realmente tão maligno quanto disseram, ele não pode ter feito ela.

Temmet os levou a um edifício nas proximidades. Ele indicou uma espécie de salão comunitário ou refeitório lá dentro, e os encorajou a se juntarem aos outros habitantes para as refeições. Depois, ele os conduziu por uma longa escadaria do lado de fora, levando-os a uma sacada que contornava todo o prédio. Ele abriu duas portas e indicou os aconchegantes aposentos do lado de dentro. "Espero que se sintam confortáveis aqui."

Liliana voou para dentro de um dos quartos e fechou a porta sem dizer nada. Jace, Nissa e Chandra entraram no outro, e Jace protestou em voz alta. Gideon, ainda um tanto estupefato, ficou na sacada, olhando a cidade. O coração dele saltou ao avistar Oketra caminhando pela cidade. As pessoas abriam caminho para deixá-la passar, alguns jogavam flores aos pés delas, e outros gritavam o nome dela. Pela segunda vez, Gideon observou a deusa até ela entrar no templo e as grandes portas bloquearem a visão dele.

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Arte de Wesley Burt

Ele continuou lá, desfrutando da vista da cidade, com a luz dos dois sóis tremulando sobre o rio e os canais, e a bruma iridescente da redoma protetora, o Hekma. Os grandes chifres no horizonte, próximos do segundo sol, eram o lembrete mais visível do aparentemente ausente Nicol Bolas, mas dali de cima ele podia ver outras expressões do mesmo símbolo de chifres: uma escultura no alto de um obelisco, o espaço negativo entre duas metades de um imenso monumento, e até uma fileira deles no exterior da balaustrada em que ele estava encostado. Ele não conseguia conciliar a óbvia devoção da cidade ao Deus-Faraó e o que ele havia escutado sobre o dragão Planeswalker... e o que ele testemunhou com Oketra.

"E aí, Gids." Chandra surgiu de dentro do quarto e veio para o lado dele na balaustrada.

Com um sorriso, ele pousou uma mão sobre o ombro dela, e eles apreciaram a vista da cidade juntos.

Ela se virou e olhou para ele com um meio-sorriso. "Então... do que ela chamou você?"

"Quiteon", ele respondeu. "Quiteon Iora." O nome parecia estranho em sua própria boca. "Esse . . . era meu nome. Em Theros. Muito tempo atrás."

"Quiteon, Gideon. É parecido."

"Não. As pessoas de Bant ouviram errado ou não sabiam pronunciar direito, e acabou pegando. Eu me chamo Gideon agora."

"Nah, pra mim o seu nome é Gids."

Gideon riu, balançando a cabeça, e voltou a olhar a cidade.

A voz de Chandra de repente ficou mais séria. "Então, o que exatamente são os deuses?" Ele piscou, e ela continuou, falando rápido. "São tipo anjos? Ou Eldrazi? Ou são simplesmente pessoas muito grandes? Liliana disse que ela e Nicol Bolas já foram tipo deuses—eles são Planeswalkers?"

Gideon fechou a cara. Ele nunca viu evidências de deuses em Kaladesh, pelo menos não como os de Theros, então a pergunta dela fazia sentido. Ainda assim, era uma pergunta difícil de se responder. Ele se apoiou na balaustrada e coçou uma de suas costeletas.

"Nissa costumava falar sobre a alma de Zendikar", ele observou.

"Nissa costumava falar com ela, isso sim. Ela deve sentir falta. Aquilo era uma divindade?"

"Talvez, de certa forma. Não sei bem. Acho que os deuses são parte da estrutura de um plano, digamos. Mas eles incorporam um aspecto do plano, como o sol ou a colheita. Só que eles também são pessoas. Eles pensam, falam . . . " Ele pausou, pensando novamente na experiência com Heliode. "E em Theros, pelo menos, eles podem ser tão mesquinhos, vingativos e volúveis quanto os humanos. E se importam menos ainda com o valor de uma vida humana."

"Você acha que a deusa-gato é diferente".

"Tenho certeza que sim."

Ela riu. "Não sei não, pelo que você disse, os deuses de Theros são bem parecidos com gatos."

"Oketra é . . . ela incorpora um ideal, e não algo como o sol. Ela é a solidariedade, o trabalho em conjunto, ser parte de algo maior do que você mesmo."

Chandra se virou de costas para a cidade e apoiou os cotovelos na balaustrada, olhando para os quartos onde os companheiros discutiam sobre onde cada um dormiria. "Bem, dessa parte eu entendo, pelo menos."

Gideon fez que sim com a cabeça. Esse era o sentido das Sentinelas; reconhecer que ser um Planeswalker é mais do que exercer seus poderes e seguir seus caprichos pelo Multiverso.

"Mas se os deuses fazem parte do plano", continuou Chandra, "e Bolas fez este plano, como a Liliana disse, não entendo como você pode ter gostado tanto da deusa-gato."

Você não sentiu nada? Quando a encontramos?"

"Eu sei que foi um momento especial entre vocês dois."

Eles se olharam nos olhos, depois ela desviou o olhar, e Gideon voltou a pensar no quanto as pessoas são confusas e complicadas.

Art by Grzegorz Rutkowski
Arte de Grzegorz Rutkowski

Gritos na rua abaixo chamaram a atenção dele. Ele varreu a vista com os olhos, buscando a origem da agitação, aparentemente tão fora de lugar naquela cidade tão tranquila e amável. Os outros Planeswalkers se juntaram a ele na sacada.

Foi Nissa quem finalmente apontou para a origem da comoção. Uma mulher humana, sozinha, corria pela multidão em direção a eles, empurrando as pessoas e o que Temmet chamou de Ungidos, causando o máximo possível de caos. Atrás dela, um grupo de soldados (incluindo um grande minotauro) já estavam quase a alcançando, apesar da multidão. A maioria dos gritos era da mulher, mas de longe Gideon não conseguia entender o que ela dizia.

Chandra já havia começado a descer as escadas. "Temos que ajudá-la!"

Gideon saltou atrás dela e bloqueou o caminho. "Calma lá, cabeça quente." Ela não parou, passando agachada por baixo de um dos braços erguidos dele. Ele se virou e a agarrou pela cintura. "Lembre-se do que eu disse sobre não atrair atenção para nós?"

Ela esperneou, e ele a colocou no chão delicadamente. "Mas ela está em perigo," ela disse.

"Provavelmente por um bom motivo. Não sabemos. Não faz sentido prejudicar nossa missão quando nem sabemos do que se trata."

A mulher já estava perto, mas os soldados também. "É tudo mentira!", ela gritava enquanto corria. "As provas são uma mentira! Os deuses mentem! As horas são uma mentira! Libertem-se!"

Gideon colocou a mão no ombro de Chandra antes que ela pudesse descer as escadas de novo. Ele tirou a mão quando o ombro dela começou a ficar subitamente quente.

"Está ouvindo?" Chandra disse. "Ela está lutando pela liberdade!"

"Não estamos mais em Kaladesh", disse Gideon gentilmente.

"Não, estamos na casa de Nicol Bolas!"

Um dos soldados conseguiu enganchar um dos pés da mulher com um cajado curvo, e ela caiu esparramada no chão. Em poucos instantes, os soldados estavam segurando-a pelos braços e erguendo-a do chão.

"Vocês vão ver!", ela gritou. "O retorno trará apenas devastação e ruína!" E então a mão do minotauro tapou a boca da mulher, abafando seus gritos.

Chandra continuou parada nos degraus, mas Gideon podia sentir o calor da raiva dela emanando em ondas. "A gente podia ter ajudado ela", ela murmurou.

"Escute", disse Gideon, olhando nos olhos dela. "Vamos fazer algumas perguntas. Discretamente. Vamos descobrir o que está acontecendo, de que mentiras ela está falando, e vamos ajudá-la se for a coisa certa a ser feita. Eu prometo."

"E se a sua preciosa deusa-gato estiver mentindo?"

"Ela não está."

"Para que fazer perguntas, então? Parece que você já sabe toda verdade."

"Eu não sei sobre a mulher, as provas ou as horas. Mas não há nada de mentira em Oketra."

"Você parece muito certo disso", disse Jace, juntando-se a eles nas escadas.

"Você não concorda?" Gideon perguntou. "Certamente você estava lendo a mente dela o tempo todo".

Jace balançou a cabeça. "Eu mantenho como hábito não bisbilhotar cérebros que são . . . maiores que o meu. A menos que seja necessário."

"Chandra está certa, Destemido Líder", disse Liliana com um sorriso jocoso. "Os únicos deuses que já conhecemos eram Planeswalkers com pretensões de divindade. Cheios de mentira."

Gideon subiu os degraus de volta, passando por eles aos empurrões. "Vocês não sabem do que estão falando", ele disse. "Nenhum de vocês."

Ele parou de repente no último degrau, face a face com o jovem Temmet.

"Peço desculpas pelo ocorrido", disse Temmet. "Foi um infeliz incidente."

Chandra chegou ao lado do jovem em um piscar de olhos e agarrou os ombros dele, obrigando-o a encará-la. "Infeliz incidente? Sobre o que ela estava falando? O que ela fez?"

As perguntas deveriam ser feitas discretamente, pensou Gideon.

Temmet deu de ombros. "Ela demonstrou ser indigna de viver entre nós."

"O que isso significa?" Chandra questionou.

Gideon viu a desconfiança retornando ao olhar de Temmet. Chandra claramente deveria ter entendido aquilo, o que significa que não foi uma ocorrência incomum.

"Não sei a natureza exata do crime que ela cometeu", disse Temmet. "Mas aqueles soldados que a perseguiam eram vizires de Bontu e, se não me engano, a safra dela deveria passar pela prova de Bontu hoje. Talvez tenha ocorrido um incidente no templo." Ele balançou a cabeça. "E a safra dela era tão promissora."

Gideon afastou Chandra de perto do jovem. "Obrigado", ele disse a Temmet. "Acho que vamos descansar agora."

"De fato", disse Temmet.

Gideon levou Chandra até o quarto, e os outros foram atrás.

"E agora?" Disse Nissa. "Não sei que o que pensar disso tudo."

"Temos muitas informações para organizar", disse Gideon.

"A safra dela", disse Liliana. "Será que estão destinados a serem ceifados?"

Jace fez que sim com a cabeça. "Ele estava pensando em um grupo de cerca de doze pessoas, que passaram muito tempo trabalhando juntos. Eles passaram por três provas juntos, seja lá o que isso signifique."

Chandra deitou de cara no travesseiro em uma das três camas do quarto.

"Descansar me parece uma boa ideia", disse Nissa. Ela sentou em outra cama.

"Certo", disse Gideon. "Vamos pensar melhor amanhã de manhã."

"Você é quem manda, senhor general", disse Liliana. Ela saiu rapidamente pela porta e entrou no quarto ao lado.

"Só eu não entendi por que Liliana pegou um quarto só para ela?" Disse Jace.

Gideon deu de ombros e se sentou em um canto, deixando a terceira cama para Jace.

Art by Noah Bradley
Arte de Noah Bradley

O sono não chegou para Gideon, enquanto ele tentava organizar toda a confusão na mente dele—a revolta em Kaladesh, Tezzeret e sua ponte planar, Nicol Bolas e o mundo supostamente feito por ele, o retorno do Deus-Faraó, as mentiras sobre as horas. Ele sempre pensava melhor quando estava em movimento, então ele saiu do quarto em silêncio e vagou pela cidade sob a estranha meia-luz do segundo sol.

Ele encontrou Oketra do lado de fora do templo dela, assim que o sol maior surgia no horizonte.

"O que está buscando, Quiteon Iora?", ela perguntou, ajoelhando-se novamente.

Respostas, ele pensou. Significado. Estabilidade. Fé.

"Você", ele disse.


Amonkhet - História do Arquivo
Perfil de Planeswalker: Chandra Nalaar
Perfil de Planeswalker: Gideon Jura
Perfil de Planeswalker: Nissa Revane
Perfil de Planeswalker: Jace Beleren
Perfil de Planeswalker: Liliana Vess
Perfil do plano: Amonkhet