Episódio anterior: Confiança

A cidade de Naktamun é perfeita demais para ser real. É reluzente e imaculada, e seus cidadãos são jovens e cheios de fé. Determinadas a revelar as intenções de Nicol Bolas naquele plano, Nissa e Chandra exploram a cidade em busca de respostas. O que elas descobrem desafia tudo que as Sentinelas achavam que sabiam sobre Amonkhet.


Ela se sente cercada de escuridão e uma fonte infinita de enfermidade. A pulsação deste plano é fraca ao redor dela.

Já tive vida uma vez, o plano parece murmurar em uma voz rouca e arenosa.

Ela sente vida, mas ele não está vivo. O que resta do plano agoniza de forma desafiante.

Ele jamais poderia me matar realmente. Eu abomino a morte.

Uma imagem: um antílope morto-vivo e semidevorado, sendo perseguido por abutres famintos. Uma mãe elefante acariciando o cadáver recém-reanimado de seu filhote morto.

Aqueles que morrem sempre retornarão. Esta é a Maldição dos Andarilhos. Minha dádiva.

Ela compreende. O que está morto e ainda não se decompôs retornará.

De repente, ela cai, afundando muito abaixo da superfície do plano.

Art by Sam Burley
Arte de Sam Burley

A consciência dela se encontra em algum lugar a centenas de metros debaixo do solo. Ela pode sentir que a caverna onde está foi construída há muito tempo por mãos cuidadosas. O ar abafado é denso, escuro e cheira a argila e areia. O único movimento é o rastejar dos escaravelhos.

Os mortos eram enviados para cá para que eu não os deixasse apodrecer . . .

Os recintos estão vazios. Nem mesmo os besouros sabem onde está o alimento.

Ela não tem forma física neste lugar. O corpo dela se encontra acima da superfície, suando e tremendo com a febre de um mundo subnutrido.

Aqui já foi meu lugar mais precioso.

É o eco de um grito.

Ela compreende agora que eram catacumbas. Era seguro e tranquilo.

Eu protegia os receptáculos para manter as almas vivas, e ele. . . as levou . . .

A elfa se contorce de ansiedade. O espírito dela, aqui, pode sentir, mesmo distante.

Ele as levou—!

A caverna está completamente vazia.

Ele levou todas elas e as corrompeu! Por favor, dê um fim à minha culpa, eu não pude protegê-las—!

Seu corpo, acima da superfície, treme de medo. Ela olha para cima para o teto da catacumba, esforçando-se para sair da areia, repleta de escaravelhos e serpentes ao redor—

Nissa acordou.

Amonkhet estava velha, lutuosa e desesperadamente amedrontada.

A luz matinal invadia a janela. O sol maior se erguia, iluminando os lençóis da cama dela com um brilho translúcido e soporífero. O ar estava fresco, cálido e tinha o cheiro suave de uma manhã no deserto, mas a tensão no peito de Nissa não se abrandava. Quem sabe se ela tentasse de novo? Ela fechou os olhos e, silenciosamente, buscou a alma do mundo.

Ela se sentiu como se estivesse mergulhando em uma banheira cheia de tachas e pregos.

Nissa recuperou os sentidos, buscando ar, e desligou a conexão. A tensão no peito dela permanecia.

Ela se sentou e observou o resto do quarto. Chandra e Jace ainda dormiam, mas Gideon não estava ali.

"Chandra?" Nissa sussurrou.

O volume em forma humana na cama se moveu suavemente.

"Chandra, acorde, por favor."

Chandra abriu um só olho, com as pálpebras inchadas de sono. "Que foi?"

Jace não se moveu, mas Nissa manteve a voz baixa mesmo assim.

"Vou andar por aí para achar aquela mulher de ontem. Pode vir comigo?"

"Humpf. Tá." Ela se sentou, se espreguiçou esticando um braço de cada vez, depois esfregou os olhos. "Queria tomar café da manhã primeiro— "

Assim que Chandra disse "café da manhã", uma múmia envolta em ataduras brancas entrou no quarto carregando uma bandeja com pão e um jarro com um líquido que cheirava a álcool.

Nissa soltou um gritinho de surpresa e se voltou de costas para a parede enquanto Chandra gritava descontroladamente. Jace se ergueu desajeitadamente da cama, desnorteado por ter acordado com a comoção, e confuso pelo aposento desconhecido e o cadáver trazendo café da manhã.

A múmia, que pareceu não reparar, deixou a bandeja de comida sobre a mesinha, posicionando-a com cuidado para que a bebida não caísse acidentalmente.

Os três olhavam para ela assustados e em silêncio, enquanto a múmia ajeitou elegantemente a postura, se virou e saiu do quarto.

O único ruído era a respiração ofegante dos três e, depois, uma explosão de perguntas.

"O que tem ali dentro— "

"Eles não batem na porta antes de entrar?"

"Era da Liliana?"

"Espero que não tenha sido você!" Jace gritou para a parede.

A voz abafada de Liliana respondeu do outro lado, rapidamente: "Não é meu!"

Nissa engatinhou apressadamente para fora da cama. "Não posso ficar aqui. Preciso dar uma volta."

Chandra fez que sim com a cabeça e calçou as botas. "Já acordei, vou com você." Ela jogou rapidamente em cima da cama os lençóis que estavam no chão, depois pegou sua armadura. Nissa se perguntou como era possível Chandra vestir tudo aquilo e não morrer de calor, mas depois percebeu o quanto aquela pergunta era tola.

Jace estava de pé, inspecionando a comida que a múmia havia deixado sobre a mesa. Ele fez uma careta para a cerveja escura. "Me deem um momento para acordar."

Chandra se afastou enquanto amarrava a armadura de metal. "Não é bem café, né?"

"É o contrário de café", respondeu Jace.

Chandra acenou se despedindo, e Nissa a seguiu.


Até mesmo de manhã, Naktamun cheirava a suor. Não de trabalho ou de tortura, mas de pessoas treinando.

Grupos de jovens corriam pelas ruas da cidade. Alguns pares levantavam peso nas incontáveis arenas de treinamento que ladeavam as calçadas de pedra calcária. Outros faziam duelavam em movimentos ensaiados nos ringues cuidadosamente cercados de cordas. Não havia lojas, nem produtos à venda, padeiros, açougueiros, operários ou policiais.

Todos os habitantes estavam de pé, treinando, e nenhum parecia ter mais de vinte anos de idade.

"Pela primeira vez na vida, eu me sinto velha", disse Chandra em um tom jocoso. Nissa e ela pararam por alguns instantes para assistirem a uma criança de oito anos supervisionando outra de seis que levantava um peso.

O menino mais novo bufava com o esforço, tentando levantar a barra com os dois punhos cerrados encostados um no outro.

"Não faz axim, voxê vai perder o contole do peso!", repreendeu a criança em pé.

Nissa murmurou no ouvido de Chandra para que as crianças não ouvissem.

"Que esquisito."

Era a primeira vez que Nissa usava essa palavra em voz alta. Chandra assentiu em silêncio, e elas continuaram a caminhar.

Todos os edifícios eram totalmente brancos, limpíssimos e bem conservados. Não havia sujeira nas ruas e nenhum buraco que as fizesse tropeçar. As duas se mantiveram juntas em meio aos infinitos grupos de jovens e logo descobriram que não havia mais ninguém simplesmente caminhando pelas ruas. Todos estavam se exercitando, menos elas.

Olhando mais de perto, Nissa entendeu como a ordem era mantida. Uma múmia pintava um muro de branco. Outro varria a passagem para os dormitórios, outro levava os animais para os estábulos, outro despejava um penico na sarjeta. Eram os mortos encantados que faziam todo o trabalho.

"Por que Nicol Bolas criaria um plano e depois o abandonaria assim?" Nissa perguntou. Chandra deu de ombros.

"Ego, talvez? Criar um mundo inteiro para venerá-lo é bem a cara dele."

"Mas por que isso não o fez querer ficar aqui?"

Chandra não sabia a resposta.

Nissa observou as múmias que passavam e pensou em sua própria percepção de morte. A nação Mul Daya de Bala Ged tinha uma relação com os espíritos de seus ancestrais que a diferenciava das outras nações de elfos. A morte e os espíritos dos mortos faziam parte da vida deles da mesma forma como o mundo natural. Mas aqui, a morte dependia muito mais do aspecto físico. Preservar os cadáveres deveria ser tão essencial para a cultura deles quanto as oferendas aos ancestrais eram para a cultura dela.

Se eu tentar compreender algo, não terei mais medo. Nissa pensou em Yahenni. A morte deles era diferente de tudo que ela já havia visto. Talvez a morte fosse de fato diferente em cada plano.

Uma forte dor de cabeça repentina fez com que ela quase perdesse o equilíbrio por um instante. Nissa olhou para baixo. O estômago dela se revirava de uma náusea.

"O que houve?" Chandra perguntou. Nissa percebeu que havia parado no meio da rua.

"Não sei como explicar . . . "

"Está passando mal? Vem, senta aqui."

Chandra a conduziu até um chafariz na praça. Nissa viu, enquanto sua cabeça girava, Chandra se aproximando de uma múmia com ataduras brancas. Chandra gesticulava e apontava desajeitadamente. A múmia olhou na direção dela, deixou a praça e voltou momentos depois com um cálice vazio. Chandra aceitou, agradecendo com a cabeça, depois correu em direção a ela e o chafariz.

"Eu sei que é de uma das coisas mortas, mas acho que é seguro beber nisso."

Nissa pegou o cálice das mãos de Chandra e o mergulhou na água do chafariz. Ela bebeu e percebeu que havia deixado a sede vencê-la.

"Obrigada, Chandra."

Chandra voltou a encher o cálice e sorriu. "Vamos descansar um pouco. Não podemos enfrentar dragões enquanto estamos desidratadas."

Nissa ensaiou uma risada tristonha. Eu não seria capaz de enfrentar nada agora.

Elas continuaram sentadas no banco por vários minutos. Nissa estava grata pela sombra. Ela se sentia contaminada pela enfermidade daquele mundo e sabia que isso só passaria quando ela deixasse Amonkhet para sempre. Quanto mais cedo eles puderem derrotar o dragão, melhor.

Ela se viu observando o céu. Lá estava o brilho suave da barreira Hekma e, mais acima, o céu azul-claro. Sua vista do céu infinito foi interrompida pela horrível decoração de chifres no alto do edifício em frente a ela.

Ela terminou o segundo cálice de água fresca. "Obrigada por me acompanhar nessa manhã, Chandra."

"Melhor lugar impossível." Chandra brincava com as tiras de seu avambraço, olhando na direção de Nissa. Um sorriso involuntário se abriu no rosto dela—um rubor, uma inevitável pontada de sentimento.

Nissa gracejou.

Posso citar pelo menos vinte lugares melhores que Amonkhet."

O sorriso de Chandra se fechou, e ela abaixou a cabeça.

As duas permaneceram sentadas em silêncio, confortável para uma e tenso para a outra. Nissa respirou fundo, tentando fazer com que o borbulhar do chafariz e a sombra fresca acalmassem os nervos dela. Chandra parecia concentrada nas fivelas da armadura.

"Nunca passei tanto tempo em um ambiente urbano", disse Nissa. "Desde Kaladesh até aqui, nunca vi tanta gente."

"Você parece estar se adaptando bem", respondeu Chandra.

Nissa balançou a cabeça. "Estou conseguindo disfarçar bem o meu desconforto. Estar perto dos outros com tanta frequência é desgastante."

"Mas não com a gente, né?"

A pergunta fez Nissa pensar. Ela observou Chandra abrindo e fechando intencionalmente a mesma fivela do vambraço.

Nissa franziu as sobrancelhas. Ponderou as palavras. "Sim e não."

As mãos na fivela pausaram, enquanto uma mente divagante buscava palavras para expressar sentimentos desconhecidos.

"A amizade com todas as Sentinelas ainda é algo novo para mim. Ainda estou tentando compreender o que significa ter amigos, primeiramente", disse Nissa.

Chandra emitiu um breve ruído e seus olhos vagaram pela praça, com as costas arqueadas e os dedos repentinamente imóveis.

Nissa continuou. "Em Zendikar, passei quase a vida toda sem a companhia de outras pessoas. O plano era a coisa mais próxima que eu tinha de um amigo. Aprender a confiar tem sido . . . difícil—e ainda tenho muito o que aprender. Compreender e manter amigos é desafiador para alguém que nunca fez isso antes."

Chandra mudou de posição desajeitadamente. "Então . . . amizade?"

Nissa piscou. Chandra se esforçou para não encará-la.

"Sim", disse Nissa sorrindo.

 

Nissa fechou os olhos e respirou fundo novamente. A dor de cabeça estava passando. Era bom confessar suas inseguranças. Ela sorriu e olhou Chandra nos olhos.

"Fico grata pela sua companhia. Você me ensinou muito sobre o que significa a amizade, Chandra. É algo muito importante para mim."

"Entendi. Beleza." Um esboço de sorriso voltou a se abrir no rosto de Chandra. "Quero ser uma boa amiga pra você."

O rosto de Nissa se iluminou. "Você já é. Estou dando o melhor de mim para retribuir."

O sorriso tímido de Chandra se abriu, de orelha a orelha. Ela olhou nos olhos da amiga. "Você tá indo bem, Nissa."

Sentindo-se segura, Nissa deixou o cálice à beira do chafariz.

"Acho que já estou melhor. Vamos continuar."

A elfa se levantou e voltou a caminhar. Depois de respirar fundo e suspirar, Chandra foi atrás dela.


Elas andaram até acharem uma antiga estrutura. O Monumento de Rhonas era imenso e desprovido de qualquer sutileza. A estrutura principal tinha a forma de uma cabeça gigante de cobra e, ao contrário dos demais edifícios ao redor, tinha a aparência desgastada de uma construção que já testemunhou muitas eras. A cabeça gigante ficava às margens do rio, com os olhos voltados para os chifres ao longe.

Ao se aproximar, Nissa observou uma estranha forma no alto de um dos obeliscos perto da entrada do monumento. Uma esfinge solitária, com uma expressão indecifrável, olhava para a safra de acólitos que treinava abaixo dela.

Nissa parou na base do monumento e olhou para cima.

Chandra olhou para a mesma a direção, visivelmente sem saber como falar com a esfinge.

"Vocês devem ser as viajantes de quem tanto ouvi falar."

Nissa se virou, deparando-se com a pessoa mais velha que ela já havia visto em Amonkhet. Ela parecia ter mais de trinta anos, com um rosto carrancudo e o chapéu elevado de vizir. Caminhava com o queixo empinado e o peito estufado. Quase tudo na postura dela contrastava com a infinidade de jovens e crianças que elas haviam visto até o momento.

A mulher ofereceu a mão para cumprimentá-las. "Temmet comunicou o resto dos Templos que tínhamos visitantes na cidade."

Chandra se aproximou para falar. Nissa sorriu suavemente. Era gratificante perceber que Chandra sabia o que a deixava desconfortável e ansiosa. Era gratificante que as duas podiam combinar em silêncio a ordem das próprias ações.

"Olá", disse Chandra com um sorriso cativante e sardento. "A gente tava querendo falar com essa . . ."

"Esfinge. Temo que vocês não terão muita sorte nessa conversa."

A vizira afirmou com voz de comando. A mulher fazia Nissa se lembrar de Lavinia, em Ravnica, que sabia todas as regras e sempre se irritava porque ninguém mais se importava em memorizá-las.

"E por quê?" Chandra perguntou.

"Bem, para ser bem sincera . . . o motivo é trágico", disse a mulher com um suspiro distante. "As esfinges têm uma história triste. São dotadas de conhecimento infinito mas, por outro lado, amaldiçoadas com um terrível destino."

Nissa e Chandra ficaram em silêncio, preocupadas.

O olhar da vizira era seco e inexpressivo. ". . . Todas elas tiveram laringite ao mesmo tempo."

As duas se entreolharam.

A vizira sorriu, cheia de dentes e júbilo. ". . . Estou brincando. Não tem nada de errado com elas."

Chandra riu, sem jeito. Nissa não achou a piada muito engraçada.

A postura da vizira mudou drasticamente, e ela se apoiou sobre uma perna. Nissa reparou em uma pequena serpente enrolada ao redor da mão dela. Um mascote. Com a outra mão, a vizira protegeu a vista contra a luz do sol, olhando para a esfinge no alto.

"Na verdade elas apenas fizeram um voto de silêncio até o retorno do Deus-Faraó. O que esperamos que seja muito em breve! Sou a vizira Hapatra. Como posso ajudá-las, viajantes?"

"Sou a Nissa, e essa é Chandra. Viemos de longe", disse Nissa. "Seus costumes são bastante estranhos para nós."

Chandra fez um ruído de interrupção. "O que ela quer dizer é que andamos nos perguntando sobre os . . . ah . . ."

Ela apontou para o par de múmias que varriam os degraus do monumento.

"Estavam curiosas sobre os Ungidos?" perguntou Hapatra.

"Sim!" Chandra fez que sim com a cabeça. "É. Por que existem tantos?"

"São eles que tornam possível nossa vida de competição e dedicação."

"Mesmo estando mortos?"

Hapatra sorriu.

Ela indicou o monumento em frente a elas. "Enquanto o corpo existir, a alma também existirá após a vida. Nós preservamos os corpos que ficam para trás e, como nosso dever mortal é o treinamento para as Provas, encantamos os receptáculos para agirem em serviço da humanidade."

Nissa se sentia desconfortável com aquilo. As catacumbas que Amonkhet mostrou eram locais de permanência; tudo que foi enviado para lá deveria ter sido guardado em segurança. No entanto, Hapatra falava como se as múmias sempre tivessem sido servos . . .

A vizira transferiu distraidamente a mascote para a outra mão. "Estas múmias estão seguras dentro do Hekma. Nós cuidamos delas, e elas ganharam um propósito com o trabalho. A almas que elas abrigaram não terão um destino tão triunfante como as que aguardam aqueles que completam as Cinco Provas, mas isso ainda é melhor do que ter o receptáculo apodrecendo do lado de fora do Hekma. Quando o corpo apodrece, não há existência. Não há nada pior do que aquilo."

"E as Provas?" Nissa perguntou. Para um tema tão onipresente, ela se sentia frustrada por compartilharem tão pouca informação abertamente.

Hapatra cerrou as sobrancelhas. "Os deuses não contaram a vocês sobre as Provas?"

"Eu não sabia que eles falariam com a gente", disse Chandra, francamente.

Hapatra pareceu entristecida ao saber.

"Os deuses sempre ajudarão aqueles que pedem auxílio."

Nissa sentiu o coração apertar um pouco. Ela nunca pensou que precisaria de deuses, mas a pena nos olhos de Hapatra fez com que ela se perguntasse o que estaria perdendo.

"Nossas cinco divindades são gentis e benevolentes", continuou Hapatra. "Tenho certeza de que estenderão os ensinamentos deles a vocês".

"O que o seu te ensinou?" Chandra perguntou.

"Rhonas me ensinou que eu sou apenas tão forte quanto a comunidade que cuido. E como preparar veneno." Hapatra abriu um sorriso travesso.

Nissa ainda não sabia o que achar de Hapatra, mas notou que Chandra sorria abertamente para a vizira. Hapatra parecia contente em falar.

"Ainda há tempo de vocês se alistarem para as Provas. O retorno do Deus-Faraó acontecerá dentro de alguns dias", ela disse, olhando para o sol menor, que beijava a ponta dos chifres no horizonte, "Mas se preferirem evitar o tumulto, poderão esperar até as Horas."

Nissa de repente se lembrou dos gritos da mulher na multidão. Libertem-se! Não acreditem na mentira sobre as Horas!

"O que são as Horas?" Nissa perguntou. Ela sentiu Chandra se afastando sutilmente da conversa. Ela deve ter sentido que Nissa assumiria o questionamento.

"As Horas após o retorno do Deus-Faraó. O momento pelo qual esperamos por toda nossa história."

Sons de alarme soaram na cabeça de Nissa. "E quando as Horas ocorrerão?"

Hapatra apontou para os imensos chifres ao longe. "As Horas terão início quando o sol repousar entre os chifres. Calculo que poderá ser a qualquer dia."

Nissa sentiu sua calma indo por água abaixo.

Chandra olhou para ela com uma expressão exagerada de falsa surpresa. "Ouviu só, Nissa? O Deus-Faraó poderá voltar a qualquer dia! O que acha?"

Hapatra assentiu com a cabeça. "O que mais admiro em nossos deuses é que eles mantêm o que prometem. Vocês deveriam falar com um deles—Kefnet gosta de responder perguntas."

Nissa estava com dificuldades para disfarçar o medo. Qualquer dia? A qualquer dia poderemos lutar com um dragão sem termos bolado plano algum?

Chandra fez uma breve reverência com a cabeça. "Obrigada, Hapatra. A gente já vai indo."

"Sem problemas. Venham me visitar no Monumento de Rhonas se quiserem uma aula rápida para fazer veneno. É sempre um prazer compartilhar meus conhecimentos."

"Desde que o veneno não seja pra gente!" Chandra disse com um falso sorriso.

Hapatra gargalhou com um certo excesso de franqueza. Nissa queria ir embora.

"Foi um prazer conhecê-la, Chandra! Compitam com coragem!" Hapatra acenou se despedindo e subiu as escadas do monumento.

Chandra voltou automaticamente a ajustar uma de suas fivelas. "Ela é bem interessante. O que você achou dela?"

Nissa não sabia como expressar o que havia sentido. Em vez disso, emitiu um queixume evasivo e copiou um gesto que viu Liliana fazendo uma vez.

Chandra bufou. "A piada da laringite foi terrível."

Nissa se sentou em um dos degraus do monumento.

"Dois dias."

Isso aí. Dois dias."

Nissa balançou a cabeça. "Essas confiam cegamente nos deuses", ela pensou, "e confiam no que eles dizem. Obviamente, eles acreditam que o Deus-Faraó é confiável, se os próprios deuses dizem isso."

"O que ela disse sobre as Horas me lembrou daquela mulher gritando ontem", Chandra disse, sentando ao lado dela.

"Eu pensei o mesmo. Precisamos encontrá-la logo."

"Você pode sentir onde ela está?"

Nissa respirou fundo para se preparar. Ela fechou os olhos e se concentrou. Desta vez, ela sentiu como se estivesse mergulhando a mão em um monte de lama.

A elfa estremeceu de desconforto, mas sentiu o impulso de energia da mulher através do que havia sobrado das linhas de força.

Nissa se arrastou de volta à superfície de percepção, arfando com o esforço. Chandra a observava com preocupação.

"Conseguiu alguma coisa?"

Nissa fez que sim com a cabeça e apontou. "Ela está perto deste monumento", ela disse, respirando ofegante.

As duas se levantaram, uma delas com as pernas tremendo, e começaram a andar em torno da estrutura. A caminhada levou vários minutos, e à medida que elas rodeavam o monumento, as características arquitetônicas ao redor delas começaram a mudar. Essas construções eram muito mais antigas que as demais no resto da cidade e eram mais sujas que as pedras calcárias brilhantes do centro de Naktamun.

Nissa mergulhou na lama novamente e sentiu o impulso levando-a por um beco estreito entre o monumento e a segunda estrutura.

As duas entraram no beco, e a faixa de céu azul acima delas se estreitou.

Nissa e Chandra seguiram em frente. Os muros eram bem antigos, com palavras entalhadas há muito tempo. No fim do beco, havia uma série de caixas grandes, de formato estranho, encostadas no muro.

Chandra deslizou as mãos pelos entalhes, e os dedos dela percorreram um pictoglifo dos já familiares chifres de Nicol Bolas.

Nissa sentiu que havia algo errado . . . algo que a fazia lembrar da visão que ela teve naquela manhã.

Ela deslizou os dedos pelos glifos no muro. Eles pareciam contar uma história através das imagens; vida em família, bebês com suas mães, avós sentados ao redor de uma lareira, uma mulher idosa apoiada em uma bengala. O que deveria ser um ciclo normal das gerações era anacrônico na cidade de Naktamun. Acima dos entalhes de pessoas havia o panteão de Amonkhet. Oito deuses com cabeças de animais, todos gentis e benevolentes... mamíferos, pássaros, répteis—oito?

Um entalhe mais recente acima de todos os outros trazia os onipresentes chifres.

O coração de Nissa estava acelerado. A pedra com os chifres entalhados estava desgastada, mas sem a sujeira antiga dos outros glifos.

Se o dragão tinha criado esse mundo, o símbolo dele não precisaria ser adicionado depois.

As mãos de Nissa tremiam de fúria. Nicol Bolas não criou esse mundo, ela percebeu, ele o corrompeu. Lembranças dos Eldrazi se espalhavam pela mente dela. Ervas daninhas cancerosas, alienígenas, envenenando um mundo que não era delas. Nicol Bolas não criou esse lugar nem a religião local. Ele não criou uma cultura baseada nele, ele a dominou, perverteu, pegou o que quis e arruinou o que não lhe interessava.

Impulsivamente, ela buscou nos sentidos algo que não estava lá e recuou com uma dor nauseante. Aquele mundo estava agonizando há apenas algumas décadas.

"Chandra?", ela murmurou nervosa.

Chandra estava mais à frente no beco, se aproximando das estranhas caixas grandes encostadas no muro. Eram um pouco mais altas que ela, arredondadas com curvas sutis e entalhadas com um intricado rosto. As cores estavam velhas e desgastadas, mas ela pôde discernir um rosto pintado em cada uma delas.

Art by Mark Poole
Arte de Mark Poole

"Chandra, o que são essas caixas?"

"Não sei . . ."

Chandra estava diante de uma delas, face a face. Ela ergueu uma mão para tocar o rosto pintado na caixa—

"O que vocês estão fazendo aí?"

Gideon estava parado na entrada do beco. Ele tinha um adorno com glifos pendurado no pescoço e parecia preocupado.

Nissa se afastou do muro, com os lábios tremendo. Chandra saiu de perto das caixas e começou a caminhar em direção ao Gideon.

"Achamos essas caixas— "

"Sarcófagos."

O medo no coração de Nissa desapareceu naquele instante. O estômago dela se acalmou, e ela sentiu como se uma brisa fresca tivesse passado por ali. Oketra surgiu dobrando a esquina do beco. Ela era mais alta que os muros, e o delicioso silêncio que a deusa trazia apaziguou os nervos de Nissa. Ela olhou nos olhos da elfa.

A deusa ficou imóvel. Nissa ouviu uma voz soprando em sua mente, Você falou com este lugar, Nissa Despertadora do Mundo? A voz era suave como trigo e vigorosa como uma flor do deserto. Nissa estremeceu. Ela nunca havia falado com uma divindade.

Sim, ela respondeu, seu mundo está morrendo e está com medo.

Oketra não disse nada, mas Nissa viu as orelhas de gato se retraindo em um breve momento de medo inconsciente.

O diálogo havia terminado rapidamente. Nissa recuperou o fôlego sem perceber que estava prendendo a respiração.

"Não é permitido se aproximar destes sarcófagos," disse Oketra em voz alta. "Sinto muito, viajantes, mas devo pedir que se afastem deles."

Gideon se aproximou com um olhar apologético e falou diretamente com as amigas. "Teremos menos problemas se tentarmos não violar as regras locais. Por favor."

Ele falou com franqueza. Nissa percebeu o quanto esse lugar e seus deuses deveriam ser importantes para ele.

"Agradeço a compreensão de vocês, viajantes", continuou Oketra. "Não tenho como expressar minha gratidão pela cooperação de vocês."

Nissa se sentia incrivelmente tranquila na presença da deusa. Ela notou que o adorno pendurado no pescoço de Oketra era diferente dos adornos dos acólitos. Ela devia estar aqui quando o dragão chegou.

O que houve com os outros três? Nissa se projetou para a deusa e tocou o panteão entalhado no muro. Oketra virou a cabeça suavemente e olhou através de Nissa.

Não me lembro de antes.

Antes do quê?

. . . Não sei.

A voz de Gideon interrompeu a conversa silenciosa, "Quando eu voltar, também vou agradecer os outros pela compreensão."

Oketra se ergueu, abstraindo alguma preocupação privada. Ela abaixou a cabeça e olhou para o Gideon. "Venha, Campeão. É hora da sua próxima Prova."

Chandra foi mais rápida que Nissa. "Você tá competindo nas Provas?"

"Sim", respondeu Gideon. A deusa se virou para partir, enquanto Gideon ficou para trás.

"Por quê?" Chandra perguntou preocupada.

Gideon respirou fundo, já esperando uma discussão. "Esses deuses têm boas intenções. Quero provar meu valor a eles."

Chandra cruzou os braços. "Isso é ridículo. Todo esse mundo cheira a problemas. Bolas criou esses deuses, por que você ousaria confiar neles?"

"Eu sabia que você não iria entender—"

"Eu entendi perfeitamente!"

"Isso é importante pra mim, Chandra, e eu sei que esses deuses são diferentes!"

Nissa sabia em seu âmago que ele estava certo.

Gideon se virou para ir embora. "Vejo vocês na estalagem."

Ele partiu atrás da deusa.

Chandra olhou para trás para os sarcófagos, desapontada.

"Não entendo. Ele tá tentando se infiltrar pra saber mais, entrando no jogo deles . . . ?"

"Ele está fazendo isso porque precisa", Nissa respondeu. "Ele tem motivos pessoais."

Todos nós estamos fazendo isso por motivos pessoais.

"Que idiota."

Os muros do beco pareciam se fechar sobre ela. Nissa saiu para respirar ar fresco. Sua cabeça doía e seu estômago se revirava de náusea novamente.

"Nissa, o que foi?"

"Chandra . . . Nicol Bolas não criou esse mundo. Ele o corrompeu."

Chandra parou onde estava. "Como você sabe disso?"

"Olhe essas construções. Todas que têm chifres são novinhas em folha. E nas partes antigas, todos os símbolos de Nicol Bolas foram entalhados depois. Se ele tivesse criado esse mundo, os símbolos dele seriam tão antigos quanto o resto dos glifos. Todos os edifícios com a marca dele são novos. Eu falei com o plano na noite passada, Chandra, e ele é antigo, mas a dor dele é recente. Nicol Bolas deve ter chegado há apenas algumas décadas.

O ar começou a esquentar ainda mais. Nissa se afastou da fúria crescente da amiga.

"Não há pessoas velhas aqui. Será que ele chegou e . . ." Ela se calou, incapaz de articular o destino que as duas já imaginavam.

Nissa não quis compartilhar a hipótese dela. "Quando eu falei com o plano ontem à noite, senti uma terrível cicatriz."

"A gente precisa saber o que ele fez . . ."

"Chandra . . ."

"A gente precisa descobrir o que ele mudou. Se ele invadiu esse lugar e se tornou um deus por algum motivo, a gente precisa descobrir o que ele fez quando chegou, pra que a gente possa reverter a situação."

Nissa cerrou os punhos com firmeza. "Não podemos mudar as coisas por conta própria. Isso nos igualaria a ele."

"Então o que a gente vai fazer?! Ele não tá aqui agora, como a gente pode ajudar essas pessoas?"

"Não parece que eles querem ajuda."

Chandra se calou e respirou fundo. Nissa esperou a amiga se acalmar.

"Ainda assim, a gente precisa saber de que forma ele mudou esse lugar." Chandra estava calma, mas decidida. "Se os deuses já existiam antes de ele chegar, então também foram vítimas. Preciso saber mais sobre aquela mulher de ontem e o que a deixou transtornada. Ela sabia algo sobre a verdade desse lugar. Ela sim precisa de ajuda."

"Quero falar com Kefnet. Se existe alguém que pode me ajudar a entender esse mundo, esse alguém deve ser o Deus do Conhecimento."

Uma luz branca ofuscante. Três deuses esquecidos e cinco memórias alteradas—

Nissa esfregou as têmporas. "Preciso descansar. Vamos voltar para a estalagem."

Elas voltaram a caminhar, Chandra fervendo de raiva, e Nissa absorta em pensamentos.

Uma cerimônia para elite se transformou em uma pena perpétua e obrigatória. Milhares de crianças órfãs deram origem a três gerações de pessoas sem passado. Ele veio e assassinou, mas não permaneceu, deixando toda uma cultura com apenas um esboço rudimentar do que existia antes—

As duas chegaram em segurança na estalagem. Chandra foi se sentar em silêncio no pátio, e Nissa foi para a cama. Ao adormecer, sua mente foi assombrada pelos gemidos de um plano agonizante e as gargalhadas de um dragão distante.


Amonkhet Story Archive
Perfil de Planeswalker: Chandra Nalaar
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Perfil de Planeswalker: Nissa Revane
Perfil de Planeswalker: Jace Beleren
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Perfil do plano: Amonkhet