Conto anterior: Estranhos Conhecidos


Naiva agarrava-se em sua lança, apoiada sobre ela para não cair com todo o terror que sentia. O dragão gigantesco preenchia metade do céu, bloqueando as paredes da ravina. Ele flutuava sem fazer esforço, com uma expressão facial que parecia se divertir com sua tentativa patética de parecer corajosa.

“Pequenina, você não pode me desafiar, muito menos me derrotar. Mas com a minha ajuda, pode ser a senhora deste mundinho triste, e fazer o que quiser com ele. Só me diga onde Ugin está, e por que estes edros preencheram o lugar onde ele caiu.”

Sua garganta estava tão seca que as palavras saíram crocitadas. “Por que você odeia Ugin? É o seu irmão gêmeo.”

O grande dragão se retraiu, e um jato de fogo raivoso passou sobre a cabeça dela com um rugido. Fagulhas choveram sobre os edros que escondiam o esqueleto do Dragão Espírito, mas as chamas e cinzas brilhantes deslizaram sem causar danos na superfície dura.

“Ele não é meu irmão gêmeo. É só uma história que ele espalha, tentando roubar um pedaço das minhas glórias e triunfos.”

Naiva não ligava para Ugin; ela nunca o conhecera, e não conseguia imaginar um dragão amigo da humanidade, mesmo que pessoas como a Avó e o mestre de Tae Jin o chamassem de “a alma de Tarkir.” Ainda assim, uma semente de força se desfraldou em seu coração. De algum modo incrível, este poderoso dragão não sabia que o corpo de Ugin estava escondido sob os edros. Isso significava que ele não podia ver Baishya onde ela estava, dormindo em um transe desamparado. Pensar em sua irmã gêmea morrendo encheu seu coração com tal terror que também alimentou uma determinação feroz e imprudente. Pela primeira vez, sua lança era inútil. Ela tinha que achar outro caminho.

“Você é Nicol Bolas,” disse ela, tentando juntar as peças do que aprendera nas histórias e memórias.

Ele sorriu. “É claro que sou. Quem mais eu seria?”

Se ele era como as histórias diziam, ele conseguiria entrar na cabeça dela. Provavelmente ele já estava lá dentro. Depois que ele filtrasse os pensamentos dela, ele perceberia que Yasova Garra de Dragão estava bem à frente dele. Sua única esperança era mantê-lo distraído. Ugin não tinha dito para nunca o enraivecer? Se ele a matasse, pelo menos ela não poderia trair suas parentas queridas.

“Sim, ouvi falar de você. Eu sei tudo sobre você. Você é um mentiroso quando diz que não é gêmeo de Ugin. Vocês nasceram juntos e caíram juntos. Não é isso?”

Seu rugido sacudiu o ar. Rochas caíram das paredes da ravina, rolando e pulando até chocarem-se contra o casulo de edros, mas os edros se mantiveram firmes, pois eram mais fortes do que rochas.

“É claro que não é isso! Quem disse isso?” Ele se assomou acima dela, a sombra dele roubava o sol onde ela estava. Sua voz desceu de um trovão para um sussurro ameaçador. “Foi Ugin quem disse isso?”

Ela deu um passo involuntário na direção dos edros, colocando-se mais longe dos dentes dele. Não era curioso que a primeira reação dele não foi puni-la, mas sim evasivas defensivas? Talvez, se ela o mantivesse ocupado, ela poderia encontrar uma saída. “Se você e Ugin não são gêmeos, então o que vocês são?”

Ele inspirou com tanta força que a neve rodopiou de onde estava salpicando edros ao longe, girando como uma nevasca em torno dela. Sua voz retumbou sobre Naiva quando ele começou a falar.


Esta é a verdade - não que você consiga apreciar cada detalhe, já que obviamente foi criada com mentiras mascaradas de verdades.

Eu caí.

Ugin teria dito que caímos juntos, mas é apenas o jeito dele turvar as águas, contando meias-verdades que as pessoas confundem com a verdade.

Eu caí das asas do vazio. Cair foi minha primeira sensação: o rugido do vento contra minhas escamas; um lampejo do relâmpago que partia o ar; o estrondo do bater das asas do progenitor.

O trovão da passagem do progenitor me despertou do sonho de cair. Quando eu despertei com um pensamento consciente, eu soube de uma só vez com todo o entendimento de que meu destino não era cair, mas sim voar.

Abri minhas asas para capturar o ar. Ugin pode dizer que eu e ele estávamos entrelaçados como uma só criatura, nascidos juntos, caindo juntos, com mentes despertando juntas em curiosidades desconcertadas. Ele pode contar que quando percebemos que éramos seres — mentes — consciências — nós desfraldamos juntos. Voamos juntos.

Mas ele está errado.

Eu voei primeiro.

Eu respirei primeiro.

Eu vi a majestade do sol e o esplendor dos céus e compreendi a magnificência de minha mente naqueles primeiros instantes. E então eu reconheci a criatura enroscada que caía desamparada ao meu lado. É claro, meu primeiro instinto foi ajudar.

Usando a ponta de minha asa, dei uma batida em seu flanco e o acordei. Com meu incentivo, ele também desfraldou suas asas. Suas asas não eram tão poderosas quanto as minhas desde aquela época, quando não estávamos completamente crescidos. Deste modo ele descobriu como voar - eu diria mais, que eu ensinei a ele que é do voo que dragões são feitos.

Do voo, e de poder.

É claro, eu notei imediatamente que tínhamos irmãos e irmãs. A tempestade que rolava das asas assobradadas do progenitor passara, deixando-nos para trás em uma terra verdejante e silenciosa. Estávamos sozinhos, só nós seis.


“Seis?” Indagou Naiva. “Vocês não eram oito? Não houve dois que caíram sem despertar? Os corpos deles não se partiram contra a montanha?”

Uma de suas garras dianteiras bateu ao lado dela, e o impacto tirou o equilíbrio de Naiva. Seus joelhos bateram com força no chão. A dor lançou lágrimas nos olhos dela.

“Não me interrompa novamente!” Trovejou ele.

Enquanto ela se preparava para levantar e sua face estava brevemente oculta dos olhos dele, ela se permitiu um pequeníssimo sorriso. Como ele amava o som da própria voz! Talvez fosse possível distraí-lo afinal, igual a Avó escolhera distrair Atarka com a promessa de comida para salvar seu povo.


Caindo e voando, foi como tudo começou.

Voamos por pura alegria. Voamos em uma jornada de descobertas, afoitos para aprender mais sobre os padrões complicados dos terrenos e dos mares. Inicialmente, pensamos que eram seres vivos como nós, mas logo compreendemos que não era nada além da ordem natural das coisas. Voamos pelo que criaturas menores mediriam como anos. Foi nossa infância: os céus, o vento, o sol e as estrelas, e a canção que cantavam em sua gloriosa existência, um ambiente perfeito para criaturas tão esplêndidas quanto nós, dragões.

Enfim, apenas eu tive a coragem e a fome de ousar dobrar minhas asas, firmando minhas garras sobre o chão. É claro, esta decisão importante foi um presságio de tudo o que estava e ainda está por vir: minhas asas se estendem pelos céus, e minha presença, meu peso, meu tamanho, minhas garras - todas essas coisas me dão domínio sobre a terra e tudo o que vive sobre ela. Então chamei nosso lar de Dominária, pois eu reivindiquei sua canção para mim.

Naturalmente, humanoides instáveis e indóceis tiveram de ser domesticados e adaptados para viver em paz. Meu sucesso excepcional nestes esforços naturalmente trouxe a inveja entre meus irmãos e primos, mas seu ressentimento e falatório pelas minhas costas era facilmente resolvido com uma expressão de meu talento e sabedoria.

Mas nem tudo era triunfo naqueles dias. Infelizmente, Ugin não provou ser digno do desafio. Nos primeiros dias de minha luta, ele jurou ficar ao meu lado, mas na verdade ele não tinha estômago para o serviço.

Tínhamos que limpar um ninho de humanoides especialmente vis que encontraram por acaso uma dragoa ferida e moribunda, e reivindicaram sua morte. Uma sensação falsa de vitória fez com que arrogantemente caminhassem por aí como se tivessem obtido um banho de glórias. É claro que precisavam ser erradicados. Mas Ugin perdeu a paciência. Ele voou para longe de suas armas envenenadas, observando enquanto eu me arriscava altruisticamente para vingar a morte de nossa irmã. Até mesmo ele admitiria que isso era verdade. Ele deu desculpas evasivas, resmungou, tentou várias vezes me convencer a não tomar o controle de uma situação que logo ameaçaria a todos dragões em Dominária se deixássemos espalhar descontroladamente.

Até mesmo quando eu subjuguei nossos inimigos, ele me criticou pelos meus métodos, como se eu não tivesse escolhido o único caminho possível para acabar com a ameaça! Mas eu ouvi pacientemente a todas suas reclamações persuasivas. Algumas migalhas de sabedoria filtraram aqui e ali em suas palavras, e eu também as ouvi - pois não desejava nada além de trazer uma existência harmoniosa para todas as criaturas sencientes de Dominária. Tentei explicar como tudo funcionaria, mas ele ainda tinha medo.

E então, ele fugiu. Ele desapareceu, estando lá em um momento e com um piscar de olhos e um tremular no ar. . .SUMIU.

Que tristeza e pesar eu sofri com seu desaparecimento! Que uivo de desespero eu dei!

Aconteceu tão rápido que eu realmente pensei ter sido culpa minha. Pensei que não tivesse contado direito com o ódio e a astúcia dos humanoides sobreviventes. Me repreendi por ignorar o poder dos feiticeiros deles, pois era impossível para mim acreditar que meu caro Ugin fosse um covarde. A única explicação que fazia sentido era que uma magia poderosa o obliterara bem na frente dos meus olhos atônitos.

É claro que eu cacei todos os feiticeiros humanoides da região. Os persuadi a entregarem seus segredos. Matei os que se recusaram; quanto aos que cooperaram, eu aprendi com eles e os matei em seguida. Já que eu não podia mais confiar neles. Depois disso, eu sabiamente criei minhas próprias academias para treinar quem tinha magia em si, para que pudessem servir ao bem maior sob minha soberania.

Naturalmente meus irmãos e primos invejavam meu sucesso. Eu não queria conflito com eles — “viva e deixe viver” é uma bela frase, não é mesmo? — mas eu não tinha escolha além de proteger o meu povo.

Eu podia falar longamente sobre a guerra que os outros forçaram contra mim, mas isso me entediaria. É suficiente dizer que as guerras duraram muito tempo, muitas gerações, como vocês humanoides de vida curta mediriam o tempo. Um dia, quando finalmente consegui fazer o tirano Arcades bater em retirada, Ugin voltou. Ele voou para o meio de nossa batalha final, apartando a luta.

O choque de sua aparição me desmontou bastante.

“Que feitiçaria é esta?” Rugi eu. “Ugin está morto.”

“Não é feitiçaria. Você não me conhece, Nicol?”

Meus corações se encheram de alegria, e depois se apertaram furiosos. “É alguma magia maldita tecida por Arcades!”

Com um jato de fogo, tentei obliterar a miragem.

“Nicol! Pare! Sou eu, de verdade.”

No último momento, coloquei minha ira de lado para golpear o terreno e não lhe causar dano. E se fosse realmente ele?

“Você está morto. Eu vi você ser aniquilado por uma explosão vil de feitiçaria humana. Foi a vingança deles pela minha vitória, destruindo o que eu mais amo. Mas eu vinguei você, e me dediquei a fazer do mundo um lugar digno da sua visão de paz e harmonia.”

“É isto o que chama de paz e harmonia?”

Palavras típicas de Ugin! Ele sempre encontrava defeito em tudo o que eu fazia. Mas desta vez eu conseguiria impressioná-lo, e ele admitiria que eu estava certo, que eu o tinha superado.

“Vai ser. Venha ver o que eu realizei. Venha, Ugin.”

Agi como um guia e mostrei Dominária a ele, exibindo toda sua beleza e esplendor, todo seu poder e glória, pois ele sempre ficara perto de nossa montanha de nascimento e temia se aventurar para muito longe. Quando ele se cansou de voar, voltamos para pousar no pico da montanha de nascimento, agora coroada com chifres gêmeos em honra à supremacia da draconidade. Observei a paisagem de nosso alto poleiro, e Ugin estava em silêncio ao meu lado. Pensei que ele estivesse contente, assim como eu estava contente de tê-lo de volta ao meu lado. Mas na verdade, ele espumava de inveja, como eu descobriria em breve.

“É claro, você nunca suspeitava que o mundo era um lugar tão vasto, não é, Ugin? Viajei para todos os lugares, e nenhum lugar pequeno ou grande ficou sem que eu pousasse minhas garras. Ninguém ousa me chamar de “último” agora."

Ugin riu. “Você realmente acredita que esta conquista bélica mesquinha significa algo nos vastos confins do universo?”

Como doía em meus corações ouvir tal zombaria. É claro, eu queria ressaltar que ele esteve escondido durante este tempo todo em alguma espécie de santuário covarde, mas me controlei e tentei acalmar seu coração perturbado em vez disso.

“Você voltou apenas para me insultar? Pensei que fôssemos amigos melhores do que isso. Agora que você voltou, pode compartilhar dos meus triunfos, assim como sempre fizemos.”

“Não quero os seus restos, Nicol. Tenho meus próprios segredos, aprendidos aos pés de uma humana sábia.”

“Aquela humana velha foi vencida há muito pela morte, e sua sabedoria tagarelada não é nada além de poeira. Seus segredos eram como bolhas que estouravam quando você as tocava: belos visualmente, mas sem muita substância.”

“Você verá!” Ugin gritou, raivoso. Ele começou a tagarelar sobre planos de existência e caminhar entre os mundos. “Encontrarei o caminho, como ela me prometeu há tanto tempo, e então você vai ver. Vai se arrepender de pensar que é melhor do que eu.”

O vento uivou sobre a montanha, em uma tempestade retumbante. A neve caiu tão densa que a nevasca me obscureceu o campo de visão, e eu não conseguia enxergá-lo.

“Ugin?” Gritei eu.

Em um vento quente e ondulante, ele se foi.

Fugiu.

A paisagem feia de seus corações fora revelada. Ele não me abandonara antes, justo quando mais precisei dele? Agora ele voltara apenas para me provocar com a afeição que eu nutria por ele, e ele claramente não nutria por mim. Obviamente, ele o fizera porque estava com inveja de tudo o que eu havia conquistado. Da minha vasta esperteza e de minhas estratégias inteligentes. Da minha maestria de habilidades mágicas, que ele queria para si e que a velha o havia prometido, mas nunca entregara. Da minha miríade de súditos agradecidos e a promessa de um mundo sobre o qual eu logo seria soberano, senhor benevolente amado por todos, reverentes com minha majestade e poder.

Como ele ousa afirmar que é melhor do que eu? Como ele ousa pavonear a magia que se recusava a compartilhar? Ele não era ninguém, nada importante, fraco demais e covarde demais para lutar. Ele era o menor de nós dentre os dragões anciões, e não merecia realmente ser contado como um de nós. Provavelmente ele tinha esperanças de roubar minhas glórias e reivindicá-las para si. Não me admira ele estar bravo, reconhecendo que não tinha o dom ou a força para fazer o que eu consegui com tanta facilidade.

E mais afiadas do que o dente de um dragão, ainda assim as feridas de seus insultos foram profundas em meus corações.

Ele me abandonara novamente. Intencionalmente. Zombeteiro. Condescendente.

Eu, que queimava com o brilho e o calor de mil sóis, senti frio pela primeira vez, frio pela dor da rejeição. Ele retornara com o único propósito de repelir minhas ofertas de amizade, de jogar minha generosidade de volta na minha cara.

Alguém como ele não poderia sentir prazer na sorte de outrem, apenas ressentimento.

Alguém como ele não conseguiria sentir deleite ou satisfação nas conquistas ou sucessos de outrem, apenas amargura.

Alguém como ele só conseguia encontrar refúgio na inveja.

Na ira.

IRA

Como ele ousa ter o que eu não tinha!

Uma centelha incandescente se acendeu no fundo do meu peito, em um lampejo tão brilhante quanto o sol que chegou a me cegar. Uma escuridão impenetrável preencheu meu campo de visão. Aos tombos, eu caí completamente desorientado, até que com uma torção de distender as tripas, eu me endireitei.

E foi a tempo de me encontrar não no topo da montanha de nascimento, mas flutuando sobre uma região de águas sem limites, tão planas e imóveis quanto um espelho. Eu era a única coisa em movimento, e minhas asas faziam sombra na superfície do mar. Não havia sol neste lugar peculiar, apenas a água e muitas ilhotas escarpadas, e um sussurro constante de segredos logo além do meu alcance. Com uma leve vibração em meus ossos, eu suspeitei que este não era um plano de existência e sim algum tipo de construto artificial, feito por algum desconhecido que não deixou nem garra nem pegada para marcar sua autoria. Quem, ou o quê, possuía tanto poder? E por que fora abandonado?

Bolhas flutuaram pacificamente no céu, deslizando até tocarem minhas escamas e estourarem

Com cada estouro, um doce panorama se abria à minha frente por um momento de tirar o fôlego antes de desaparecer: outras terras, outros mundos, outros planos de existência.

Ah!

Com minha próxima respiração, eu compreendi o todo: Eu me tornara um planinauta.

Eu me tornara exatamente o que Ugin se vangloriara, a magia que ele queria para si mas não pôde obter.

Depois daquela primeira passagem inesperada, era fácil continuar, seguir por dentro e por fora da rede de ligações na escuridão coagulada à qual tudo está ligado. Eu caminhei de um mundo a outro, e a outro e a outro.

Que maravilhas estavam esperando além dos tesouros ínfimos de Dominária! Visitei uma centena de mundos, e depois outra centena. Ainda assim, neste tempo todo eu não encontrei traço de alguma outra criatura que conseguisse caminhar entre os mundos. Eu fui o primeiro entre todas as criaturas sencientes a descobrir a possibilidade de viajar entre os planos. Não me admira que a eternidade infinita tenha me recebido, tendo viajado sozinho por tanto tempo!

Ainda assim eu pensei em Ugin novamente; eu queria compartilhar esta glória com alguém, ou pelo menos perdoá-lo, ouvir dele como ele poderia ao menos reconhecer o quanto eu progredi.

Eu não sou uma criatura egoísta. Parecia grosseria esconder esta informação de Ugin, mesmo que ele nunca conseguisse duplicar a habilidade de transplanar que eu conquistei, pois na época eu ainda não compreendia como uma centelha nos separava como raros planinautas das outras vidas sapientes indignas, para quem mundos incontáveis ficarão fora do alcance para sempre.

Eu pensei nele. Acreditei que pudéssemos ser amigos, como éramos no início dos dias. Então, eu fui para casa.

É claro, bastante tempo se passara pelos meios que vocês humanoides calculam. A Dominária que eu deixei mudara, mal reconheci grandes áreas. Mudaram os cursos de rios; ilhas cederam; lagos secaram e mares se ergueram para inundar o que eram outrora praias habitáveis. Lá, eu descobri que as guerras entre os dragões anciões passaram há muito. Uma paz tênue havia tomado boa parte da terra. De todos os dragões anciões e seus filhos, apenas Chromium Rhuell, Arcades Sabboth, Palladia-Mors e aquela fera molesta chamada Vaevictis Asmadi sobreviveram. Rhuell caminhava pela terra disfarçado de observador prestativo, e todos valorizavam sua sabedoria e bondade, mas ele não era melhor do que nossos irmãos que saqueavam e reinavam, pois ele enfiava seu focinho onde queria, e quem dentre os humanoides conseguia lhe negar algo? Vaevictis ainda vagava com um fervor inquieto, pilhando e queimando como quisesse, às vezes trabalhando juntamente com Palladia-Mors, aquela criatura de temperamento asqueroso, mas mais frequentemente sozinho.

Ainda assim, eu busquei pelo mundo todo e não encontrei nenhum sinal de Ugin. Enfim, segui até o reino de Arcades, assim como Ugin e eu fizemos quando éramos filhotes.

Arcades me recebeu à sua típica maneira tendenciosa, perguntando-se onde eu estive escondido este tempo todo e me mostrando orgulhosamente o império que ele considerava meticulosamente regulamentado e magnificamente vasto. Mas eu sabia da verdade.

“Ugin? Eu sei que vocês eram especialmente próximos, do jeito que nasceram. Mas eu não o vejo desde os primeiros dias, quando vocês partiram para acabar com os matadores de dragões. Você nos disse que ele morreu.”

“Não foi isso o que eu disse,” corrigi. “Ele não estava nem um pouco morto. Ele estava apenas escondido. Ele voltou bem no clímax de nossa última batalha.”

Ele me observou com sua superioridade condescendente costumeira. “A batalha que você debandou e abandonou suas tropas? Eu os acolhi sob minhas asas. Ficaram gratos pela minha proteção, garanto a você.”

“Você não o viu, voando entre nossos exércitos?” Exigi saber, absolutamente assombrado por ele parecer tão desatento.

“Você estava fora de si naquele dia, Bolas. Sem dúvida você estava vendo coisas ilusórias. Você sempre sentiu culpa pela morte de Ugin, não é? Você se culpou por não o ter protegido? Ou você apenas se afastou e deixou que ele fosse morto por algum feitiço venenoso? Eu sempre me perguntei. Eu sempre suspeitei que você o invejasse, pois ele era mais inteligente e mais sábio do que você.”

Eu, invejar Ugin? Ridículo.

E então, eu compreendi: Arcades estava me aviltando, na esperança de deixar que meu temperamento tirasse o melhor de mim, como eu fazia quando era jovem e volátil. Mas eu era mais do que isto. Muito, muito mais. Eu era um planinauta, o primeiro e o único. Dominar Dominária é muito bom para um déspota de cabeça pequena como Arcades, enquanto eu havia crescido muito mais do que ele, tanto quanto ele era maior do que esses humanos fracos, patéticos e de vida curta.

Eu observei a graciosa arquitetura, as ruas melindrosamente organizadas e os distritos da cidade de onde ele presidia em um palácio construído sobre uma colina. E eu insinuei um verme de dúvida em sua mente arrogante: Talvez os humanoides que viviam aqui não merecessem tanto quanto ele pensava. Talvez eles na verdade não o respeitassem ou seguissem suas leis, mas apenas fingiam. Talvez estivessem tramando um golpe para derrubá-lo, pois ele não era nada mais que um tirano, mesmo que se achasse benevolente? Não seria isso o que seus súditos sussurravam, quando tinham certeza de que ele não poderia ouvi-los? Se ele enviasse agentes para cada canto do reino, eles poderiam enviar notícias e assim tirar instigadores do esconderijo. Ele podia oferecer recompensas para que as pessoas entreguem traidores, pagando bem pela bravura de entregar os seus. E se não fosse suficiente, ele poderia queimar distritos suspeitos, ou até mesmo cidades inteiras. Queime a todos. QUEIME A TODOS.

Com um último sorriso, eu me envolvi em magia e parti de Dominária. As dúvidas que eu plantei formariam raízes, ou mirrariam. De qualquer modo, Arcades não me incomodaria novamente. Ele nunca caminharia entre os planos. Ele não tinha o necessário. Apenas eu tinha.

Então você pode imaginar meu choque e alegria quando saí das eternidades cegas para o lugar que eu vim a chamar meu Plano de Meditação, e encontrei Ugin! Ele flutuava sobre as águas, encarando a si mesmo como se não imaginasse nada melhor para fazer do que olhar para o seu próprio reflexo.

“Ugin! Como você chegou aqui? Estou radiante em ver você, Irmão, pois temi ter perdido você para sempre.”

Mas ele não tinha palavra alguma para mim. Ele tinha apenas animosidade, temperada por sua raiva e inveja e ressentimento e amargura, pela memória de uma gargalhada zombeteira e condescendente. Pelo medo de que eu revelaria a verdade sobre as coisas que ele não queria que os outros soubessem, e que os outros acreditariam em mim, e não nele.

Ele atacou brutalmente, sem aviso, todo em fúria vil e ressentimento maligno. Eu não tive escolha senão me defender. Primeiro sobre as amplas águas do Plano de Meditação e depois em um caminho selvagem aos golpes através dos planos - nós lutamos por dias, anos, gerações. Batalhamos com garras e dentes e magia. A luta continuou furiosa por muito, pois ele era implacável, rejeitando todas as minhas tentativas de trégua. Tudo o que ele queria era me matar, pelo crime de caminhar entre os planos antes dele. Seus corações estavam corrompidos pela inveja do que eu não compartilhara com ele.

O que eu podia fazer? Não havia como aplacar sua ira.

Por fim, e por diversos caminhos, voltamos ao Plano de Meditação. Lá, puramente em autodefesa, eu o matei.

Com um baque poderoso, ele caiu nas águas calmas. O impacto ressoou como trovão. Ondas monstruosas se ergueram com o deslocamento, varrendo as ilhotas escarpadas, destruindo-as em seu caminho. As ondas seguiram e seguiram muito além dos limites do Plano de Meditação para a rede de conexões que liga os próprios planos, e talvez até para as eternidades cegas cujas profundezas não podem ser sondadas nem por dragões. As ondas transbordaram do Plano de Meditação bem como a morte de Ugin, como um peso largado sobre uma tigela de cerâmica, formando rachaduras.

A violência das ondas me varreu para longe do Plano de Meditação. Como uma lança, fui jogando por dez ou vinte ou cem planos de existência antes de cair duramente de volta em Dominária, no arquipélago de Madara, em uma época na qual as Guerras dos Dragões Anciões eram apenas lendas. Ferido e atordoado, tive dificuldades para recuperar minhas forças, mas me recuperei afinal. Havia muitas batalhas à minha frente, e eu as enfrentei com facilidade.

É claro, pequena Naiva, você deve estar interessada no longo curso de minha fascinante vida - e eu a regalaria com prazer com o todo agora que eu endireitei os fatos sobre as histórias falsas de Ugin. Mas eu sei que você acredita estar me distraindo de meu real propósito aqui.


Ela não conseguia mais ver o céu, apenas seus olhos estonteantes e a curva brilhante de seus chifres, com a joia em forma de ovo girando hipnotizante entre as pontas.

Seu sorriso mostrava dentes. Com uma mordida, ele podia engoli-la.

“Sempre me tira o incentivo,” disse ele, com uma voz bondosa, “como as pessoas pensam tão rapidamente que nós dragões gostamos de carne humana, quando na verdade não é nem um pouco do nosso gosto.”

A cabeça dele desceu mais. Ela deu mais um passo para trás mas não podia mais se mover, encurralada nos edros.

“O que você não compreende é que eu tenho todo o tempo dos mundos, enquanto o seu tempo está acabando rápido. Agora. Onde está Ugin?”

“Ugin está morto.”

“Então, assim acreditava eu quando o matei no Plano de Meditação. Eu parti, acreditando que ele estava morto. Foi o meu erro. Porque, de algum modo, ele não havia morrido. Ele me assombra desde então, recentemente com um estratagema mal concebido de me prender em Ixalan usando um artefato mágico.”

“Ixalan?” Ela disse a palavra com voz rouca - qualquer coisa para mantê-lo conversando.

“O nome não significa nada para você. É outro plano de existência. Um que você nunca verá em sua vidinha curta, bruta e imunda.”

Seus membros estavam frios e seu coração estava lento, como se o corpo dela tivesse decidido entrar em um colapso insensível ao invés de enfrentar o poder esmagador de Nicol Bolas, o maior inimigo de Ugin. Mas ela não se encolheria.

“Ugin está morto.” Ela forçou-se a dizer as palavras, com um sussurro bronco. “Seus ossos estão bem aqui. Embaixo dos edros.”

“Ah... Hmm.” O ronco de sua voz a enervava enquanto o olhar dele perscrutava a formação que saía de vista além da curva da ravina. “Seu corpo caiu e abriu esta ravina. Suponho que seja mesmo possível que seus ossos realmente estejam jazendo aqui.”

“Você não consegue ver os ossos?”

Ele bateu com a garra dianteira no chão, e o som ecoou pelas paredes da ravina. “Não me questione. É uma pena que os outros considerem você dispensável, não é mesmo?”

“Dispensável? Eles dependem de mim!”

“Você não pode ser tão ingênua, pequenina. Sua avó apenas a tolera porque ela vê sua utilidade ao proteger a neta que realmente importa, a que herdou os dons do xamanismo. Você não tem magia, tem?”

“Eu sou uma caçadora!”

“Sim, sim, você é caçadora. Todo mundo caça. Mas sua irmã é uma xamã. Não há nada pior do que descobrir que alguém que você ama se agarra a um dom e o nega a você. Que eles se recusam a compartilhar com você. Que você tem de servir os alcoviteiros e admirá-los, quando você é realmente quem vale. É você quem alimentará a tribo nos dias que virão. É você quem vai levar seu povo para as montanhas altas no verão, e para os vales no inverno. Você é a líder, carregando o fardo dessa irmã que você nunca pediu para ter, e nem queria. Eles continuam segurando seu sucesso por causa dela, fazendo com que você cuide dela, espere por ela, sem dar as responsabilidades de batedora e caçadora que você ganhou com a habilidade que tem. Não é justo mesmo. Se você estivesse livre dela, então finalmente poderia ter seu próprio caminho, não é? Você finalmente poderia se tornar a grande caçadora e líder que você merece ser. E eu posso ajudar você com isso, Naiva.”

As palavras dele, pronunciadas com um tom tão suave e persuasivo, se insinuaram para dentro do coração dela. O velho ressentimento se acendeu. Toda a irritação de anos abriu caminho até sua mente, latejando como uma dor de cabeça que apenas ele poderia sanar. Mas ela não podia confiar nele. Ela se segurou naquele pensamento que se esvanecia. “Como você pode me ajudar? Por que você me ajudaria?”

“Porque se eu não ajudar você, então serei forçado a destruir Tarkir. Não seria uma pena? Especialmente considerando que você é a única que pode impedir tal destruição.”

“Por que você destruiria Tarkir?” Sussurrou ela, rouca, tremendo de horror.

“Porque ele ama Tarkir. Mas principalmente porque não pode haver chance de ele renascer aqui.” Ele fez uma pausa e soprou uma brisa leve e quente, como magia, sobre a figura trêmula dela. “Não tema, Naiva. Eu não quero aniquilar este plano de existência, porque prefiro ajudar você. Juntos, vamos libertar Tarkir de todos seus inimigos, de todos os dragões e de todas as outras tribos. Você pode caçar pelo mundo todo sem ninguém para impedir o seu caminho. Realizarei tudo o que você sempre sonhou, pois tenho esse poder, e vou utilizá-lo para o seu benefício. Tudo o que você precisa fazer é me trazer Yasova. Agora.”

Agora. A palavra reverberava na cabeça dela. Era verdade, afinal. Baishya sempre fora um fardo mais pesado do que uma rede cheia de goblins mortos. Quando a Avó morrer, nenhum grupo familiar arriscaria acolher uma sussurrante jovem e sem experiência, cuja presença poderia resultar na morte de todos. Por que ela teria que desistir de tudo o que ela sempre quis apenas para proteger sua irmã? Os antigos meios de vida nunca pertenceram a Naiva. Eram apenas obstáculos no seu caminho.

“Ela está aqui. Bem aqui. Escondida.”

O sorriso dele preencheu o mundo inteiro. “Vá chamá-la. Então, receberá sua recompensa.”

Não havia futuro para ela se ela se agarrasse ao passado. Ela estava certa quando falou para Tae Jin que os meios de vida antigos eram um cadáver a ser consumido pelos abutres.

Ainda assim, quando ela pensou no jovem guerreiro lumespectro, em sua coragem e sacrifício, um arrepio passou por suas costas e rasgou suas certezas. O que Tae Jin diria quando soubesse que ela teria entregue a grande Yasova Garra de Dragão a Nicol Bolas?

“Pequena Naiva, você não pode pensar que eu quero ferir Yasova. Quero ajudar. Só isso. Agora, vá.” A voz dele endureceu. Uma pressão se formou na cabeça dela até ela pensar que o crânio dela explodiria. “Agora.”

Ajoelhando-se, ela puxou o fragmento de edro quebrado e engatinhou para dentro. Lá, nos confins turvos e abafados daquele espaço, Baishya ainda estava deitada como se dormisse, respirando profundamente. A Avó estava sentada com as pernas cruzadas em meditação, com os olhos fechados, a mão esquerda pousada sobre a coxa enquanto sua mão direita segurava os dedos de Baishya afetuosamente. O gesto mordeu um buraco de inveja no coração de Naiva. A Avó sempre preferiu Baishya. Ela a amava mais do que a Naiva.

Ela teria que arrastar o corpo da Avó para fora. Mas isso podia esperar. Puxando sua faca da bainha, ela pousou a lâmina sobre a garganta vulnerável de Baishya.


Coleção Básica 2019 Arquivo das Histórias
Perfil do Planeswalker: Nicol Bolas
Perfil do Planeswalker: Ugin, o Dragão Espírito
Perfil do Plano: Tarkir