Ousadia
História anterior: A Mão que Move
As Sentinelas vieram para Amonkhet para desvendar os planos do maligno dragão Planeswalker, Nicol Bolas. O grupo acabou encontrando uma próspera civilização no ápice de seu desenvolvimento e protegida por deuses benevolentes. A presença das divindades despertou a curiosidade de Gideon Jura e prendeu sua atenção, apesar de ele ter muitas perguntas sobre aquele mundo.
Eu caminhava em silêncio, seguindo os passos de Oketra. A deusa planava à frente, com pés que mal encostavam na estrada de pedra calcária e uma aura de calma que emanava de sua presença em ondas quase palpáveis. A luz inclemente dos dois sóis acima fazia brilhar as pontas de suas orelhas de gato e refletia em pontos dançantes de um brilho suave que cintilavam ao seu redor, rebatendo nos edifícios reluzentes e monumentos triunfantes que formavam Nactamon.
As pessoas se viraram enquanto passávamos, sentindo a presença de Oketra antes mesmo de vê-la. Eu assistia maravilhado as pessoas acenando com a cabeça e sorrindo em deferência, e prendi o fôlego vendo-a saudando-as de volta, rodeada de murmúrios e burburinhos tão baixos que só podiam ser compreendidos pelos destinatários intencionais. A multidão não sentia rejeição ou medo diante de uma presença tão poderosa. Ela falava com as pessoas, e seu olhar era penetrante e acolhedor, transmitindo confiança e encorajamento.
Uma criança correu até ela e tocou timidamente sua túnica. A deusa parou e se curvou como um junco ao vento para passar um dedo gigante pelo cabelo escuro do menino. Eu o observei murmurando algo, com o rosto quase enfiado entre os panos da roupa dela, e uma expressão de preocupação ou medo franzindo suas sobrancelhas. Oketra sorriu, radiante e gentil. O menino olhou para cima, e seus olhos se encontraram com os dela. O medo da criança se dissipou e foi substituído por um sorrido e um aceno de cabeça determinado. O pequeno se afastou e correu de volta para os amigos, e as palavras que ele disse causaram um alvoroço de abraços e tapinhas nas costas.
É assim que deve ser.
No entanto, a desconfiança de Chandra e a curiosidade de Nissa arranhavam meu subconsciente. Elas tinham motivo para serem cautelosas. Este mundo pertencia a Nicol Bolas, e apesar da atual ausência do dragão, a presença dele reinava acima de tudo. Eu olhei de relance para os imensos chifres ao longe, visíveis através dos edifícios mais próximos, uma silhueta desfigurando o horizonte. Ouvi trechos de conversas enquanto seguia Oketra e menções ocasionais ao Deus-Faraó—”Que ele retorne prontamente e que sejamos considerados dignos”—flutuavam pelo ar. A cidade toda tinha uma rigidez e uma estrutura que eram ao mesmo tempo impressionantes e perturbadoras, uma confluência de conquista e glória em contraste com uma constante sensação de artificialidade e desconforto.
Mas também havia os deuses . . . Eu sacudi a cabeça. Minha mente está dando voltas.
Percebi que meus pensamentos estavam atrasando meus passos e olhei à frente. Oketra interrompeu os passos, olhando para trás. Eu apressei os meus para alcançá-la. Um peso estranho batia contra meu peito enquanto eu corria, e minha mão tocou a cártula dourada e azul pendurada no meu pescoço. O primeiro passo na sua jornada pelas Provas, Oketra me havia dito.
Viramos uma esquina, e eu me vi diante de uma grande praça repleta de pessoas. Homens e mulheres, avianos e chacais, assim como alguns naga e minotauros, todos banqueteando em longas mesas baixas, enquanto inúmeros ungidos passavam por eles, carregando grandes bandejas com pilhas vertiginosas das mais variadas comidas. Reparei que todos esses iniciados tinham cártulas com três segmentos.
Uma celebração, antes da próxima Prova.
Eu olhei para o alto, para Oketra, e os olhos azuis dela encontraram os meus.
“Estas safras estão se preparando para a Prova da Ambição.“ A deusa não piscava, mas seu olhar era tranquilizador, e não inquietante. “Se você realmente busca enfrentar as Provas, é aqui que deve começar.“
Eu fiz que sim com a cabeça. Oketra sorriu e retribuiu o aceno de cabeça, e nos viramos para os iniciados. Eles se deram conta da presença de Oketra e muitos se curvaram ou ajoelharam em reverência, sorrindo como se estivessem diante de um velho amigo. Um jovem se levantou de onde estava, olhando para ela, e sorriu ao se aproximar rapidamente de nós, respondendo ao chamado silencioso da deusa.
“Saudações, Quiteon! Sou Djeru, da safra Tah.” O jovem posicionou as mãos sobre meus ombros, me olhando diretamente nos olhos, com o rosto sorridente e iluminado, e me beijou nos dois lados da faces. Eu fiz o possível para retribuir a saudação.
“Pode me chamar de Gideon. Alguns acham mais fácil.”
Djeru se aproximou e cochichou no meu ouvido de forma conspiratória. “Mas qual é o nome no seu coração?”
Eu hesitei. “Há muito tempo tem sido Gideon.”
“E esta noite?”
O calor de Oketra irradiava ao meu redor, e eu franzi as sobrancelhas. “Disso já não tenho tanta certeza.”
Djeru riu. “Você é um enigma, então. Eu gosto de enigmas.”
Deixarei que você se prepare para a prova, Quiteon.
Eu olhei para cima, mas Oketra já havia partido. Djeru sacudiu a cabeça, com o sorriso mais amplo do que nunca. “Nunca irei me acostumar com a forma como Oketra se move. Um vulto dourado, um raio de sol do Deus-Faraó em pessoa—que ele retorne prontamente.”
“E que sejamos considerados dignos”, eu acrescentei, um pouco mais lento do que por reflexo. Mas Djeru não pareceu reparar, enquanto me conduzia para a celebração.
“Você deve ser realmente especial, se a própria Oketra o trouxe até aqui. O momento também é bastante fortuito! Ontem mesmo fomos subtraídos em um.” Um breve recuo da mão dele que segurava meu braço fez com que eu estudasse a expressão de Djeru, mas ele não revelou nada além de seu amplo sorriso. “Se você pretende enfrentar a Prova de Bontu conosco, talvez possa ajudar nossa safra a se reequilibrar.”
Sem aviso prévio, Djeru esticou a perna na minha frente, ainda com uma mão segurando meu braço, e me empurrando com a outra. Eu tropecei, mas me levantei por reflexo, libertando meu braço e empurrando-o com a outra mão. Nós paramos e nos encaramos por alguns instantes. Ele ergueu uma mão e fez um gesto de chamado.
Um lento sorriso se espalhou pelo meu rosto.
Lutamos brevemente, trocando um turbilhão de golpes. Djeru, com força e foco camuflados por sua atitude jovial de antes, sem que eu esperasse, me derrubou de costas no chão com seu agarrão. O mesmo sorriso amplo voltou ao rosto de Djeru, e eu ri. Passei tempo demais golpeando e retalhando mecanotitãs e vormes de areia, e tempo de menos lutando corpo a corpo.
Djeru me ergueu de volta. “Você é bom. Poderia ser melhor. Venha.”
Djeru me acompanhou até a celebração, apontando para uma ampla variedade de carnes e outras comidas. Ele citou os diversos jogos realizados ali—mancala, senet, um jogo que levava o nome do deus Rhonas. Assisti aos iniciados se desafiando e torcendo, apostando um contra o outro nos jogos e iniciando ocasionais disputas amistosas. Eu me lembrei de Theros, meu lar, minha juventude. “Há um bom tempo eu não via uma celebração assim”, eu disse a Djeru.
Djeru assentiu com a cabeça. “É de fato um raro prazer. Enquanto os outros deuses nos mantêm em um treinamento praticamente constante para as Provas, Bontu diz apenas para ‘nos prepararmos’.” Ele me olhou nos olhos. “Mas, naturalmente, tudo na vida acaba sendo treino e preparação para as Provas e para o retorno do Deus-Faraó.”
“Que ele retorne prontamente”, eu murmurei.
“E que sejamos considerados dignos.” A seriedade de Djeru se dissipou. “Mas venha, amigo. Se você pretende se juntar à nossa safra, precisa conhecer os outros!”
E com isso, Djeru me levou até um pequeno grupo sentado ao redor de uma mesa baixa repleta de bandejas com frutas. Nomes foram ditos, mais rápido do que eu poderia me lembrar de todos eles—Neit, Dedi, e como aquela minotaura pronunciou o dela mesmo?—e logo Djeru conduziu o assunto para os eventos da Prova da Solidariedade e como cada pessoa na mesa contribuiu para o êxito do grupo. A velocidade de Setha e Basetha nos ajudou, quando eles avançaram pelo campo e recuperaram a flecha de Oketra, enquanto o resto da nossa safra defendia o obelisco.” Djeru apontou para os dois chacais sentados juntos, claramente gêmeos. Sorrisos afiados surgiram em meio ao pelo negro dos dois.
“Como a sua safra cumpriu a Prova?”, perguntou Kamat, uma naga, com a língua tremulando.
“Eu . . ." Algo me disse que a resposta “Eu não cumpri” não seria bem recebida. Eu olhei ao redor para os iniciados sentados. Todos usavam cártulas com três segmentos, cada uma com seu modelo próprio, mas com tamanhos e níveis de complexidade semelhantes.
“Não precisa responder.” Djeru veio ao meu auxílio. “Perdoe a falta de cerimônias de Kamat. O êxito de nossa safra às vezes nos faz esquecer que nem todos passam pelas Provas sem sofrer perdas. As palavras dela podem ferir tanto quanto suas lâminas em combate.”
“A menos que você seja uma hidra”, alguém murmurou, e todos caíram na gargalhada. Kamat fingiu que procurava o ofensor, e houve uma profusão de empurrões jocosos.
Eu olhei para Djeru. “Perdas.”
Djeru fez que sim com a cabeça, ainda sorrindo. “Várias outras safras foram reduzidas de forma significativa ao longo das Provas, e se juntaram a outras. Você não está sozinho, amigo. Mas nós de Tah fomos fortes o bastante para mantermos a mesma unidade desde o início. Com exceção, é claro, daquela que você irá substituir.” Djeru falava praticamente sem pausar, mas notei que o resto da safra evitou o olhar dele por alguns instantes.
“Naturalmente, esperamos saudar todos os nossos companheiros que partiram, quando forem restituídos no retorno do Deus-Faraó”, interveio uma mulher.
“Que ele retorne prontamente, e que sejamos considerados dignos!” O coro soou como um rugido do resto da safra.
“Kesi tem razão, é claro. Mas venha! Felizmente, estes tagarelas não são tudo o que temos para oferecer.” Djeru mais uma vez me conduziu para outra parte, e seus companheiros protestavam de brincadeira, enquanto atravessávamos a praça.
Minha mente trabalhava acelerada enquanto caminhávamos, tentando encaixar todas aquelas informações. Eu mesmo havia testemunhado os mortos voltando à vida naquele plano, mas a forma como Djeru falava do retorno deles soava diferente. Restituídos, ele disse. Será que era verdade—ou mesmo possível?
Djeru não me deixou focar nos meus pensamentos. Nos aproximamos de outro grupo de iniciados, um pouco mais afastados da multidão.
“Estes são Meris, Imi e Hepthys.” Djeru apontou para o trio. “E este aqui é o . . . Gideon. Ele se juntará à nossa safra para a Prova da Ambição.”
Os três acenaram com a cabeça, e mais uma vez não pude deixar de reparar no quanto todos os membros da safra pareciam jovens. Meris não poderia ter mais de dezesseis anos—no entanto, seus olhos escondiam algum segredo sorridente, como se ele tivesse mais idade e sabedoria do que aparentava. Senti algo agridoce e um tanto triste. Ao lado dele, Imi parecia realmente radiante, um pouco mais alta que Meris, com o cabelo escuro até a altura do ombro, em um corte que eu já havia visto em muitos outros, mas que de alguma forma parecia realçar a beleza ímpar daquela adolescente. Os dois estavam próximos um do outro e com as mãos dadas, o que respondia qualquer pergunta que suas trocas de olhares e sorrisos sutis poderiam ter deixado no ar. A expressão de Hepthys era mais difícil de interpretar—basicamente porque eu não tinha muita prática em ler expressões de avianos. Ele mantinha uma pose elegante, com as asas dobradas discretamente atrás dele.
“Meris é a principal razão do nosso êxito na Prova do Conhecimento.” Djeru gesticulava, efusivo, mas Meris já sacudia a cabeça negativamente.
“Nosso êxito só foi possível graças a Djeru e os demais, por me darem o tempo e o espaço que eu precisava para pensar”, ele disse.
Djeru sorriu e o cumprimentou com um leve soco amigável no ombro. “Nossa próxima Prova é a da Ambição, não da deferência, Meris. Nenhum de nós poderia ter desenredado a ilusão final com a mesma velocidade e segurança que você.”
Meris começou a responder, quando uma comoção atrás de nós atraiu toda nossa atenção.
Eu me virei e vi uma mulher levantando um minotauro acima da cabeça com um rugido e, em seguida, atirando-o no chão. Os iniciados reunidos em volta deles torciam e aplaudiam, alguns resmungando e entregando jóias e gemas para outros.
“E aquela é Tausret. Uma de nossas melhores guerreiras.” Djeru sorria orgulhoso enquanto a mulher circulava pela multidão, invocando outros adversários.
“Só você é mais forte”, Meris comentou. Djeru começou a argumentar, mas Meris o interrompeu. “Ambição, não deferência, Djeru.”
Djeru esboçou um sorriso forçado. Meris fez que sim com a cabeça, em silêncio. “Sim. Você, e talvez Samut.”
O grupo se calou de repente. Djeru abaixou a cabeça. Hepthys e Imi desviaram o olhar, com os corpos tensos em meio ao silêncio.
“Não devemos mencionar o nome dos que partiram.” Djeru encarou Meris, que, para minha surpresa, o encarou de volta.
“Eu mencionarei o nome dela por você. Se este iniciado irá substituir nossa irmã, ele deve saber a função que Samut desempenhava.” Meris fixou os olhos em mim. “Ele poderá substituir nossa corredora mais veloz, mais rápida até que os gêmeos chacais? Ele tem habilidades e força suficientes para estar à sua altura e derrotar uma mantícora praticamente sozinho, como Samut fez na Prova da Força—”
“Não devemos. Falar. Dos que partiram.” Em um instante, Djeru avançou contra Meris e agarrou a cártula dele, puxando-a para perto, com uma expressão de raiva. Imi, Hepthys e eu nos aproximamos para intervir, mas Meris ergueu uma mão, e os outros recuaram.
Eu escolhi cuidadosamente o que dizer. “Não pretendo substituir ninguém, Meris. E nem poderia. Só posso oferecer quem eu sou. E Djeru, lamento muito pela sua perda. Me parece que Meris lamenta a morte dela de uma forma diferente e precisa—”
“Oketra sugeriu que você se juntasse à nossa safra, Gideon, mas claramente não lhe contou sobre nossa circunstância.” Djeru me encarava com desconfiança nos olhos. Por fim, ele suspirou e largou a cártula de Meris. “Me desculpe, Meris. Deixei a raiva dominar meu bom senso. Você está certo, como costuma estar. Devemos dar algum contexto ao Gideon.”
Meris assentiu com a cabeça e voltou a olhar para mim, com seus olhos castanhos penetrando os meus. “Samut não está morta”, ele disse. “Ela se perdeu. Mas foi isso que ela escolheu.”
Minha expressão deve ter sido de pura confusão. “Ela é uma dissidente“, explicou Djeru. Os outros fecharam os olhos diante de tal palavra.
"Ah. Entendo”, eu disse, tentando acobertar o fato de que eu não havia entendido nada.
“Ainda me enoja dizer tão abertamente.” Djeru cuspiu, de cara fechada, e deu alguns passos, se afastando de nós.
“Não sabemos o que a fez cometer tamanha heresia.” Meris disse em voz baixa. “Mas foi isso. E portanto, ela foi removida. Isso não apenas enfraqueceu nossa safra de forma significativa, mas ela e Djeru eram amigos muito próximos, desde antes da Cerimônia de Medição, quando eram apenas crianças.”
Eu olhei para Meris, Imi e Hepthys. Vocês ainda são crianças.
“Djeru foi quem mais sofreu com a perda de Samut.” Imi se pronunciou, com uma voz suave e apaziguadora, como mel derretendo no calor. “A morte teria sido melhor—até mesmo uma morte desonrosa—pois não há lugar para os dissidentes após a vida.” Ela olhou para o segundo sol, mais baixo, pairando junto às grandes estátuas de chifres ao longe. “E já estamos tão próximos do glorioso momento. As Horas estão quase chegando.”
E foi aí que eu me lembrei. Uma jovem mulher, correndo e empurrando a todos pela frente em uma rua movimentada, gritando enquanto era perseguida por soldados. “Os deuses mentem! As horas são uma mentira!”
“Isso foi . . . recente, então.” Eu olhei para Imi, depois para Meris, que fez que sim com a cabeça. “Eu . . . eu acho que cheguei a vê-la.”
Djeru fez um gesto com a mão. “Já basta. Agora você sabe. Não vamos mais falar sobre isso.”
Eu comecei a contestar, quando um súbito silêncio se abateu sobre os iniciados. Uma longa sombra invadiu a praça, enquanto uma grande forma se aproximava de nós, rodeada por figuras cobertas de preto. O sol maior já estava se pondo, e eu forcei a vista para enxergar a silhueta escura aureolada pela luz vermelha do entardecer. Eu consegui identificar o que só podia ser outra divindade, com sua estatura imensa, corpo humano e cabeça de um grande e temível crocodilo, e os dentes afiados à mostra. Ela parou, estudando a todos diante dela, com um cajado em uma mão e uma túnica preta cobrindo sua forma imponente. A deusa se aproximou, e eu me senti banhado por uma aura divina. Contudo, o que eu sentia dentro do peito não era a ternura e a calma de Oketra, e sim uma explosão de orgulho e poder.
Eu percebi que nenhum dos iniciados inclinou a cabeça para saudá-la, como faziam com Oketra. Em vez disso, estufaram o peito, com os ombros para trás, orgulhosos e ávidos para encará-la. Ao meu lado, Hepthys agitava as penas. “Isso é . . . incomum”, ele murmurou. “Você se lembra da última vez que viu Bontu caminhando pelas ruas de Nactamon?”
Imi fez que não com a cabeça. “Deve ser porque as Horas estão chegando.”
Um estrondoso silvo ecoou, cada vez mais alto, até eu perceber que era a voz de Bontu, reverberando pela praça.
“Já é quase hora“, ela vocalizou. Todos os rostos na praça estavam voltados para ela. “Nem todos terão a chance de serem agraciados por mim. Quem merece competir na minha Prova?“
Uma explosão de vozes irrompeu dos iniciados reunidos, que gritavam afirmando o quanto eram dignos. O sorriso de Bontu se abriu.
“Somente os fortes triunfarão. Mas força se adquire.“ Seus olhos inspecionavam os ruidosos iniciados. “Ninguém nasce forte.“
Eu me senti subitamente destemido. Com o coração repleto de coragem, eu avancei adiante, gritando mais alto que a multidão. “Nem mesmo os deuses?”
As vozes foram se calando ao meu redor, dando lugar a um exclamações de surpresa e murmúrios. Senti que muitos me observavam, mas eu mantive meu olhar fixo nos olhos pequenos e brilhantes de Bontu. Sua grande cabeça se inclinou, e seus olhos piscaram para mim—uma pálpebra, depois a outra. Seus dentes de marfim surgiram, cada um do comprimento de um barco—e ela riu, um terrível assobio que ecoou nas minhas entranhas.
“Que ousadia.“
Ela se virou para falar a todos os iniciados na praça. “Até eu sou mais forte do que já fui“, ela vocalizou. “Porque assim desejei.“ As palavras dela eram respondidas por murmúrios de reverência e aceitação.
Bontu ergueu a mão, e um silêncio tomou conta da multidão quando ela apontou um dedo para mim.
“Quiteon Iora.“
Um calafrio percorreu minha espinha quando ela disse meu nome. A deusa manteve a mão suspensa na minha direção por um momento, depois, lentamente, seu dedo indicou todos os membros da safra de Djeru, e ela dizia o nome de cada membro que apontava. Quanto todos os vinte nomes foram pronunciados, ela abaixou a mão, sempre lentamente e cheia de propósito.
“Iniciados da safra Tah. Vocês serão os próximos a enfrentarem minha Prova.”
Com isso, Bontu se virou e partiu, com seus vizires planando ao lado dela, em um silêncio pétreo.
Eu deixei escapar um suspiro e percebi que estava prendendo a respiração. Os outros membros da safra de Djeru se aproximaram, aplaudindo e expressando agradecimento e admiração. Djeru veio para o meu lado, com um sorriso cauteloso no rosto.
“Parece que Oketra estava certa quando sugeriu que se juntasse a nós.” E com isso, ele pegou minha mão e a ergueu no ar. Ao meu redor, o clamor estrondoso de seus—dos meus—companheiros de safra ecoaram pela praça. Enquanto eles me conduziam para mais comida e bebidas, não pude deixar de notar as caretas e olhares de inveja dos outros iniciados.
A Prova da Ambição já começou, ao que parece. A sensação permaneceu pelo resto da noite, em meio à profusão de risos, contos e celebração, tudo sob o estranho e impossível brilho vermelho do segundo sol.
Quase não havíamos dormido. Naquela manhã, com o nascer do sol maior, os vizires de Bontu nos conduziram até o monumento da deusa—uma imensa pirâmide com a representação dela no lado de fora. No entanto, tive pouco tempo para admirar a arquitetura. Dentro do edifício, os vizires nos forneceram armas simples e nos levaram para as profundezas do monumento. Após uma série de corredores labirínticos e confusos, chegamos a um amplo aposento iluminado por uma estranha luz dourada que parecia sair do chão.
Os vizires explicaram que, para passarmos na Prova, teríamos que avançar pelo monumento até chegarmos ao ápice, onde a própria Bontu nos esperava—mas não por muito tempo. “Bontu não tem paciência com suplicantes ociosos”, um vizir nos disse, de forma fria e indiferente. Com isso, os vizires se foram pelo corredor que havia nos levado até ali, e uma parede de pedra começou a descer atrás deles. Se eu não tivesse visto a parede se fechando, nunca teria adivinhado que havia uma abertura ali.
Nos viramos e olhamos ao redor. Nosso primeiro obstáculo parecia claro o bastante. Uma grande piscina de imundície nos separava do corredor para sair do aposento. Os outros iniciados assumiram uma formação defensiva, enquanto Djeru e Meris procuravam alguma forma de atravessar o aposento. Em pouco tempo, Meris avistou uma manivela que assomava sobre a superfície, perto do centro da piscina.
"Dedi. Investigue”, disse Djeru. Sem hesitar, Dedi avançou adiante, tirou as sandálias e começou a caminhar pela água podre. Enquanto Dedi avançava, Djeru percebeu minha expressão indagadora. “Dedi é um dos mais altos de nós. E também é um dos mais fracos da safra”, ele explicou em voz baixa. “Esta é uma chance fácil para ele brilhar e provar seu valor”.
Acompanhamos Dedi se esforçando para chegar ao centro, com a imundície viscosa chegando até seu pescoço em algumas partes. Alguns da safra resmungavam sobre a lentidão enquanto esperávamos, mas Dedi conseguiu chegar até a manivela e começou a girá-la, fazendo uma ponte de correntes emergir do lodo. Alguns iniciados davam gritos de incentivo a Dedi, enquanto ele iniciava a travessia de volta até nós, e Djeru nos conduzia em direção à ponte.
Havíamos começado a atravessar quando os gritos de Dedi ecoaram pelo aposento.
Inicialmente, pensei que alguma criatura no lodo estava atacando Dedi, pois o líquido escuro começou a borbulhar e se agitar. Corremos pela ponte até ele, e dois iniciados se abaixaram para pegá-lo pelas mãos e erguê-lo, justamente no momento em que painéis ao longo das paredes se abriram, espirrando mais imundície para dentro do aposento. O nível da piscina subiu em uma velocidade anormal, e os dois iniciados que haviam se abaixado levantaram de volta, sacudindo as mãos como se estivessem queimadas, com violentas bolhas vermelhas nos braços onde haviam mergulhado no lodo. Assisti horrorizado ao Dedi esticando a mão em nossa direção, com pele e carne se descolando de seu braço, expondo os ossos. Os gritos de Dedi eram um misto de dor e espanto, e os outros já me empurravam para atravessar a ponte, enquanto mais imundície entornava para dentro do aposento, fazendo a piscina transbordar e começando a corroer as correntes da ponte. Pulamos a distância até o corredor bem a tempo da ponte se partir, com um lado caindo e derretendo no lodo. Eu caí rolando após saltar, e os gritos e súplicas de Dedi foram interrompidos subitamente por uma espessa porta de pedra que se fechou atrás de nós.
Eu parei, olhando para a porta de pedra, atordoado.
Dezenove.
Eu estiquei a mão para tocar na porta, mas fui interrompido por Djeru. “Vamos seguir em frente”, ele disse. O resto da safra já caminhava adiante pelo corredor estreito.
Eu o encarei. “Mas ele ainda estava vivo—”
“A ambição não recua”, Tausret grunhiu. “Você o desonra ao protelar.”
“Dedi teve uma morte gloriosa. Nós o agradeceremos pelo sacrifício quando o encontrarmos após a vida.” Djeru passou por mim bruscamente e, em questão de segundos, eu era o último em frente à porta.
Uma morte gloriosa? Eu cerrei os dentes. Nada sobre a morte de Dedi pareceu gloriosa.
Continuamos caminhando em silêncio. Caras fechadas, clima tenso. Eles nunca haviam perdido alguém nas Provas, eu me lembrei. No entanto, isso aconteceu aqui, no início da Prova, logo no primeiro obstáculo . . .
O que os deuses estavam testando? Por que Oketra me fez entrar nesta Prova?
Entramos em outro aposento amplo e baixo que se estendia por um bom comprimento. A sala era simples e vazia, exceto por uma estranha criatura escura agachada perto do centro. “Um ammit”, sussurrou Imi. Todos os outros empunharam suas armas rapidamente.
“O que é um ammit?” Eu perguntei. Djeru me olhou incrédulo.
“Um devorador de almas. Um demônio. Praticamente impossível de matar. Nossa melhor chance é se ele não notar nossa presença—”
Como se fosse combinado, a criatura levantou a cabeça e olhou para nós. De longe, parecia um enorme leão, mas sua cabeça tinha o focinho e a boca de um crocodilo. Ele também era três vezes maior do que qualquer leão de Bant. Dois olhos vermelhos brilhavam em seu imenso crânio enquanto ele se levantava.
Djeru praguejou, em seguida começou rapidamente a gritar ordens improvisadas. A razão da pressa logo se tornou clara quando o ammit avançou contra o grupo, se movendo em uma velocidade impressionante para uma criatura daquele tamanho. Nós nos espalhamos, e os arqueiros lançavam flechas enquanto o resto da safra corria pelo aposento.
Em vez de confrontar o monstro diretamente, avançamos para o outro lado em grupos de dois ou três, com diferentes equipes tentando distrair e confundir o ammit, enquanto outros corriam. Meris e Imi conseguiram passar, enquanto o ammit perseguia Neit e Tausret pela sala. Dois arqueiros desviaram a atenção da criatura para que a dupla perseguida tivesse tempo de virar para o outro lado e avançar até o corredor, que era a única saída visível. O ammit corria entre os grupos, incapaz de se decidir, confundido em meio ao caos.
Com um aceno, Djeru e eu começamos a correr para atravessar. Estávamos quase na saída, quando um horripilante som chamou minha atenção de volta para a sala. Uma das duplas havia sido encurralada, e com uma poderosa mordida, o ammit abocanhou uma iniciada. Os gritos dela ecoavam pelo aposento, seguidos pelo som úmido de sangue espirrando na pedra. O companheiro dela correu, abandonando a amiga.
Eu corri de volta em direção a eles, ignorando os protestos de Djeru atrás de mim. Outro grito ecoou e depois foi interrompido, quando o ammit engoliu a jovem, e o cheiro nauseante de sangue e vísceras se espalhou pelo recinto.
Dezoito.
Outros passavam por mim correndo, enquanto o ammit parecia totalmente concentrado em sua vítima, deixando os outros fugirem. Com um grito, eu avancei contra o demônio e o ataquei com as lâminas do meu sural. Para minha surpresa, as lâminas não o cortaram, batendo sem efeito no couro espesso e deixando apenas alguns arranhões em sua pele. A monstruosidade se virou e urrou para mim, com sangue e saliva pingando de sua mandíbula escancarada. Ele avançou contra mim com sua imensa garra, acertando meu peito. O impacto me jogou com força contra a parede. Eu retomei o equilíbrio, sacudindo a cabeça para me livrar das estrelas que piscavam à minha frente e do rosnado baixo do ammit, que pressionava meu crânio.
Ondas douradas de luz dançavam pelo meu corpo enquanto eu me concentrava na minha magia—e bem a tempo. O ammit atacou na velocidade de um raio, como um vulto. Levantei os braços, e os dentes da fera se chocaram contra eles. Fagulhas de luz dourada saíram dos meus escudos, quando ele fracassou em quebrá-los. Eu me posicionei e o empurrei, tentando jogá-lo contra a parede.
Ele não se moveu.
Eu o pressionava com toda as minhas forças, mas o ammit resistia—e começou a ganhar terreno. Meus pés escorregavam no chão de pedra lisa, sem conseguir se firmar, enquanto o ammit me empurrava para trás, com as mandíbulas cravadas no meu braço, em uma ferocidade implacável. Minha pele cintilava com a luz dourada que me protegia de ser perfurado pelos dentes da fera, mas eu não conseguia me libertar de suas mandíbulas monstruosas.
O pânico invadia meus pensamentos, e minha mente tentava desesperadamente bolar algum plano. Eu não seria capaz de sobrepujá-lo. Ele também não conseguiria penetrar minha proteção, mas eu havia acabado de vê-lo devorando uma pessoa em duas bocadas. Meu sural não iria ferir seu couro. Eu estava ficando sem opções. Meus pés escorregaram outra vez no chão, e o ammit sacudiu a cabeça, me lançando contra a parede. O som da pedra se partindo reverberou pela minha espinha, e outra vez o ammit se sacudiu, golpeando meu corpo contra a pedra, me deixando sem fôlego. Minha cabeça começou a girar, vertiginosamente. Eu apertei os dentes. Se eu não conseguisse me livrar das mandíbulas dele de alguma outra forma . . .
Um som forte de rangido atravessou o aposento, e uma rajada de vento golpeou o ammit. O monstro me soltou, mais pela surpresa do que pelo ataque, e eu rolei para trás. Quando fiquei de pé novamente, outra lufada passou por mim. Hepthys, que havia ficado por último, caminhava em nossa direção, murmurando outro feitiço.
"Corra! Agora!" Hepthys me encarava com um olhar assustador, enquanto enviava outra rajada de vento cortante. O ammit rugiu, indignado.
"Você não pode enfrentá-lo sozinho—" Meus protestos foram interrompidos pelo vulto escuro do ammit, que passou correndo por mim, em direção a Hepthys. O aviano abriu as asas e saltou no ar, esquivando-se do ammit, que passou por baixo dele.
"Vá logo, seu tolo!" Hepthys batia as asas com violência, voando mais alto. Eu me virei e corri em direção ao corredor do outro lado, passando pelo ammit, que também se virava para tentar atacar o aviano novamente.
Eu vislumbrei uma série de planos. Se o corredor fosse estreito demais para o ammit, Hepthys poderia simplesmente atravessar conosco e seguir para o próximo desafio. Caso contrário, eu poderia ficar para trás e—
Um grito de pássaro e o som de dentes rasgando carne interromperam meus pensamentos.
Eu me virei e vi o ammit caindo de uma altura impossível, após um salto alto o bastante para abocanhar uma das asas de Hepthys. Os dentes do monstro rasgaram ossos e tendões, e ele caiu, com um BUM estrondoso que fez tremer o chão, devorando seu prêmio em duas mordidas vorazes. Uma torrente de sangue já banhava o chão enquanto Hepthys tentou levantar voo novamente, depois voltou a cair no chão. O ammit se aproximou lentamente, saboreando a presa.
Dezessete.
Meus pés me levaram adiante por reflexo, pois minha mente havia congelado, paralisada de espanto. Nem sei dizer como consegui chegar ao corredor, junto aos outros, quase me chocando contra Djeru, que estava parado, com cerca de metade da safra, espreitando o que havia adiante, em uma escuridão quase total.
"Há pêndulos afiados à frente", Djeru disse, e pela primeira vez eu notei o estranho zunido. O corredor era escuro, sem nenhuma fonte de iluminação, mas com a luz ambiente do aposento atrás de nós, eu conseguia discernir vultos de algo que surgia em intervalos. Djeru balançou a cabeça. "O corredor fica estreito, e logo apenas um poderá atravessar de cada vez. Os primeiros já conseguiram passar, mas as lâminas ficam mais rápidas a cada pessoa que atravessa."
"Djeru. Perdemos Hephtys. Precisamos—"
Djeru agarrou meu braço, me interrompendo. "O que há com você?" A raiva desfigurou as feições dele, quebrando subitamente sua máscara de líder tranquilo. "Você perdeu sua safra inteira nas Provas anteriores e ainda assim trata cada morte gloriosa como se fosse uma tragédia. Suas tentativas de resgates heroicos apenas insultam e diminuem o sacrifício e a bravura dos nossos companheiros."
Eu me calei, atordoado. Tentei olhar para os outros iniciados em volta, mas as sombras no corredor ocultavam suas faces.
Djeru me empurrou e gritou uma lista de nomes, chamando membros da safra para seguirem em frente. Um por um, ele mandava os companheiros atravessarem o corredor. À medida que eles passavam correndo pelas lâminas móveis, percebi que eram chamados com base na velocidade. Nem Djeru nem aqueles que ele chamava hesitavam ou questionavam. O líder sabia de cor a habilidades de cada um.
Eu respirei fundo, tentando me acalmar.
Você é um estranho neste mundo, Gideon. As coisas são diferentes. A morte é diferente. Eu balancei a cabeça. Deixe seus julgamentos para trás.
Mas a imagem de Hepthys caindo passava repetidamente pela minha mente, na mesma cadência das lâminas móveis à frente.
Eu assisti aos iniciados passando correndo pelas lâminas. Em pouco tempo, restamos apenas eu, Djeru e os gêmeos chacais, Setha e Basetha. Estávamos parados, em silêncio, e o único som no corredor era o zunido incrivelmente veloz das lâminas.
. . .o único som. Eu percebi de repente que os ruídos do ammit haviam cessado. Eu me virei. A sala anterior estava vazia, exceto por algumas manchas de sangue pelo chão.
Djeru também percebeu. "Temos que ir. Agora." Ele acenou para mim, assim que o ammit surgiu, virando a curva do corredor rapidamente, se encolhendo para passar e rugindo em nossa direção. Os ombros dele já se apertavam contra as paredes de pedra do corredor, mas com algum esforço ele seguia adiante, abrindo e fechando a bocarra.
Seguindo o comando de Djeru, Basetha correu, seguida pelo irmão. Os dois avançaram bastante pelo corredor, até que o odor úmido e metálico de sangue chegou até nós, depois que uma das lâminas reduziu Setha a um monte escuro de vísceras.
Dezesseis.
Basetha continuou correndo, seja por bravura, ignorância ou pura força de vontade, e se juntou aos outros no fim do corredor. Mas agora as lâminas se moviam em velocidades impossíveis. Djeru sacou a espada khopesh, se agachando para tentar sua última defesa contra o ammit que se aproximava. Eu respirei fundo, enviando a luz dourada pelo meu corpo, e avancei em direção às lâminas.
A primeira se chocou contra mim, me jogando contra a parede. Fragmentos de pedra e estilhaços de lâminas voaram por toda parte. Djeru se abaixou e olhou na minha direção por uma fração de segundo, depois correu atrás de mim enquanto eu seguia em frente, e as mandíbulas do ammit se aproximavam cada vez mais. Quando chegamos ao final do corredor, eu sentia que meu corpo todo era um hematoma gigante, e Djeru sangrava dos cortes de estilhaços de metal partido. O resto da safra, como sempre, já havia sabiamente se afastado de nós, em direção à próxima sala.
Eu caí de joelhos, mas Djeru estava ao meu lado, me puxando para levantar e seguir em frente. Enquanto corríamos para o centro da câmara, Djeru falou, respirando ofegante.
"Nunca vi ninguém que fizesse algo assim, sendo mago ou guerreiro." Ele me olhou nos olhos, com uma sobrancelha erguida, cheio de suspeita.
"É uma dádiva e uma maldição." Memórias nefastas me assombraram. Djeru balançou a cabeça.
"Você continua sendo um enigma. Não sei mais se gosto desse enigma", ele disse.
Eu queria responder, mas Meris estava explicando ao resto da safra a descoberta que ele havia feito sobre a sala atual.
". . . preciso que quatro pessoas fiquem em cima destes pilares para abrir a porta principal." Meris apontou para os quatro pedestais ao redor. Depois ele balançou a cabeça. "Mas imagino que isso também faça surgir algo . . . desagradável. E provavelmente precisarão ficar nos pedestais para manter a porta aberta."
"O ammit está vindo e deve conseguir passar pelo corredor, já que o Gideon, ahn, desativou a armadilha das lâminas." Djeru olhou para mim e, em seguida, para a direção dos sons de rugido e arranhões do ammit, que estava cada vez mais perto.
Após um brevíssimo momento de hesitação, quatro iniciados seguiram para os pedestais. Mas Djeru agarrou a mão de uma companheira. "Masika. Preciso que você troque de lugar com Tausret."
As duas se entreolharam e concordaram com certa relutância. Tausret se juntou ao resto de nós, enquanto Masika caminhava para os pedestais.
"Por que fez isso?" Eu perguntei.
Djeru tinha uma expressão séria. "Tausret é uma das mais fortes que nos restaram. Não sei o que vem por aí, mas será mais fácil perder Masika do que Tausret"
"Me deixe ficar." Eu olhei para trás, para os quatro. "Eu poderia—"
"Onde está sua ambição?" Djeru cuspiu as palavras. "Você jogaria sua vida fora para prolongar a luta de três, abandonando o resto da sua safra, que precisará de você para ascender o mais alto possível?" Djeru me encarava com uma raiva crescente, vermelho de cólera. "Todos nós sabemos o preço das Provas, os limites e o potencial de nossas próprias habilidades, os pontos fortes e fracos de nossos irmãos e irmãs. Escalamos para conquistar a melhor posição após a vida. E certamente precisaremos de você nos desafios a seguir."
Djeru se virou para os quatros preparados para subir nos pedestais. "Irmãos e irmã. Nos vemos após a vida."
Os quatro se entreolharam e subiram nos pedestais ao mesmo tempo. Imediatamente, os pedestais começaram a afundar, e uma grande passagem no outro lado da sala se abriu. No entanto, outros imensos painéis ao longo das paredes também se abriam lentamente, revelando as sombras e formas de feras terríveis, que despertavam com o som das pedras se movendo. Atrás de nós, vi as mandíbulas abertas do ammit, que surgia no corredor, se arrastando para passar e, com isso, estalando e partindo as pedras das paredes.
O resto de nós correu para a saída. Ao atravessarmos para a câmara seguinte, nos viramos a tempo de ver os quatro descendo dos pedestais com as armas em punho. A imensa porta de pedra começou a se fechar no mesmo instante, eliminando minha tola e breve esperança de que eles talvez ainda pudessem se juntar a nós. Antes de perdê-los de vista, vimos o ammit avançando contra eles, além das formas sombrias de outras monstruosidades à espreita nos cantos da sala.
Todos nós paramos, recuperando o fôlego por alguns instantes.
Depois nos viramos e seguimos adiante.
Doze.
Horas depois, finalmente chegamos ao último andar da pirâmide. Era o maior e mais sublime aposento de todos eles. Cada parede dourada era iluminada por incontáveis braseiros de bronze. Bontu aguardava, sentada em um trono, na companhia dos vizires, olhando para nós do alto de uma série de degraus. Atrás dela, três grandes portas, com detalhes em metal e a escrita críptica de Amonkhet, brilhavam com a luz tremeluzente do fogo. Uma piscina de água transparente perto da entrada nos separava de onde Bontu estava sentada e trazia uma mórbida lembrança do primeiro desafio da Prova.
Éramos nove agora. Tantas salas, cada uma elaborada para deixar alguém para trás. Algumas delas conseguimos atravessar e vencer intactos. Mas na maioria das vezes, a sala nos vencia, subtraindo vidas, apesar dos nossos melhores esforços e habilidades. Agora que estávamos diante de Bontu, eu me sentia qualquer coisa, menos vitorioso. Meris vomitava, com os olhos vermelhos, sangrando de mordidas no braço. Na última sala, escaravelhos devoradores de carne surgiram das paredes, devorando Imi, que havia caído enquanto tentávamos subir uma parede impossivelmente alta até a saída. O braço dela foi arrancado quando Meris tentava libertá-la.
Djeru teve que carregá-lo para fora.
“Vocês me fizeram esperar”, sibilou Bontu, descontente.
Os suspiros de alívio foram interrompidos, e começamos a olhar ao redor da sala vazia. Cavaletes de armas, piscinas de água transparente. Olhando mais de perto, notei formas sinuosas e escuras se movendo no fundo. “Serpentes marinhas”, disse Kamat, seguindo meu olhar. “Venenosas.”
No fundo da piscina, também notei que uma ponte se estendia desde onde estávamos até o local ocupado por Bontu. No entanto, onde deveria haver uma plataforma, havia apenas uma balança. Após uma longa e dolorosa pausa, Djeru continuou. “Não completamos sua Prova, Grande Bontu? O que nos resta fazer para conquistarmos sua graça?”
O grande réptil piscou suas pálpebras duplas e apontou para as balanças. “Somente aqueles que pagarem meu tributo poderão passar.”
“Que tributo é esse?” Eu perguntei.
Os longos dentes de marfim apareceram. “Um coração.”
“De todos nós?” Djeru perguntou. “Podemos—”
“De cada um.”
Eu engoli em seco. Os membros da safra começaram a olhar uns para os outros. Eu vi mãos indo em direção às armas.
“Mas Bontu, certamente já sofremos muitas perdas para provarmos nosso valor“, eu disse.
Seus poderosos olhos se estreitaram. “As Horas se aproximam. Há muitos de vocês. Paguem o tributo ou fracassem e pereçam.“
Eu olhei para Bontu, atordoado. Há muitos de nós?
Um grito de susto ressoou atrás de mim. Eu me virei, horrorizado, e vi um iniciado cair com a adaga de Neit fincada nas costas.
Algumas retalhadas depois, Neit avançava em direção à balança, com as mãos ensanguentadas junto ao peito. Kamat deslizou na frente dela, golpeando-a com a cauda, e Neit caiu. Basetha correu enquanto Kamat e Neit lutavam, recolheu o prêmio caído e o posicionou apressadamente na balança. A ponte resplandecente se ergueu, permitindo que ela atravessasse as águas infestadas de serpentes. Eu a vi ajoelhando aos pés de Bontu e, após a deusa acenar com a cabeça, os vizires entregaram uma cártula à iniciada.
O aposento tinha um odor forte e desagradável de terra molhada.
Uma flecha voou na minha direção e se quebrou contra minha pele, que mais uma vez reluzia com o brilho dourado. Eu me virei a tempo de ver Tarik caindo e derrubando o arco, com a clava do minotauro Nassor cravada profundamente em seu crânio. Assim que Nassor sacou uma faca da cintura para reivindicar o prêmio, Neit se ergueu, com o escorregadio coração de Naga nas mãos.
Tudo isso aconteceu em silêncio. Sem gritos, sem ordens, apenas o ocasional ruído de metal contra metal, ou de lâmina afundando na carne. Cada luta terminava rapidamente, em um ou dois golpes—cada combatente conhecia todos os truques do outro.
Eu me mantive paralisado no centro do caos, sentindo uma ou outra onda de luz dourada vibrando pela minha pele.
Palavras abruptas quebraram o silêncio. Djeru e Meris se confrontavam, com armas nas mãos, como uma calma em meio à tempestade.
"Não matarei você", disse Meris. "Você é meu irmão." Ele riu. "Nem se eu pudesse . . ."
Djeru olhou ao redor. "Não posso proteger você dos outros."
Meris sorriu com tristeza. "A resposta é óbvia."
Djeru largou a arma, andou até Meris e abraçou o jovem. "Farei com que seja indolor, irmão."
Meris retribuiu o abraço. "Procure por mim no paraíso."
Os outros confrontos se aquietaram, à medida que os vitoriosos surgiam. Logo, todos os olhos se voltavam para a dupla. Djeru interrompeu o abraço, olhou nos olhos de Meris e sorriu.
Depois o empurrou na água.
Imediatamente, as formas escuras das serpentes venenosas se juntaram ao redor de Meris. Assim que ele retornou à superfície, Djeru se abaixou e o segurou embaixo d'água.
"Não!" Eu gritei, correndo em direção a eles. Dois iniciados, com as mãos ensanguentadas, agarraram meus braços, tentando me impedir. Eu os arrastei comigo, me esforçando para chegar até Djeru, até que senti toda minha energia sendo sugada dos meus membros. Olhei para cima, para o olhar infinito de Bontu, com as pupilas ovais fixadas em mim.
Assista, Quiteon Iora. Controle seu julgamento e aprenda.
Eu caí, sem forças, segurado pelos dois iniciados, assistindo impotente ao Djeru afogando o irmão. Percebi que ele murmurava algo enquanto Meris se debatia.
"Descanse, irmão, no frescor da água, na calma eterna da morte. Você chegou longe, e faço isso agora pra preservar seu corpo inteiro, ileso e imaculado, apenas calado temporariamente pelo veneno e pelo peso da água em seus pulmões. Que as Horas cheguem em breve, e que o retorno do Deus-Faraó reúna a todos nós após a vida."
A voz de Djeru enfraqueceu, assim que seu encantamento terminou e Meris parou de se debater. Eu caí de joelhos, e os dois iniciados me soltaram, movendo-se para coletar seus corações duramente conquistados.
Djeru puxou o corpo de Meris de dentro da água, respirando ofegante. "Os dignos aspiram pela grandeza", ele sussurrou. "A supremacia será recompensada após a vida." Ele cravou a faca no peito de Meris, cerrando os dentes.
Enquanto ele cortava, os demais vitoriosos seguiam em direção à balança, posicionando o pagamento no prato dourado. Djeru foi o último a fazer a travessia, com o coração de Meris nas mãos, pingando sangue. Ele cruzou a ponte, com o queixo erguido, tentando controlar o leve tremor em suas mãos. A ponte afundou suavemente na água quando ele chegou à deusa, ajoelhando para receber a cártula.
Eu borbulhava de raiva por dentro. Não de Djeru, ou dos outros, mas de Bontu, e de Oketra também. Eu me levantei, com os punhos cerrados.
"O que eu devo aprender com isso?" Eu urrei. Minha voz ecoou nos degraus de pedra fria. As chamas nos braseiros se agitaram, fazendo tremer as sombras nas paredes. Todos os olhos se voltaram para mim.
"É isso que você queria que eu visse? Você ordenando um massacre de inocentes? A que propósito essas mortes devem servir? Por que chamar essa loucura de fé e divindade?"
Eu ignorei os crescentes gritos de protestos dos vizires de Bontu e mergulhei na água. Enquanto eu nadava até a plataforma, as serpentes me rodearam, mas minha pele brilhou, dourada, e elas recuaram com as presas partidas. Eu me ergui e me coloquei diante da deusa, encarando-a de baixo para cima.
Os vizires de Bontu se aproximaram, com os braços erguidos em posições defensivas e magias dançando nas pontas dos dedos. Mas Bontu ergueu uma mão. Ela se inclinou para me observar, me cobrindo com a sombra de sua figura imensa. Eu ignorei as expressões de horror e repúdio dos membros restantes da safra.
"Você não pagou seu tributo", disse Bontu, com sua voz áspera.
"Aqui." Eu bati no peito com o punho fechado. "Venha pegá-lo."
Um longo silêncio.
Bontu riu, uma risada rasgada, um som sibilante que aumentava em um crescendo.
"A ousadia continua."
Ela ajeitou a postura.
"E ainda tão ignorante do nosso mundo."
Aquilo me surpreendeu. Bontu sabe que não sou de Amonkhet? . . . É claro. Ela é uma deusa. Mas talvez, com isso, ela também saiba que Nicol Bolas é—
"Suas palavras são as de um herege", disse Djeru. A voz dele tremia em um misto de raiva e angústia. "Você questiona nossa fé e nossos costumes—você não é melhor que Samut."
"Ele não é herege", silvou Bontu, "pois ainda há de encontrar a própria fé."
Eu estremeci.
"Você embarcou na minha Prova em busca de respostas, Quiteon Iora. Mas se esqueceu de fazer as perguntas certas."
Bontu se levantou do trono, com sua figura infinitamente mais alta que todos nós.
"Você viu outros de nós, o que exigimos." Outra risada sibilante escapou de sua bocarra cheia de presas. "Apenas excelência. Ambição de verdade. Contudo, em vez de compreensão, eu vejo apenas julgamento em seu coração."
Ela piscou lentamente seus olhos de réptil. Eu sentia que ela também sabia a verdade sobre mim. Eu busquei palavras para responder, mas em vez disso, me virei para os iniciados.
"Como podem não questionar? Questionar a necessidade de todas essas mortes infinitas? Questionar a promessa do seu Deus-Faraó? E se ele não for o que prometeu? E se—"
"Basta de heresias!" Djeru me interrompeu, sacando sua espada khopesh. Os outros iniciados se aproximaram, mas outra vez, a voz de Bontu nos deteve.
"Que ingenuidade."
Ela apontou um dedo para mim, e eu senti meu fôlego escapar dos meus pulmões. Eu buscava ar enquanto as palavras dela me transpassavam.
"Você busca apenas o que satisfaz sua noção de justiça. Suas ambições são um mero desagravo pelo seu orgulho arrogante no passado."
Ela me olhou com desdém.
"Superficial e egoísta."
Olhei para os outros iniciados e vi expressões endurecidas e acusadoras. Eu estava lá, paralisado e incapaz de respirar. A voz de Bontu ecoava na minha mente, mas ninguém mais ouvia.
Uma jornada tão longa pela fé, Quiteon Iora, e ainda assim você não aprendeu nada. É claro que eles questionam. A dúvida é a sombra necessária para a luz da fé, Quiteon. Quanto mais forte é a fé, mais profundas são as sombras da incerteza. No entanto, as ambições deles os impulsionam para brilhar mais forte, chegar mais longe, insatisfeitos com a complacência divina. Quando você poderá dizer o mesmo de si próprio?
A boca de crocodilo se curvou, formando um sorriso.
"Eles são meus, e eu sou do Deus-Faraó."
“Que ele retorne prontamente, e que sejamos considerados dignos!” Os iniciados e vizires gritaram em uníssono.
Bontu virou de costas para mim, e eu desabei no chão, tossindo, sentindo o ar retornando aos pulmões.
"Saia do meu templo."
O poder do comando vibrou por todo meu corpo, e eu me vi caminhando desimpedido, enquanto os outros abriam caminho para que eu passasse. Eu saí pelo portão inferior atrás do trono de Bontu, e tudo parecia imerso em uma névoa, até que eu estava do lado de fora outra vez, banhado pela luz vermelha do segundo sol. Eu olhei para cima. Ele parecia mais perto do que nunca de sua posição final entre os dois chifres.
E eu me senti ainda mais longe de compreender. Aquele mundo. Eu mesmo.
Qualquer coisa.
O som de passos arrastados chamou minha atenção. Uma fila de ungidos também saía do templo de Bontu, em uma procissão de mortos, agora envoltos em gaze branca. A percepção foi chegando aos poucos na minha mente.
Os ungidos são o que resta dos iniciados mortos em combate. As partes do corpo faltando. A servidão silenciosa. As cártulas diferentes que eles usavam.
Essa não-vida seria uma dádiva ou escravidão?
Os deuses são bons ou são apenas extensões corruptas de Nicol Bolas? A crueldade das Provas é a perversão sombria de um mundo? Ou será que a morte é realmente o máximo que se pode buscar em um mundo onde tudo termina em uma não-vida?
Acima de nós, o sol vermelho se encaminhava inevitavelmente para a chegada e o retorno de Nicol Bolas. O retorno do Deus-Faraó. O mantra ecoava na minha mente.
Que ele retorne prontamente, e que sejamos considerados dignos.
Eu cerrei os punhos. Arranquei a cártula do meu pescoço, derrubando-a no chão à minha frente.
Dignos para acabar com ele.
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