Um aviso a pais e mães: observem que este conto trata de assuntos que possam ser considerados inadequados para leitores mais jovens.

I.

A Hekara estava esperando por mim no Passeio Transguildas.

Eu parei por um segundo ou dois para admirá-la. Eu sei que parece ridículo, mas ela era minha melhor amiga, minha heroína, um modelo para mim. Ela tinha sininhos nos cabelos e eu usava sininhos pendurados nos meus ombros — nos ombros, e não no cabelo, porque eu não queria que ficasse tão óbvio que eu estava copiando ela, aquele visual, aquele estilo, aquela... Hekaridade.

Mas eu estava sendo boba, então eu a chamei e ela se virou, com aquele sorrisão que ela fazia quando dizia o meu nome: “Rata! Vem cá, queridinha, me dá um abração.”

Ela fala assim o tempo todo.

Eu a abracei. Ela é muito mais alta do que eu e ela me girou como se fôssemos acrobatas em um dos concursos sangrentos da guilda dela. Só que a gente estava no chão, e não em uma corda-bamba, e não tinha espadas ou sangue de verdade.

Dessa vez.

“Me diz o que há, que doideira que está rolando?” Pediu ela.

“Claro, claro,” digo eu, balbuciando rapidamente como eu faço perto dela (ou, na verdade, como eu faço toda vez que eu abro a boca). “Eu segui o Mestre Zarek até Nivix, como você pediu. Não sei direito por que ele fica te dando bolo o tempo todo—”

“Né? Por que qualquer um iria me dar bolo?”

“É, meio inconcebível. Mas se me dá a chance de te ajudar ficando de olho nele, sabe que eu fico feliz se for útil.”

“Você é a minha Rata.”

“Eu sou sua Rata.”

“Certo. E com quem ele falou?” Minha amiga Hekara era emissária do demônio Rakdos e o mestre dela pediu para ela ficar de olho no Mestre Zarek da Liga Izzet. Mas ele ficava mandando ela embora, então é aí que eu entro na história, entende? A Hekara me deu a tarefa de seguir o Mestre Zarek quando ela não conseguia. Seguir alguém sem ser notada é uma das minhas habilidades especiais, a melhor delas. E como eu disse, eu adoro me sentir útil para minha melhor amiga.

“Ele se trancou na sala com o chefe dele.”

“Niv-Mizzet?”

“Aham.”

“Trancado?”

“Em um laboratório. Um grandão. Mas só tinha os dois lá dentro, sozinhos. Eu tinha me enfiado em Nivix, mas não consegui entrar no laboratório antes que a porta fechasse. E eu imaginei que se tentasse abrir a porta, eles podiam notar.”

“É mesmo?”

“Era uma portona grande e as dobradiças faziam barulho.”

“Ah.”

“Então eu passei por dentro dos dutos de ventilação...

“Você é a minha Rata.”

“Eu sou sua Rata. Enfim, eu não vi a maior parte da coisa. Teve um tipo de...explosão? Então quando eu cheguei num ventilador que dava pra ver o laboratório, só dava pra ver fumaça. A ventilação ligou — automaticamente, eu acho — e estava puxando a fumaça. Eu tossi tanto que fiquei com medo deles me ouvirem.”

Ela fez que não com o dedo. “Não estava, não.”

“Não estava, não. O problema é que eu também não conseguia ouvir nada. Tinha um monte de ventiladores, muito barulho. Mas o Mestre Niv-Mizzet não parecia feliz, não. Os dois estavam olhando pra uma máquina enorme, que parecia ser a coisa que tinha explodido. Eu não fazia ideia do que era pra ela fazer, mas com certeza não tinha funcionado. Estava saindo fumaça, chamuscada. Tinha até fogo saindo de alguns lugares, mas nem o Mestre Niv-Mizzet e nem o Mestre Zarek fizeram nada para apagar. Eu talvez tenha pego só uma frase. Alguma coisa sobre o farol ser a única chance deles, agora.”

“Isso serve. Se é que algo serve.”

“Se você diz...”

“O que mais, amiga?”

“Não muito. O Mestre Niv-Mizzet saiu voando. O Mestre Zarek abriu a porta do laboratório e um monte de goblins correu para apagar o fogo. Foram muito eficientes, eles.”

“Goblins Izzet têm bastante prática no combate a incêndios. Quase tanta prática quanto na criação de incêndios.”

“O Mestre Zarek puxou um goblin para mandar mensagens pra Mestra Kaya, Mestra Vraska, dona Lavínia, pro senhor Vrona, e pra você. Eu achei melhor sair de lá e te avisar, pra você saber o que estava rolando antes de atender ele.”

Como se fosse teatro, um goblin chegou correndo. Me ignorando, ele se curvou pra Hekara e a entregou um bilhete de pergaminho. Ela fez um carinho na cabeça do goblin e deu a ele uma lâmina de gorjeta. Ele olhou para aquela coisa, deu uma olhadela para o sorriso perigoso da Hekara, e saiu devagarinho sem virar as costas. Depois que ele estava a uns dois metros, ele virou e saiu correndo.

Hekara desdobrou o pergaminho e assentiu. Os sininhos no cabelo dela tilintaram um pouco. “Você tem razão,” disse ela. “É agora ou nunca. Meu amigo Ral precisa da sua amiga aqui para ativar o farolzão e chamar as tropas pesadas e lutar contra o dragão do mal.”

“O Mestre Niv-Mizzet é do mal?”

“Nahh. Outro dragão.”

“O que eu posso fazer?”

Ela olhou para mim e fez carinho no meu cabelo. Eu acho que se eu tivesse uma irmã mais velha, teria sido a Hekara. Mas eu não precisava de uma irmã mais velha porque eu tinha a Hekara. Ela disse: “Bom, eu vou estar com o Ralzinho hoje, então você pode tirar a noite de folga. Vamos nos encontrar aqui, hmm...logo antes de amanhecer. Se eu não aparecer é porque eu ainda vou estar com ele, e daí você pode tirar o dia todo de folga.”

“Tem certeza?”

“Tenho, tenho sim. Não preciso que você siga o cara se eu estou lá com ele.”

“Tá...

Eu acho que ela sentiu como eu estava relutante em deixá-la. Ela ergueu o meu queixo e disse: “Ei. Você é a minha Rata. Não minha mariposa. Eu sei que sou a luz mais brilhante do Multiverso, mas não precisa ficar voando em volta. Eu sou grandinha. Sei cuidar de mim.”

“Eu sei disso,” disse eu, talvez um pouco ressentida. Um pouquinho.

Aí ela ficou com pena de mim. Me abraçou e me girou de novo. Eu estou meio grande pra brincar disso, mas pra falar a verdade eu ainda adoro. Ela me colocou no chão e me deu um beijo na testa.

“Tô indo, docinho.”

“Tchau, Hekara.”

“Tchau, Araithia.” Que estranho ela usar meu nome inteiro. Ela quase nunca me chama de Araithia. Mas eu dei de ombros. Vi ela atravessar o passeio. Daí eu me virei para ir embora. Fazia tempo que eu não comia, e eu estava com fome.

Eu fui até uma feira Selesnya que estava fechando — ou talvez se preparando para abrir. Roubei uma ameixa madura. Eu talvez também tenha afanado do bolso de um ministrante Orzhov, que estava cobrando a dívida de um fruteiro. Eu não precisava tanto do dinheiro, mas elas tinham sido polidas e estavam brilhando, e eu gosto de coisas que brilham.

Vou dizer o quê? Eu sou a Rata.

Eu quase fui ver os Rakdos na performance do Jubileu Flamejante, mas parecia que eu ia trair a Hekara daí, o que é loucura. Talvez eu não estivesse afim.

Então eu andei por aí, matando tempo. Eu pensei em ir para casa, nas terras Gruul, talvez passar um pouco de tempo com os meus pais. Mas eu não fui. Estava inquieta. Eles iam me abraçar e me abraçar, e isso me deixava... Como que é a palavra...claustrofóbica, isso. Eu queria ficar a céu aberto.

Uma ideia brilhante, já que começou a chover. Não que eu me importe tanto assim com a chuva. Eu me enfiei na soleira de uma porta, observando o tráfego fraco da noite de Ravnica passar por mim. Todo mundo tinha que ir a algum lugar, ou parecia que tinham.

Enfim, horas depois eu conseguia sentir o gosto do alvorecer na boca e debandei para o Passeio Transguildas para ver a Hekara. Ela não estava lá. Eu esperei, mas ela não veio. Ela ainda estava com o Mestre Zarek, é claro, e não ia precisar de mim. Eu sabia que podia ir embora, mas eu fiquei por mais tempo, sem motivo nenhum, e o sol começou a nascer...

Quando um garoto coberto de areia se materializou bem na minha frente.


II.

O garoto — que parecia ter uns dezoito anos — estava de quatro, tossindo e cuspindo areia. Ele passou o braço cheio de areia pelos olhos pra tentar limpar a vista, e olhou para o sol com uma cara de confusão e talvez até pedindo socorro. Eu fiquei olhando, porque ele parecia meio patético. Por um tempo eu fiquei pensando de onde ele tinha se teleportado com tanta areia.

E então, enquanto ainda cuspia areia, ele abaixou a cabeça e olhou na minha direção. Eu continuei a observar enquanto eu pegava uma amorinha vermelha do meu cinturão e comia sem pensar no assunto.

Eu falei que estava com fome, né?

Ele estava sangrando um pouquinho na testa, e quando eu mordi a fruta e senti o gosto do suco vermelho-sangue, o sangue vermelho dele desceu até a boca e se misturou com aquela areia toda. Ele cuspiu de novo, passou por um ataque de tosse, e — ainda de quatro — pediu socorro.

Surpresa, eu apontei para mim mesma e perguntei, “Eu?”

Ele assentiu desesperado e tossiu, dizendo: “Por favor...

Imediatamente eu pulei do meio-fio e corri até ele, dizendo: “Quase ninguém me nota. Eu sou tão insignificante.” Eu ajudei ele a ficar de pé e comecei a tirar areia da túnica dele.

Ele murmurou um agradecimento e perguntou: “Onde eu estou?”

“No Passeio Transguildas,” disse eu, dando de ombros.

“O quê?”

“Você está no Passeio Transguildas. E vai ter carroças de thrull passando por aqui dos dois lados daqui a pouco. Então se você não quiser ser esmagado, melhor a gente sair daqui.”

Ele me deixou puxá-lo para fora. Esfregando o couro cabeludo furiosamente, ele tentou — e não conseguiu — tirar areia do cabelo enquanto a gente atravessava a ponte.

Eu estava empolgada em conhecer alguém novo, como sempre, e comecei a balbuciar a um quilômetro por minuto: “A gente não se apresentou direito. Eu sou a Rata. Assim, Rata não é o meu nome de verdade, né, claro. É mais um apelido. As pessoas me chamam assim. Bom, não é muita gente. Mas dá pra entender. Meu nome de verdade — ou, no caso, o nome que me deram — é Araithia. Araithia Shokta. Rata é menor e mais fácil de dizer. Você pode me chamar de Rata. Eu não me ofendo com o nome nem um pouco, não. Na verdade é meio que perfeito pra mim. Mais perfeito que Araithia, acho. Mas eu acho que Araithia é mais bonito, sabe? Minha mãe ainda me chama de Araithia. Meu pai também. Mas basicamente são só os dois. Bom, tem esse centauro que eu conheço mas é tipo meu padrinho, então dá na mesma. Os pais da gente se prendem nos nomes que eles escolheram. Mas eu gosto de Rata. Então você pode me chamar de Rata, tá bom?”

“Eu—”

“Atualmente eu sou Sem-Portão, se você tava se perguntando, mas eu nasci nos Clãs Gruul, e daí os meus pais querem que eu entre oficialmente pro clã deles, só que eu acho que não tenho tanta raiva assim, sabe? Além disso eu tenho bons amigos nos Rakdos e em Selesnya — pois é, pois é, não tem como serem mais diferentes, mas tem hora que eu acho que caibo em uma delas, e tem hora que eu me encaixo na outra. Enfim, tô entre essas três: Gruul, Rakdos, Selesnya. Com certeza eu entro pra uma dessas. Provavelmente. Você tá em alguma guilda? Eu não reconheço as roupas.”

“Eu—”

“Ah, e qual é o seu nome? Acho que isso devia vir primeiro. Eu não falo com muita gente nova, então eu erro a ordem das coisas. Eu sempre tenho tanta pergunta, mas costumo ter que me virar pra descobrir tudo sozinha, sabe?”

“Eu—”

“Foi uma pergunta retórica. A gente acabou de se conhecer. Eu não espero que você saiba como eu vivo a minha vida assim, de cara. Além disso, a gente tá conversando aqui. Não tem pressa. Vamos chegar nas coisas importantes eventualmente, né? Como tá sua cabeça? Que corte feio... Eu não acho que você vai precisar de pontos, mas a gente devia limpar e tirar a areia, colocar umas bandagens ou encontrar um curandeiro que faça uma mágica pra te remendar. Eu posso te levar em um lugar onde podem fazer isso pra você, mas até mesmo um pouquinho de magia de cura sai um pouco caro. Ainda assim, é um corte tão pequenininho, podem fazer de graça se você pedir com carinho. Ou se ficar com vergonha de pedir ajuda pra estranhos — você parece tímido, mas eu não quero presumir muita coisa já que a gente acabou de se conhecer — eu mesma consigo te ajeitar. Quer dizer, no caso eu sou uma estranha também. Mas eu acho que a gente já tá fazendo amizade, um pouco. De qualquer modo, sou uma médica decente. Eu tive que aprender a fazer isso sozinha ao longo dos anos. Não é como se a minha mãe não fosse fazer pra mim, mas ela é uma guerreira Gruul. Nem sempre ela tá disponível. Além disso eu nunca me machuquei tão feio, sabe? Cortes, ralados. Eu sou relativamente baixinha, e as pessoas mais altas esbarram em mim o tempo todo se eu não tomar cuidado. Ravnica é um lugar agitado, sabe.”

“Eu—”

“Veja bem, eu não sei fazer magia de cura, e eu não acho que tenha alguma coisa que sirva de bandagem, mas eu consigo roubar alguma coisa fácil, fácil. Ou talvez você não queira usar bandagens roubadas. Eu esqueço que nem todo mundo aceita que eu sou uma ladra. Com certeza os encarceradores Azorius não aprovam. Hmm, você não é Azorius, né?”

“Eu—”

“Nahh, olha pra você. Não pode ser Azorius. Estou achando que você é—”

De repente, ele parou na minha frente e agarrou os meus braços, gritando: “Me escuta!” Eu acho que ele meio que se assustou, porque ele pareceu imediatamente arrependido de ter gritado, quase com medo — como se eu fosse me vingar dele por ter gritado comigo.

Mas ele não me conhece mesmo, né?

Eu sorri para ele saber que eu não sou tão frágil e disse: “Eu falo demais, né? Eu passo tempo demais sozinha e falo muito sozinha. Eu sempre me digo isso. E daí eu vou ver outras pessoas, e eu devia aprender a escutar melhor... Eu quero aprender a escutar. Então, eu te escuto, hmm...sabe, você ainda não me disse o seu nome. Começa por aí e eu prometo que escuto.”

“Teyo,” respondeu ele, com a entonação do final como se ele estivesse perguntando para mim se ele acertou o próprio nome.

Tentando ajudar, eu repeti: “Teyo. É um nome bonito. Você está em alguma guilda, Teyo? Você tá ferido, e desabalado. Tem algum lugar onde eu possa te levar? Alguém que você pode encontrar?”

“Eu não sou de guilda nenhuma. Sou acólito da Ordem dos Magos dos Escudos.”

“Hmm. Nunca ouvi falar.”

“Você nunca ouviu falar da Ordem? Como é possível? O que você faz quando tem uma tempestade diamantina?"

“Nunca ouvi falar de tempestade diamantina nenhuma, mas parece bonito. Brilhoso. Eu gosto de coisas que brilham. É meio coisa de criança, mas é isso aí. Se eu vir uma coisa brilhosa, eu pego. Eu falei que sou ladra, né?”

Ele largou os meus braços e cambaleou até o parapeito de pedra da ponte, para ver o rio passando embaixo. Ele arregalou os olhos e suas mãos apertaram o parapeito com tanta força que os nós dos dedos dele ficaram brancos. Ele murmurou: “Ela nunca passou por uma tempestade diamantina? Nunca ouviu falar da Ordem? Não faz sentido. A Ordem Monástica dos Magos dos Escudos é famosa por todos os cantos de Gobakhan. As pessoas dependem dela.”

Chegando perto dele, eu sorri e dei de ombros, tentando falar um pouco mais devagar: “Eu nunca ouvi falar de ‘Gobakhan,’ também.”

Ele bateu com a mão no parapeito e bateu com o pé no chão. “Isso aqui é Gobakhan! Nosso mundo é Gobakhan! Você está em Gobakhan!”

Eu dei o braço para ele e comecei a caminhar. “Teyo, isso aqui...” Sem diminuir o passo, eu saltitei pelos ladrilhos, para os sininhos nos meus ombros tilintarem um pouquinho. “...é Ravnica. Este mundo se chama Ravnica. Teyo, eu tenho a impressão de que você não tá mais em Gobakhan. Acho que você caminhou.”

“A gente tá caminhando. Eu tô caminhando. Claro que eu caminhei.”

“Não caminhar desse jeito. Eu não sei muito de como funciona. Só algumas coisas que eu ouvi o Mestre Zarek e a Mestra Vraska comentando quando eles não sabiam que eu estava por perto. No caso, a Hekara me pediu pra seguir o Mestre Zarek, mas era quase uma missão, sabe? Ela queria saber onde eles iam, quando eles iam, quando estavam sem ela. É quase o que ela disse no caso. Ela fala assim, a Hekara. Enfim, era pra eu seguir eles, mas eu também ouvi um pouquinho das conversas. Eu não devia admitir, mas eu ouço as conversas dos outros, é uma doença crônica. Tá além do meu controle mesmo."

“Eu juro pela Tempestade, eu não sei do que você está falando.”

“Certo. Aham. Entendo. No caso, eu vi você materializar aqui coberto de areia, então eu devia ter adivinhado. Mas a sua mente sempre vai pra explicação mais simples, né? Eu achei que você sabia teleportar de um lugar pro outro. Você teleporta de um lugar pro outro?”

“Não!”

“Exato. Então, o que você consegue fazer, se eu entendi direito, é teleportar de um mundo pra outro, de um plano de existência pra outro.”

“Eu te juro que não sei fazer isso também!”

“Acho que da primeira vez é tipo um acidente, ou... Não, hmm, no caso, não é de propósito. Tipo voar sem querer. Tipo pra salvar sua vida, talvez? A sua vida estava em perigo, será?”

Ele olha para mim com olhos arregalados. Mais do que quando ele estava olhando para o rio, de qualquer modo. “Como— como você sabia?”

“Ah, sim, não. Eu não sabia. Mas eu acho que essas são as regras. Além disso, eu sou muito intuitiva e você estava completamente coberto de areia. Talvez enterrado vivo?”

Ele assentiu com a cabeça e disse: “Então eu não estou mais em Gobakhan?”

“Rávnica.”

“Ravníca.” O sotaque dele, que eu não tinha notado antes, parecia estrangeiro mesmo.

Eu já sabia a resposta, mas perguntei assim mesmo: “E você —não tem como mesmo— não conhece mais ninguém aqui, né?”

“Só você, suponho.”

Eu dei um apertão no braço dele, para reconfortar. “Então eu vou adotar você, oficialmente. Até você ir embora, eu sou sua família aqui. Não se preocupa que eu vou cuidar de você. Eu sou ótima nisso. Eu tive que aprender a cuidar de mim sozinha, sabe?”

“Aham.” Respondeu ele, apesar de não necessariamente ser para o que eu estava dizendo.

“Então vamos ver... O que você precisa saber para viver em Ravnica.” Eu dei uma olhada nele enquanto a gente caminhava. Ele olhava para a cidade, para todos os edifícios e estradas e transeuntes (que não notavam a gente), e os olhos dele iam arregalando cada vez mais. Eu comecei a me preocupar que eles iam pular das órbitas, então eu decidi que ele tinha que comer esse pratão de informação aos pouquinhos. “Tá bom, é isso o que você precisa saber: Ravnica é uma cidade enorme. E mora um monte de gente aqui. Um monte, mesmo. A maioria é humana, acho, que nem eu e você. Mas tem bastante elfos e minotauros e ciclopes e centauros e goblins e anjos e avianos e vedalkeanos e viashino e gigantes e dragões e demônios e tudo o que você possa imaginar. A Mestra Vraska é uma górgona. Eu só vi três dessas, mas acho que elas são muito lindas mesmo, sabe?”

“Eu— eu acho que nunca vi uma górgona.”

“Elas são impressionantes. Confia em mim. Enfim, eu não sei quem manda nas coisas em Gobakhan...

“O Abade Barrez? Ou... não. Ele só manda no mosteiro.”

“Então você é tipo um monge? Eu achava que todos os monges tinham que raspar a cabeça.”

“Eu ainda não sou monge. Sou um acólito. E raspar a cabeça não é obrigatório. Pelo menos eu acho que não é.” Ele ergueu as mãos. “Agora eu não tenho mais certeza de nada!”

“Calma. É por isso que eu tô te contando tudo. Então, o abade manda em Gobakhan. Aqui em Ravnica são as guildas. Tem dez guildas, e elas dividem o cuidado de todas as coisas.”

“Tinham guildas em Oásis. É uma cidade grande em Gobakhan.” Ele parou e olhou em volta. “Eu acho que Oásis não é tão grande assim.”

“Mas é grande o suficiente pra ter guildas?”

“Sim. Tem a Guilda dos Carpinteiros. E a Guilda dos Estábulos. Mas eu não acho que eles mandem em alguma coisa. Eu acho que eles só se juntam para beber e reclamar. Pelo menos foi isso o que eu achei. Eu passei só alguns dias em Oásis.”

“Bom, as nossas guildas são peixe grande. Mas eu tenho certeza que eles bebem e reclamam mais do que qualquer coisa. Eu sei que o meu pai bebe e reclama um monte, e ele é um guerreiro importante nos Clãs Gruul.”

“Então você está nessa guilda Gruul?”

“Eu já te falei. Eu sou Sem-Portão. Isso quer dizer que eu não me comprometi com nenhuma guilda ainda. Gruul, Rakdos, Selesnya. As três meio que estão tentando me conquistar. Mamãe passou açúcar.” Eu gargalhei. Ele não entendeu a piada. “Eu tô brincando. Mamãe não passou açúcar.”

“Tá bom. Se você diz...”

“Você é um doce.”

“Eu sou?”

“Acho que sim. Eu já gosto de você. Que bom que te adotei.”

“Eu—” Ele riu. Ou eu acho que foi uma risada. Meio difícil dizer. “Que bom que você me adotou, eu acho.”

Ele olhava para mim de um jeito que me fazia sentir...bom, eu não sei como eu me sentia.

É assim que é sentir vergonha?

Eu olhei para longe e disse para mim mesma Pára com isso.

Ou eu falei em voz alta? Por favor, me diz que eu não falei em voz alta!

Ele suspirou e perguntou: “O que mais eu preciso saber?”

“Ah, hmm...vamos ver. As guildas estão brigando umas com as outras o tempo todo. Pra mim, parece idiota. Elas deviam conseguir se dar bem, já que todas são tão diferentes. As coisas que elas cuidam mal se chocam. Mas eles acham que ser diferente é motivo pra incomodar os outros, e tal. Então se as coisas começam a ficar fora do controle, o conflito é pra ser resolvido por um cara chamado Senhor Jace Beleren. Ele é chamado de Pacto das Guildas Vivo, e isso quer dizer que a palavra dele é lei. Tipo, magicamente. O problema é que ele sumiu faz uns bons meses. Eu acho que ele é igual você. Que caminha de um mundo pra outro. Só que de propósito, talvez. No caso, com ele longe — as coisas foram dando errado, sabe? Todas as guildas tentaram se unir pra acabar com os planos de um dragão do mal, que parece que tá a caminho. Mas a Mestra Vraska — ela é a líder da Guilda Golgari — assassinou a Mestra Isperia, a líder da Guilda Azorius.”

“Peraí, ela matou a outra?”

“Aham. E agora todas as guildas se odeiam. Ou, no caso, elas não confiam mais umas nas outras.”

“E o dragão do mal?”

“Sei lá. Acho que ele ainda tá a caminho.”

A gente dobrou uma esquina, e eu parei de repente. A gente tinha andado sem rumo até a praça do Décimo Distrito, e eu me vi olhando para um obelisco altão bem no meio da praça, com a estátua de um dragão em cima. Se eu tivesse que adivinhar, era de um dragão do mal.

“Olha só,” disse eu. “Isso aí é novo.”


III.

Eu mal tive tempo de absorver a ideia do obelisco novo no meio da praça e os meus olhos se concentraram na pirâmide enorme do outro lado. Em certo ponto — muito recentemente — ela foi erguida do chão, deslocando edifícios e jardins e o que estava ali antes. A coisa toda me atingiu tão forte que eu mal me lembrava das coisas que estavam lá no dia anterior.

Será que eram tão insignificantes assim?

A ironia de alguém como eu esquecer não é impossível, sabe?

“O dragão do mal é aquele ali?” Perguntou Teyo, nervoso.

Primeiro eu achei que ele estava falando da estátua em cima do obelisco. Mas os olhos dele já estavam na pirâmide. Com certeza, tinha uma estátua de um dragão sentado lá em cima — só que de repente essa estátua virou a cabeça na nossa direção. Eu tinha quase certeza que ele não estava olhando para mim, o que me levou a acreditar que o Teyo tinha razão quando disse: “Parece que ele está olhando direto pra mim.”

Mas eu disse: “Parece improvável.” Ou no caso, eu comecei a dizer. Mas a segunda metade do que eu disse foi obliterada por uma explosão de som e um ar seco de deserto vindo de trás, que literalmente derrubou a gente.

Eu me levantei primeiro, aos tropeços. Ele ficou de quatro, tremendo e murmurando para si mesmo “Acorda, acorda, acorda...

Eu me virei para olhar enquanto o som de alvenaria desmoronando ecoava pela praça. Um portal gigantesco — cinquenta metros de altura, fácil — se abriu atrás de nós, dizimando instantaneamente a Embaixada do Pacto das Guildas, derrubando metade dela. Uma luz violeta suave saía do portal. Era quase relaxante — no caso, sem a destruição e o rasgo no espaço que o negócio causou. Uma ogra cambaleou e caiu em colapso; um quarto do corpo dela tinha sido evaporado pela chegada do portal. A fachada da embaixada terminou de desmoronar e cair, esmagando mais duas pessoas.

Foi um show de horrores. E não do tipo divertido que os Rakdos fazem.

Eu olhei por cima do ombro, na direção do dragão. A gente estava longe demais para ver a expressão facial dele, mas eu sou meio psíquica e ele estava se gabando mentalmente, saía dele em ondas. Se gabando com o nome.

Bolas. Nicol Bolas.

Eu tive arrepios.

E daí piorou tudo...


IV.

Uma mulher com cabelos da cor do corvo e um vestido preto elegante andava cuidadosamente pelos escombros. Ela chegou no topo de uma balaustrada caída, endireitou as costas e parou.

Teyo murmurou: “Tem uma coisa saindo daquela geometria... Eu levei um momentinho para entender que ele quis dizer o rasgo circular no espaço. Eu olhei para dentro.

Um exército. Tinha um exército marchando portal afora. Eles tinham um brilho azul-metálico no sol da manhã. Achei eles bonitos. Mas eu não sou uma idiota. Um exército marchando para Ravnica não é coisa boa — por mais brilhoso que seja.

A mulher com cabelos de corvo ergueu outra coisa brilhosa até o rosto. Quando ela tirou as mãos, eu consegui ver que era um véu metálico feito com elos dourados e lustrosos, que também cintilavam na luz do sol. A pele dela começou a brilhar com linhas púrpura - entalhes, tipo tatuagens. Eu acho que ouvi ela gritando. Mas eu não tenho certeza se ela estava gritando em voz alta, ou só na mente dela.

Ou eram só os meus medos, tipo, projetados?

Quando os braços dela começaram a brilhar mais, o exército metálico começou a brilhar também. Até mesmo da distância onde eu estava, eu consegui ver que os olhos deles ficaram púrpura também, igual às tatuagens da Dona Cabelo-de-Corvo. De qualquer modo, o exército parou e se virou, olhando pra ela. Aí, com um aceno bem claro da mão dela, ela ordenou que as forças brilhantes virassem e marchassem até as pessoas, até o povo que ainda estava se recuperando da destruição que o portal causou, e ainda estavam lá que nem uns bobos, olhando a horda se aproximar.

Teyo sussurrou: “O que a gente faz?”

Francamente, não me ocorreu fazer nada — talvez sair correndo e se esconder. Ao invés disso, eu fiquei lá parada e calada quando o primeiro dos guerreiros de metal alcançou uma jovem humana que estava tentando libertar o marido ou namorado ou irmão de baixo de uma pedra caída. Ela olhou para cima, para o guerreiro que se aproximava. Ela não se moveu, nem um músculo, quando ele chegou e rapidamente quebrou o pescoço dela. A gente estava um pouco longe, mas deu para ouvir o estalo, sentimos ele nos nossos próprios corpos.

“O que que a gente faz?” Repetiu Teyo.

Eu não sabia. A carnificina continuou quando o exército avançou, marchando e matando todo mundo que estava no caminho. Chegando mais perto, eu consegui ver que eram mortos-vivos: humanos, minotauros, avianos e outras espécies, cobertas dos pés à cabeça em algum tipo de mineral azul-metálico. Eles chegariam na gente logo. Eu não conseguia nem pensar. Nem me mexer. Não conseguia nem falar, o que no meu caso é realmente esquisito.

De repente, eu ouvi um trovão. A gente se virou. Era o Mestre Zarek, atirando raios das mãos nos exércitos em azul-metálico, derrubando dois ou três com cada um. Ele andava a passos largos com um olhar de fúria, os cabelos arrepiados, e os guerreiros azuis explodiam na frente dele.

A Mestra Kaya também estava lá; ela tinha puxado suas adagas longas para proteger uma mulher ruiva que estava amontoada sobre seu filho também ruivo, se lançando contra o assassino morto-vivo que estava erguendo sua espada para matar a mulher. As adagas da Mestra Kaya brilhavam lilás com a magia dela, e afundaram nas costas da criatura. Ela caiu destrambelhada na frente da mulher que gritava, puxando o filho mais para perto e olhando para Kaya com mais medo do que gratidão.

A Mestra Kaya disse: “Corra.”

A mulher saiu do transe e correu com a criança no colo.

Por algum motivo, eu e o Teyo também saímos do transe.

“Podemos ajudar com alguma coisa?” Perguntou ele.

“Acho que dá pra tentar,” disse eu, apesar de não saber direito como.

Mais dois dos monstros brilhosos correram até a Mestra Kaya. O que era maior e estava mais perto golpeou com um machado, mas a Kaya ficou incorpórea (e eu sabia que era um dos talentos místicos que ela tem) e o machado passou por ela sem machucar, fazendo um som de vushhh. Isso confundiu o atacante, e a Kaya aproveitou o tempo para ficar corpórea de novo e cortar a garganta da segunda criatura que estava chegando. A luz lilás das adagas meio que pareciam brigar com o púrpura escuro que irradiava dos olhos e do cartucho do guerreiro. Mas os poderes da Mestra Kaya eram igual veneno e infiltraram o cadáver. Infectado, ele caiu.

Ela se virou de novo para o do machado, que golpeou de novo. Ela ficou intangível de novo e o machado passou por ela de novo, e o oponente estava com a guarda aberta pra levar as duas adagas no abdome. Ele não caiu imediatamente e — sólida de novo — ela arrastou as lâminas para cima e o estripou. Era o tipo de coisa que a minha mãe faria.

Ou a Hekara. Me perguntei onde ela estava. Mas eu estava meio que contente que ela não estava aqui. Ela ia se divertir demais — e talvez acabar morta, ou algo do tipo.

Enquanto isso o Mestre Zarek estava de pé em cima de um banco da praça, defendendo mais três crianças. Uma delas segurava uma bola de borracha com a mesma proteção daquela mãe com a criancinha. O Mestre Zarek abatia os guerreiros metálicos um atrás do outro, mas quando a Mestra Kaya foi até ele ficou claro que eles — e todos nós — logo seríamos sobrepujados.

Logo outra daquelas criaturas estava em cima dela. Mais uma vez o corpo dela perdeu substância e o guerreiro passou por ela. Ele se virou. Ela se virou. Ela solidificou e enfiou as adagas nos olhos dele, bem fundo, onde estava o que tinha sobrado do cérebro. Ele caiu como se fosse uma marionete que cortaram as cordas.

Mas ela ficou tempo demais olhando. Um minotauro mineralizado esbarrou nela e ela caiu estatelada no ladrilho. Ela resmungou e se ergueu com dificuldade.

Foi aí que a gente entrou. Finalmente.

Eu não achei que fosse dar conta de um minotauro em um ataque de frente, então eu corri e dei a volta na fera. Ele me ignorou, continuando na direção da Mestra Kaya mais rápido do que eu esperava. Mais rápido do que eu conseguia fazer a minha jogada.

Mas daí, do nada, o Teyo estava lá. Ele estava sobre a Mestra Kaya, segurando um escudo triangular feito de luz que protegeu a ele e a ela da criatura. (Acho que é isso o que ele quer dizer com acólito da Ordem dos Magos dos Escudos.) A maça da criatura bateu no triângulo, que faiscou bastante mas manteve a forma. Teyo fez uma careta mas segurou, cantando baixinho. Eu estava surpresa e impressionada ao mesmo tempo, e — apesar de não ter motivo para colher essa honra, como o meu padrinho Boruvo diria, — orgulhosa do garoto que eu adotei.

O minotauro se arqueou para erguer a maça de novo, mas dessa vez eu estava pronta. Eu tinha puxado as minhas adagas (muito menores). Eu saltei nas costas dele e enfiei elas na nuca daquela fera. Ele rugiu, deu um coice e me jogou longe. Mesmo voando eu consegui segurar as minhas facas. Eu caí de bunda.

Cortes e ralados, como eu falei.

De repente, um raio de eletricidade branco-azulada acendeu a criatura, que explodiu em chamas de azul derretendo.

Quando o Mestre Zarek se aproximou, o Teyo dissipou o escudo. Um pequeno círculo de luz também desapareceu da orelha dele, e os ombros caíram. Ele ajudou a Mestra Kaya a ficar de pé.

O Mestre Zarek falou com o Teyo: “Você é um planinauta.”

“Eu sou o quê?”

“Como você sabe que ele é planinauta?” Perguntou a Mestra Kaya para o Mestre Zarek.

Eu estava ziguezagueando entre as criaturas azul-metálicas. Uma facada aqui, uma ali, distraindo dos alvos escolhidos. Eu cortei os tendões atrás do joelho de um deles, e quando ele caiu, eu esfaqueei os olhos dele.

Bom, tinha funcionado para a Mestra Kaya.

Felizmente, funcionou para mim também.

Eu corri de volta para perto do Teyo, desviando de outro monstro no caminho.

Naquele ponto, a Mestra Kaya olhou diretamente para mim e disse: “Essas coisas não parecem muito interessadas em você. Qual é o segredo?”

Acho que eu fiquei olhando fixamente para ela por um segundo.

O Mestre Zarek achou que ela estava falando com ele e respondeu: “Estão interessados o suficiente.”

Ela o ignorou e falou comigo mais uma vez, já um pouco preocupada: “Você tá bem?”

Mais uma vez, eu tive que sair do transe. Eu murmurei algo do tipo “Ah, sim. Só nunca esperei que a poderosa líder da Guilda Orzhov fosse me notar.” E aí eu murmurei para mim mesma: “Uau, dois no mesmo dia. É quase tão esquisito quanto o buracão no meio do mundo.”

O Mestre Zarek, ainda com a impressão que a Mestra Kaya falava com ele, disse: “Estou bem. Desculpe. São os óculos. Um projeto do Mente de Fogo. Com ele eu consigo identificar planinautas. É...um pouco desconcertante.”

“Tem mais algum aqui perto?” Perguntou a Mestra Kaya. “Planinautas, no caso. Não óculos. Precisamos de ajuda.”

O Mestre Zarek colocou os óculos de novo e olhou para os céus, e acompanhou algo até o chão. Pela expressão do rosto dele — e por um zumbido no meu cérebro — percebi que ele estava conversando psiquicamente com alguém. Eu não tenho poder suficiente para interceptar, mas reconheci os sinais.

Eu segui a direção do olhar dele e vi quatro humanos se aproximando. Dois homens que eu não reconheci, e a terceira era a Dona Lavínia, antiga assistente do Pacto das Guildas Vivo. No caso, o Senhor Jace Beleren, que também estava com eles. Eles lutaram até chegar perto de nós. O maior deles estava usando uma espada larga comum para despachar qualquer criatura que chegasse ao alcance dele.

O Mestre Zarek soltou um raio que derrubou alguns dos monstros no caminho do grupo. E então o homem grandalhão gritou: “Chandra!”

Nós todos viramos. Mais quatro guerreiros estavam lutando para chegar perto de nós. Duas piromantes estavam na frente. Uma delas, com cabelo literalmente vermelho-fogo, soltava fogo em quantidades tremendas, reduzindo os inimigos a poças de meleca derretida. A outra, com cabelo longo e grisalho, usava jatos de precisão maior, tão eficientes quanto. Atrás deles, tinha um leonino e um autômato gigantesco de prata.

Os dois grupos de quatro pessoas convergiram até nós quatro, e o leonino com um olho só pareceu sentir a glória da companhia, erguendo os braços e rugindo para os céus em triunfo — o que me pareceu meio prematuro.

As pessoas se apresentaram rapidamente. O homem grandão era o Senhor Gideon Jura. O outro homem era o Senhor Teferi. A piromante ruiva era a Dona Chandra Nalaar. A piromante grisalha era a Dona Jaya Ballard. O leonino era o Senhor Ajani Juba D’ouro, e o autômato era o Senhor Karn, que parecia estar realmente vivo e senciente. Assim como Teferi, ele não tinha sobrenome. Parece que vários desses caminhantes não tinham sobrenome, como se fosse o preço por caminhar pelo Multiverso. Eu ia perguntar para o Teyo se ele tinha sobrenome, mas ele estava tentando apresentar a nós dois para os outros. Mas ele balbuciava nervoso. Então quando o Senhor Jura colocou sua mão enorme no ombro do Teyo e, falando somente com ele, disse: “É bom contar com você nesta luta, Teyoerrata,” eu ri um pouquinho.

O Teyo tentou corrigir que “Teyoerrata” não era o nome dele, mas o Senhor Jura já estava gritando, “Em formação! Ainda tem Eternos vindo! Precisamos salvar o máximo possível de pessoas!”

Então era esse o nome dos guerreiros metálicos: Eternos.

Era um nome que não dava bons prospectos da nossa sobrevivência, sabe?


V.

A Dona Cabelo-de-Corvo elegante, no seu vestido preto elegante, atravessava a praça do portal até a pirâmide, cercada por uma falange de Eternos que a escoltavam. Ela olhava para a gente enquanto o Senhor Jura liderava nosso avanço contra o que agora ele chamou de “Horda Medonha.”

Ela nos viu erguer crianças menores do que eu para tirá-las do caminho perigoso.

Teve uma hora que o Senhor Jura estava carregando três ao mesmo tempo.

Ela nos viu interferir quando tinha gente aterrorizada demais para montar qualquer tipo de defesa.

Ela nos viu destruir um Eterno depois do outro.

E a última coisa que eu vi, antes de perder ela de vista completamente, foi ela meneando a cabeça com pena, talvez até desgosto.

Eu virei para o Teyo — que tem um sobrenome, Verada — e ele só parecia exausto. Ele erguia um escudo depois do outro, protegendo todo tipo de gente — todos completos estranhos para ele — desses Eternos mortos-vivos. Eu estava ocupada demais tentando me manter viva e não conseguia ler os pensamentos dele, mas eu entendi o básico: ele não confiava em si mesmo, não achava que conseguiria jogar com a mão que tinha comprado.

Eu me aproximei e disse: “Você está indo bem.”

Ele engoliu em seco e confirmou com a cabeça, erguendo outro escudo - um círculo que se expandiu nas mãos dele, dando a duas crianças elfas a cobertura que precisavam para correr de um Eterno. A cobertura mineral deles — de lazotep, como o Senhor Jura tinha chamado — brilhava enquanto ele perseguia as crianças. O escudo do Teyo segurou, bloqueando o Eterno e me dando a oportunidade de usar minhas faquinhas nos olhos pouco Eternos dele.

Eu já tinha feito isso umas seis ou sete vezes até agora. Era muito eficiente. Eu conseguia correr rapidinho até um deles e esfaquear. Na primeira vez eu achei que o Teyo fosse vomitar, mas ele engoliu em seco e agora já estava acostumado com o meu novo truque. Ninguém nunca estudou tanto os meus truques, a não ser pela minha mãe, talvez. Mas eu tentei não deixar isso mexer com a minha cabeça.

Teyo invocou um escudo novo para parar o mangual de outro Eterno.

O Senhor Jura gritou: “Teyoerrata, empurra esse pra cá!”

“É só Teyo,” guinchou ele enquanto tentava obedecer. Eu notei que toda vez que ele precisava de mais alavanca, Teyo invocava um círculo de luz embaixo da orelha direita. Ele ficava ali pendurado como se fosse um brinco brilhante, que segurava a minha atenção de um jeito perigoso. Eu tinha que resistir a vontade de pegar o brinco, resistir a vontade de ficar olhando por muito tempo.

Teyo expandiu o escudo da sua mão esquerda, transformando-o de um círculo para um losango. Ele sorriu só um pouquinho, ligeiramente orgulhoso da manobra, e então usou as duas mãos para aumentar o escudo de losango, e avançar.

O mangual do Eterno bateu no ângulo e isso desequilibrou o monstro. Teyo se apoiou no escudo e empurrou. O Eterno cambaleou para trás e o Senhor Jura cortou a cabeça dele com um golpe limpinho.

“Ótimo,” gritou ele antes de se virar para atacar outra das criaturas.

Teyo sorriu mais uma vez, e eu sorri por ele. Daí ele apagou o sorriso e virou o escudo para proteger a retaguarda da Mestra Kaya.

O Senhor Beleren gritou: “Precisamos invocar as guildas! Elas precisam estar na luta!”

O Mestre Zarek explodiu outro Eterno e respondeu gritando: “Não acho que seja possível! Eu consigo comandar os Izzet para a batalha e talvez a Kaya consiga fazer o mesmo com os Orzhov...

Dona Lavínia completou o raciocínio dele: “O restante das guildas se retirou para fortificar os próprios territórios, mais desconfiadas umas das outras do que de Nicol Bolas.”

A Mestra Kaya disse: “Sem contar com as guildas que já servem ao dragão. Golgari e Azorius. Talvez os Gruul também.”

Eu não conseguia acreditar que os Gruul serviriam ao dragão. Eu sabia que os meus pais nunca fariam isso.

A Dona Lavínia fez uma cara feia. Ela com certeza não estava contente com os Azorius servindo Nicol Bolas também.

O Teyo e a Mestra Kaya estavam de costas um para o outro, parando golpes de dois Eternos. Pensando em ajudar, eu me esgueirei entre os dois. Eu sussurrei para a Mestra Kaya: “Chama a Hekara. Ela traz o Culto inteiro.”

A Mestra Kaya esfaqueou o Eterno e daí parou para menear a cabeça com pesar. “Hekara está morta,” disse ela.

Ah, pronto. O meu mundo simplesmente...rodopiou.

Não pode ser...

Eu vi a Hekara na noite passada. Ela estava bem. Ela estava animada. Era a Hekara. Era minha melhor amiga no mundo todo. No Multiverso todo.

Atrás do escudo, o Teyo me encarou preocupado.

“A Hekara era minha amiga,” disse eu, sem esperanças. “Ela me conhecia. Ela me via.”

O Teyo estava com os meus sentimentos no rosto: desamparado. Ele queria me reconfortar; empurrando o escudo da mão direita para a esquerda, ele esticou a mão e me apertou o ombro afetuosamente.

Eu não vou fingir que estava reconfortada, nem um pouco. Eu ainda não conseguia entender o que a Mestra Kaya acabou de dizer. Eu não conseguia imaginar um mundo sem a Hekara, sem sua risada, seus pensamentos ricocheteando, sua lealdade e amizade, e até mesmo sem a sede de sangue dela. Mas Teyo tentou, pelo menos, então eu tentei reconhecer o esforço dele com um sorriso de agradecimento. Eu não faço ideia da expressão que apareceu no meu rosto.

A Hekara não podia estar morta. Simplesmente não podia.

Hekara está morta,” disse a Mestra Kaya, e eu sabia que ela gostava da Hekara o suficiente para nunca mentir sobre esse tipo de coisa. Eu queria acreditar que ela mentiria. Mas eu sabia da verdade.

Minha melhor amiga não estava me esperando no Passeio Transguildas. Ela nunca mais vai me esperar lá. Ela nunca mais vai me abraçar ou me provocar ou me fazer cócegas ou me girar ou falar comigo de novo.

Vem cá, queridinha, me dá um abração.” Eu nunca mais vou ouvir isso. Ou qualquer coisa parecida. Nem os sininhos balançando no cabelo dela. Nem a risadinha que ela dava quando manifestava uma lâmina. Nem as gargalhadas altas e roncadinhas que escapavam quando ela achava alguma coisa especialmente hilária. Acabou, tudo. A cortina tinha fechado. O espetáculo dela acabou.

Mais Eternos avançaram e eu me perguntei por que a gente ainda estava se incomodando em lutar contra eles.

Ravnica estava morrendo à minha volta e, de repente, nem valia a pena salvá-la.

A Hekara tinha morrido...


A Guerra da Centelha Arquivo das Histórias
Perfil do Planeswalker: Ajani Juba D’Ouro
Perfil da Planeswalker: Chandra Nalaar
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