História anterior: Renovação

Após decidirem que uma abordagem proativa seria o melhor a ser feito, a maioria das Sentinelas partem em busca de Nicol Bolas, em Amonkhet, para atacá-lo de frente antes que ele coloque mais um de seus planos em ação. Sem um plano e sem informações, cinco Planeswalkers partem para enfrentar um dragão ancestral em um plano misterioso e desconhecido.


Um vento escaldante dançava pelas dunas, com garras invisíveis riscando linhas crípticas na areia infinita. Ele salpicava poeira e brita pelo ar, aquecido pela fúria ardente dos dois sóis. Quando amanheceu, o primeiro sol iluminou seu caminho pelo céu, enquanto o segundo permaneceu fixo em seu lugar no horizonte. Abaixo, o vento percorria a vastidão do deserto, ganhando velocidade e violência, e logo tornando-se uma ruidosa tempestade de areia. De repente, seu uivo abafou todo o resto, e suas presas expostas desafiavam a areia cortante que rodopiava e chicoteava tudo pelo caminho. Ele mastigava afloramentos pedregosos, vestígios de monumentos naturais e artificiais, e devorava a carne de feras selvagens lentas demais para fugirem dele.

No alto de sua fúria, perto de seu tempestuoso coração selvagem, um súbito brilho cintilante, uma silhueta no ar, uma sombra ondulante, uma fagulha de chama e um vulto verde dançavam em meio à tempestade de areia. Lá estavam cinco figuras, onde momentos atrás nada existia, pegos de surpresa nas areias ofuscantes.

O vento continuava, ignorando a presença deles.

Arte de Noah Bradley
Arte de Noah Bradley

Antes, em Kaladesh . . .

JACE

Eu observei Ajani se afastando de nós, cobrindo o rosto com o capuz e sumindo em um clarão de luz. Minha mente tentou segui-lo brevemente, mas ele desapareceu do meu alcance, com seus pensamentos desvanecendo pelas impenetráveis Eternidades Cegas. Atrás de mim, Gideon pigarreou, e eu me virei para ele e acenei com a cabeça. "Essa é a hora".

"Vamos rápido, então", respondeu Gideon. "Você conhece mesmo o lugar onde devemos encontrá-lo depois, Liliana?"

Liliana ergueu uma sobrancelha e, com uma mão lânguida, ajeitou atrás da orelha uma mecha de cabelo que estava caída. "Meu caro Gideon, eu já havia viajado por incontáveis mundos no Multiverso ao longo dos séculos antes de você nascer. Conheço muitos lugares, e o local que Ajani falou eu conheço especialmente bem".

"Confiamos em você como guia, então. Tanto para Amonkhet como para o nosso encontro depois". Gideon exibiu uma duvidosa tentativa de sorriso para Liliana.

Liliana respondeu com uma exagerada reverência. "Fico lisonjeada e honrada com sua confiança".

Eu abaixei a cabeça. Ele está tentando, Liliana. Dê uma folga pro cara. Os olhos de Liliana se voltaram na minha direção, e ela piscou para mim. Eu resisti ao impulso de rolar os olhos.

"Qual é nosso plano quando chegarmos a Amonkhet?" A pergunta de Nissa quebrou o prolongado silêncio.

"Chegar, achar um dragão e fazer churrasco de dragão". Chandra se sentou na mureta à beira do telhado, ajustando as luvas. Gideon fechou a cara mas concordou.

"Mais ou menos. Liliana nos levará até lá. Vamos para Amonkhet e descobrimos o que pudermos sobre os planos de Nicol Bolas, depois neutralizamos a ameaça que ele representa, seja detendo os planos dele ou, se necessário, eliminando-o".

"Não espere que isso seja fácil", eu alertei. "Não sabemos se Tezzeret já o encontrou e o alertou sobre nós, ou o quanto ele sabe, ou se ele está preparado para possíveis ameaças interplanares—"

"Blá, blá, blá". Chandra fez um gesto com as mãos como se tentasse dispersar minhas palavras no ar. Ela saltou de onde estava e veio em nossa direção. "Estamos perdendo tempo e nossa chance de surpreendê-lo. Vamos lá".

Nós cinco nos juntamos em um círculo. Olhei para meus companheiros ao redor e, mais uma vez, me maravilhei com a excentricidade do nosso pequeno grupo. Enquanto isso, Ghirapur despertava lentamente, e os sons das ruas e dos habitantes abaixo aumentavam com o sol que se erguia. Mal sabiam eles que, logo acima, um soldado indestrutível, uma necromante, uma elfa druida, uma piromante e um mago mental se preparavam para explorar outro plano de existência.

Que amigos estranhos eu fui arrumar.

Um segundo pensamento brotou das profundezas da minha mente, mesmo eu tentando suprimi-lo.

Como é estranho ter amigos.

"Nos vemos em Amonkhet". Liliana começou a cintilar ao iniciar a travessia para o outro plano.

Eu vi os outros ao meu redor começando a sumir também, cada um de um jeito um pouco diferente. Sempre tive curiosidade para saber como outros magos lançam feitiços e sobretudo como atravessam planos. Talvez eu pergunte a eles quando tivermos algum tempo.

Seja lá quando for.

Eu ergui as mãos, me concentrei nos filamentos de mana invisíveis à minha volta, e os puxei suavemente.

O mundo de Kaladesh ficou embaçado e trêmulo, depois derreteu em borrões coloridos, semelhante a uma ilusão que se dissipa quando seus fios mágicos são desenredados. Eu senti a recém-familiar (mas sempre estranha) presença das Eternidades Cegas ao meu redor, o crepitar de energia e éter deixando um gosto de chuva fresca e eletricidade na minha boca. Viajamos infinitamente longe, contudo, a lugar nenhum, pois ficamos parados e ainda assim nos movemos em uma velocidade alucinante. O tempo, o espaço e as dimensões se dobravam e desdobravam, e eu continuei atrás de Liliana (ou debaixo dela... ou dentro?) ao longo da jornada pelo vazio entre os mundos, deixando para trás estranhos rastros e turbilhões invertidos de energia. Eu senti quando eles chegaram. Com um impulso final, as cores ao meu redor deslizaram de volta ao lugar, e o gosto elétrico de ilusões e sonhos se solidificaram em realidade.

Uma realidade escaldante e arenosa.

Eu tossi para cuspir o punhado de areia jogado na minha boca pelo vento. O calor me oprimia, como um peso sufocante e instantâneo sobre meus ombros. Um odor pungente de podridão penetrou minhas narinas e permaneceu lá, de forma que eu quase podia sentir o gosto dele. Apertei os olhos para enxergar além da areia ofuscante ao redor. Próximo de mim, Gideon tremeluzia com um brilho dourado, e a violenta tempestade de areia ativava os escudos mágicos dele ao chicoteá-lo. Nissa, arqueada e de cabeça baixa para proteger o rosto, tropeçava na areia. Até mesmo Liliana parecia um pouco enfraquecida, parada a alguns metros de mim, com a mão erguida para se proteger do vento implacável. Apenas Chandra parecia praticamente inabalável, com seu cabelo esvoaçante, coçando o ombro sob a armadura.

Não invejei aqueles de nós que usavam armadura de placa.

A areia entrava incessantemente pelas minhas botas e pelas aberturas da minha camisa, como que de propósito. Uma lufada súbita jogou minha capa sobre o meu rosto. Eu a afastei da melhor forma que pude, avançando em passos incertos pela duna. Gideon gritava algo sobre achar um abrigo. Em meio à tempestade, vi Nissa tentando lançar um feitiço. Tentei fazer o mesmo, buscando mana, e encontrei apenas o gosto seco de areia e dejetos na ponta dos meus dedos. Tudo levava a crer que não encontraríamos abrigo algum—

Um jorro de chama branca chamuscou a areia. Chandra seguiu adiante, concentrando o fogo na duna à frente. Eu dei um passo para trás, me afastando das ondas de calor cada vez maiores que emanavam dela e de seus alvos. "Deixa comigo!", ela gritou em meio ao estrondo da ventania.

CHANDRA

Poxa, quem poderia imaginar que Amonkhet não passa de um deserto insosso com apenas areia e sol? Bem, na verdade, sóis. São dois. Não é à toa que faz tanto calor. Bem, calor relativo, eu quero dizer, porque Kaladesh às vezes tem aquela umidade sufocante por toda parte, e nenhum lugar faz tanto calor como nos poços de lava de Regatha, mas é, aqui todo mundo parece que está virando pudim de arroz derretido nesse calor seco e arenoso. O que pode ser pior que isso?

Mas de fato, esse lugar tem mesmo cara de ser o lar de um dragão gigante do mal que envia servos malignos para destruir tudo o que há de bom nos outros mundos com a . . . perversidade deles. Então deixa pra lá. Esse lugar faz todo sentido.

Arte de Volkan Baga
Arte de Volkan Baga

Eu aumentei o calor, concentrando meu fogo em uma chama branca. Já vi artesãos fazendo isso em Ghirapur quando eu era criança, mas eles tinham uma fornalha de éter e uns tipos especiais de pólvora. Mas imagino que a ideia seja a mesma. Eu senti a areia derretendo e agarrei o ar com as mãos, comandando e esculpindo os filetes de material fundido. Os artesãos de Ghirapur faziam figuras elegantes e adornos de navios com pedaços finos, delicados e complexos. Meu objetivo é muito mais simples. Eu continuei, moldando o vidro ainda líquido na forma de uma redoma simples e rudimentar. Apenas grande o bastante pra abrigar quatro pessoas de estatura normal e uma pessoa do tamanho do Gideon. O vidro tomava forma, endurecendo em uma bolha translúcida pontilhada por grãos de areia por toda sua superfície irregular. Deslizei a mão sobre uma parte do vidro, quase sem tocar a superfície, criando uma pequena abertura.

"Entrem. Está fresco. Ahn, refrescando. Ahn, vocês não vão se queimar se encostarem por acidente", eu gritei.

Liliana foi primeiro, e o resto fez o mesmo. Logo estávamos todos do lado de dentro, observando a névoa de areia e poeira que fazia um constante ruído parecido com mil mães silenciando os filhos em algum lugar doido onde haveria mil mães e filhos juntos, só que as mil mães são apenas essas dezenas de milhares de grãos de areia batendo contra nossa pequena redoma em meio a uma tempestade de areia no meio do nada. O grupo ficou só olhando por um tempo, e eu não sei se os outros estavam olhando e admirando a beleza primitiva e o aspecto hipnótico na dança caótica do vento, ou simplesmente não queriam fazer contato visual uns com os outros porque viemos matar um dragão e acabamos quase nos afogando na areia.

"Tá. Então. E agora?" Eu perguntei.

Nós todos meio que olhamos pro Gideon, mas foi o Jace que se pronunciou. "Liliana, tem certeza de que esse é o lugar certo?"

Liliana pareceu levemente ofendida. Mas ela sempre parece estar levemente ofendida. Ou entediada. Ou, se ela acha que ninguém tá olhando, contemplativa ou meio triste. "Claro. Eu nunca esqueço o caminho de uma travessia, depois de fazê-la pela primeira vez."

"Onde vamos encontrar o Bolas nesse mundo, então?" Gideon estava parado na frente da entrada, bloqueando a maior parte do vento e da areia que tentavam entrar. Liliana dá de ombros para ele.

"Não sei bem. Minha última visita aqui foi . . . breve. E já faz algum tempo. Eu não fiz um tour pela região, digamos. Muita coisa pode ter mudado."

"Nissa. Jace. Vocês podem sentir algo que nos guie na direção certa?"

Nissa fechou os olhos, e Jace começou a emanar um brilho azul. Pouco tempo depois, Jace balança a cabeça negativamente. "Não há nenhuma mente por perto".

Nissa leva mais tempo, com as sobrancelhas tecendo um emaranhado de concentração. Finalmente, ela também balança a cabeça depois de abrir os olhos. "A mana nesse mundo é . . . estranha. Não estou conseguindo achar as linhas de força. Estão presentes, mas fracas, como a pulsação de um animal moribundo."

Jace assente com a cabeça. "Faz sentido, se foi Bolas que criou esse mundo."

"Ou se ele matou um mundo para assumir o controle sobre ele", opinou Liliana animadamente.

"Nenhuma ideia sobre onde podemos achá-lo ou se há alguma vida nesse plano? Alguma pista? Gideon, como é o Gideon, tá sempre concentrado na tarefa em questão. Eu, como sou a Chandra, tô prestando atenção, mas também tô olhando pela janela mais próxima. O que, nesse caso, é a redoma inteira que nos envolve. Vidro, né.

E foi nesse momento que eu vi.

"Eu acho que sei pra onde ir".

Todos se viraram na minha direção. Eu aponto para fora.

"Ah", exclamou a Nissa.

"Entendido", disse Jace.

"Ele não é sutil", observou Liliana.

"Como . . . não vimos isso antes?", perguntou Gideon.

Visível até mesmo através da tempestade de areia, ao longe, destacando-se contra o turvo horizonte vermelho alaranjado, a imensa sombra de dois chifres cortava o céu; a mesma imagem de Bolas que Jace havia compartilhado conosco em Kaladesh, na noite anterior.

"Parece que estamos no lugar certo, afinal de contas", eu comentei.

Arte de Noah Bradley
Arte de Noah Bradley

NISSA

Decidimos esperar a tempestade de areia passar. Gideon ficou em frente à entrada, como um escudo humano contra os elementos. Do lado oposto a ele, Chandra estava sentada de pernas cruzadas e olhos fechados, meditando em silêncio. Por alguns instantes, eu segui o ritmo da respiração da piromante, buscando algum conforto com a jornada dela. Fui tomada por um discreto orgulho pelo progresso de Chandra; um cálido contentamento por ter compartilhado com ela pequenas ferramentas que a ajudaram a encontrar tranquilidade. De fato, só ela parecia confortável ali. O calor opressivo consumia minha energia, e os demais do grupo pareciam mais desgastados ainda. Eu me perguntei, mais uma vez, como faríamos para deter ou destruir um dragão ancestral. Jace e Liliana falavam constantemente sobre o poder e a astúcia de Nicol Bolas. Precisaríamos de todas as nossas forças para enfrentá-lo. No entanto, aqui estávamos . . .

Fechei os olhos e diminuí o ritmo da minha respiração, ignorando a areia e o calor. Preciso confiar nos meus companheiros. Meus amigos. Eu inspirei, transmitindo meus pensamentos pelo meu corpo, isolando tensões e liberando onde possível. Hesitei por um momento, depois mentalizei a correnteza de um rio, utilizando a mesma imagem que emprestei para Chandra meditar em Kaladesh. Talvez uma jornada pela correnteza abaixo ajudaria a aliviar parte do calor implacável que fazia minha cabeça latejar.

Era estranho ter outras pessoas para compartilhar minhas preocupações, assim como oferecer um ombro para as preocupações dos outros. Era mais fácil para alguns do que para outros do grupo, ainda assim é algo novo para mim. Contudo, éramos inegavelmente mais fortes juntos, com laços de confiança talvez tão poderosos quanto a conexão de um animista com a terra. Confiança. Compreensão. Estou trabalhando as duas coisas.

Eu respirei fundo, inspirando ar e mana na mesma medida. Meu coração e meus pensamentos tentavam se conectar a esse estranho mundo, em busca de sementes de vida e vitalidade, as familiares linhas de força que entrelaçam todos os planos.

Mais uma vez, senti apenas uma escuridão latente, um abismo infinito repleto de morte e decomposição.

Eu já havia me deparado com mundos devastados por monstruosidades. Em Zendikar, o antinatural, o vazio cinzento deixado pelos titãs de Eldrazi. Em Innistrad, linhas de força corrompidas, selvagens e tóxicas, impossíveis de canalizar ou controlar. No entanto, agora era diferente. A maioria dos mundos, independente da contaminação ou influência externa, manteve um equilíbrio entre a magia da vida e da morte, em meio a uma rede intricada, com suas linhas de força, entrelaçando um espiral complexo tecido com nodos do poder. Mas aqui em Amonkhet, a sombra da morte dominou tudo que eu consigo alcançar, como se o próprio mundo favorecesse o silêncio dos mortos.

Eu me concentrei nos fracos filamentos de energia vital que eu pude encontrar—meras sombras de linhas de força. Eu acompanhei o traçado de seus frágeis fios, e minha mente deixou meu corpo para trás. Minha respiração parecia seguir o ritmo da fraca pulsação do mundo, ganhando velocidade enquanto eu sobrevoava as dunas, e finalmente irrompendo no outro lado da tempestade, para ver—

"Nissa. Estamos indo."

Eu abri os olhos, e lá estava Chandra. Ela estava ajoelhada à minha frente e parecia levemente preocupada. Atrás dela, Gideon, Jace e Liliana já haviam deixado a redoma de vidro e esperavam no alto de uma duna. A tempestade de areia parecia ter cessado, e agora restavam apenas lufadas de vento que varriam a areia em curvas.

"Acho que encontrei algo. Na direção dos chifres".

A expressão séria de Chandra se transformou em um sorriso, e suas sardas pareciam um espelho do que restara da tempestade. "Ótimo, fico feliz que alguém apoie meu plano de andar até o troço grande no horizonte".

Ela se levantou e me ofereceu a mão. Eu hesitei apenas por um instante, depois aceitei, levantando com a ajuda dela. Confiança. Compreensão.

"Agora vamos lá acabar com esse dragão". Chandra caminhou em direção aos outros, e eu fui atrás.

E foi então que a duna de areia criou vida.

LILIANA

Os primeiros atacaram Jace. Porque ele de fato é meio azarado. Estávamos parados em pé esperando pela Chandra e pela Nissa. E do nada, mãos apodrecidas surgiram da areia, agarrando e puxando Jace pelas pernas. Jace soltou um gritinho de surpresa ao ser puxado e enterrado na areia até a cintura. Foram os reflexos de Gideon que salvaram Jace. O grandalhão se virou e agarrou o braço de Jace com uma mão, impedindo que ele afundasse por completo. Eu lancei uma barragem de energia necrótica, fazendo definhar os braços já apodrecidos que puxavam Jace para baixo da terra. Sob os meus pés, a areia se remexeu e mais mãos surgiam e se agitavam, famintas, tentando agarrar algo no ar. Eu dei um passo para trás, me envolvendo em uma aura de putrefação capaz de definhar qualquer carne que se aproximasse de mim.

Arte de Daarken
Arte de Daarken

Gritos de pânico e o insuportável fedor de podridão chamuscada saíam das profundezas da duna. Perto dali, Chandra e Nissa estavam do lado de fora da pequena redoma de vidro, cercadas por uma horda aparentemente infinita de mortos-vivos, dessecados pelo calor e pela areia, e mais vinham surgindo do solo que se abria. Nissa sacou uma espada de dentro do cajado (belo truque) e começou a atacar os zumbis mais próximos dela, enquanto Chandra lançava torrentes de chamas que abriam passagens temporárias por entre a horda. No entanto, por mais rápido que ela os queimasse, mais mortos mumificados surgiam das areias para substituir os outros.

Eu sorri.

O Multiverso era repleto de planos, cada com um com suas próprias surpresas, horrores e curiosidades infinitas. Mas havia um fato que nunca mudava: as coisas morriam.

E essas coisas mortas eram minhas.

Eu ergui as mãos, e galhos sombrios rastejaram adiante, enlaçando os cadáveres mortos-vivos que estavam mais perto de mim. Ao sentir minha magia tocando e se conectando à essência deles, pronunciei uma única palavra.

"Obedeçam."

Os mortos-vivos que agora eu controlava pararam o que estavam fazendo, um por um. Cancelei minha aura de putrefação, focando meus poderes no comando dos zumbis. Uma súbita explosão de areia a alguns passos de mim revelou uma figura com cabeça de chacal emergindo do solo, saltando adiante e girando uma espada curva furiosamente. Eu caí para atrás, amaldiçoando meu descuido, ao mesmo tempo que um ruído úmido de aço cortando carne chegou aos meus ouvidos e um jorro de líquido escuro manchou a areia. Eu vi a metade superior do torso da figura se separando do resto do corpo dele, enquanto as lâminas estranhas e flexíveis do sural de Gideon dançavam de volta para perto dele. Jace se mantinha de costas para Gideon, conjurando ilusões que não causavam muito efeito para distrair a horda de mortos-vivos que avançavam contra eles.

"Você está bem?" Gideon gritou.

"Eu poderia ter me virado sozinha, grandalhão", eu respondi, deixando meu constrangimento falar mais alto. Ele pareceu ficar zangado, e eu contive um sorriso. É muito fácil provocar frustração no Gideon. Sim, a intervenção dele me salvou de um momento de vulnerabilidade. Sim, a utilidade dele era inegável. Não, eu jamais permitiria que ele soubesse disso.

Ainda assim, eu deveria ajudá-lo e ao Jace. É o tal do trabalho em equipe que tanto se fala. Dei um comando para meu pequeno esquadrão de mortos-vivos.

"Ajudem."

Eles avançaram contra o morto-vivo que atacava Gideon, e eu o assisti agindo incansavelmente para dar suporte aos meus servos. O sural dele golpeava com precisão cirúrgica, dando cobertura aos flancos expostos dos mortos-vivos sob o meu comando, derrubando os inimigos que tentavam sobrepujá-los. A eficiência dele sem dúvida havia melhorado, mesmo depois da última vez em que ele lutou ao lado dos meus servos em Innistrad.

Sim. Definitivamente útil.

Minha atenção se voltou para as hordas que avançavam contra Chandra e Nissa, no momento em que uma múmia acertava um golpe em cheio no ombro de Nissa, e outra mordia o braço de Chandra coberto pela armadura, mas ela logo o incendiou, transformando-o em cinzas. Não havia tempo de obter controle total. Em vez disso, lancei um elo muito mais superficial a um número maior, conectando-me ao máximo possível de zumbis e dando uma simples ordem:

"Fujam."

Multidões de mortos-vivos se viraram, cambaleando em diferentes direções. Alguns seguiram em desordem pelas dunas, outros voltaram para debaixo da areia. Os poucos que continuavam hostis sucumbiram rapidamente aos golpes de espada e às chamas de Nissa e Chandra, que atacavam em sincronia impressionante.

Enquanto elas eliminavam os restantes, meus dedos tocavam o Véu Metálico, pendurado ao meu lado. Que maravilha não precisar recorrer aos poderes dele, já que agora eu tinha outros Planeswalkers para fazerem o trabalho pesado! É claro que direcionar o foco deles era muito mais . . . desafiador que usar o véu ou comandar meus servos mortos-vivos. Mas eu consegui trazê-los a Amonkhet. E, se eu jogar as cartas certas, eles provavelmente me ajudarão a cumprir meu verdadeiro objetivo aqui—e o melhor de tudo é que farão por vontade própria.

Eu olhei em volta. Gideon observava com estranheza o que restava do meu esquadrão, depois de ter despachado os demais mortos-vivos. Chandra e Nissa agora subiam a duna, recuperando o fôlego após a luta. Jace . . . não estava presente.

Eu franzi as sobrancelhas. Provavelmente ele havia sumido de vista durante a luta para "obter um ponto de vantagem melhor". Em outras palavras, ele fica invisível quando a batalha não vai bem. Ele tinha o costume de desaparecer em meio a situações críticas, e eu sei que ele não poderia ajudar muito nesse combate. Quando se é um mago mental, os mortos-vivos são um ponto fraco. Sem cérebros, não há nada que seus poderes possam manipular. Como nós dois já conversamos diversas vezes em nossos incontáveis . . . encontros.

Mas talvez ele tenha sumido porque algum zumbi conseguiu de fato arrastá-lo para debaixo da terra.

Eu suspirei e comecei a vasculhar os cadáveres sob a areia, apenas para ter certeza que não encontraria o Jace esperneando e lutado para se soltar do viscoso abraço de um zumbi do deserto. Eu estava distraída e não ouvi exatamente o que Nissa gritava quando ela começou a correr de repente em nossa direção.

E então tudo ficou escuro.

JACE

Odeio esse mundo.

De relance, atrás de mim, vi o Gideon esmurrar outro morto-vivo, esmagando o crânio dele com um ruído repugnante. Outro zumbi (provavelmente de Liliana) saltou na frente de um que avançava contra mim e o arrastou para o chão, em meio a uma confusão arenosa, um arrancando os membros do outro. Eu aproveitei a oportunidade para sumir, lançando um rápido feitiço de invisibilidade, e corri para o alto da duna.

Achar um bom ponto de vantagem. Bolar um plano para sairmos desse caos.

Eu já estava farto do inferno arenoso e escaldante de Nicol Bolas e seus mortos infinitos. Precisávamos sair desse deserto e planejar uma abordagem melhor. Até mesmo Nissa, tão calada e tímida, havia perguntado sobre um plano antes de partirmos. Eu sabia que não estava ajudando nessa luta, mas podia tentar pensar em algo.

Quando cheguei ao alto da duna, eu me virei para assistir ao combate. Chandra e Nissa enfrentavam uma multidão de mortos-vivos, mas Liliana já havia assumido o controle sobre um bando deles, fazendo-os fugir em ondas de volta ao deserto. Enquanto isso, Gideon . . . fazia o que Gideon faz. Um instrumento de pura força, no entanto muito eficiente. E ele lutava em um esforço coletivo ao lado dos zumbis sob o comando de Liliana.

Era estranho ver os dois trabalhando tão bem juntos e era estranho ver Liliana bancando a boazinha com os outros em combate. Talvez ela realmente estivesse mudando. Talvez ela estivesse levando a sério o juramento que fez e acreditasse no propósito das Sentinelas e, apesar do antagonismo dela com Gideon, talvez ela realmente se importasse com a nossa missão.

Quem sabe?

Depois de anos de . . . imbróglios com Liliana, sinto que a conheço cada vez menos. Quanto mais eu aprendi sobre a necromante, mais enigmática ela se tornou. Quase tão misteriosa quanto os zumbis que ela controla, Liliana está sempre me surpreendendo—para o bem ou, quase sempre, para o mal. E ainda assim, ela me trouxe até aqui. Muitas vezes eu me vi defendendo-a para os outros, mesmo tendo em mente que preciso ser cauteloso com ela.

Eu balancei a cabeça. Eu não iria desvendar o mistério de Liliana aqui, no alto desse monte de areia. Em vez disso, eu me virei para aqueles chifres ao longe.

O que nós sabemos? Qual é o plano de Nicol Bolas? Qual seria o melhor passo a ser dado?

Estamos em um mundo inóspito. Nissa mencionou que esse plano parecia mais morto do que vivo. Os zumbis aparentemente se escondiam nas dunas esperando para emergir e devorar quem aparecesse.

Por que Bolas usaria um mundo assim como sua base de operações?

Que segredos se escondem sob as areias? Esse mundo estava realmente morto? E qual seria o propósito daqueles grandiosos chifres ao longe? É claro que seria fácil pensar que o ego de Nicolas Bolas era tão grande que ele construiria um imponente monumento a si próprio só porque ele podia. No entanto, não era o estilo de Bolas executar uma excentricidade tão dispendiosa e narcisista. Os gestos dele sempre serviram a propósitos ocultos, muito elaborados e excessivamente narcisistas e grandiosos.

Eu considerei a possibilidade de deixar esse plano e voltar novamente, em uma tentativa de chegar em um local mais próximo dos chifres, mas descartei a ideia rapidamente. Viajar para lugares específicos, mesmo em um mundo muito familiar, era extremamente difícil. Seria preciso muita sorte para conseguir isso em um plano desconhecido. Além disso, se Bolas tinha guardas ou alarmes prontos para impedir intervenções interplanares no mundo dele, seria melhor não correr o risco de topar com eles mais de uma vez e dar mais oportunidades para ele descobrir que o encontramos.

Não. Precisávamos seguir adiante. Contudo, depois que chegamos aqui já conseguimos cair em uma tempestade de areia e uma emboscada de zumbis. Nossos próximos passos precisariam reduzir os riscos aleatórios e maximizar nossas forças. Precisávamos nos fortalecer e avançar em direção aos chifres, nos mantendo totalmente vigilantes. Chega de surpresas—

O grito de Nissa me trouxe de volta à realidade e ao campo de batalha abaixo.

. . . Por acaso ela acaba de dizer—

NISSA

"VORME DE AREIA!"

Eu gritei para alertar Liliana, mas era tarde demais. Os tremores que senti do subterrâneo irromperam em um gêiser de areia bem embaixo dela, e eu testemunhei com horror a necromante sendo engolida por um imenso vorme. Perto dali, um segundo vorme abria uma fenda na areia com um rugido gutural que estremeceu o ar carregado do deserto. Eu tentei buscar qualquer quantidade de mana possível, extraindo desesperadamente energias inexistentes para feitiços que, no fundo, eu sabia que não poderia lançar nesta secura desoladora.

"Acabem com ele!" Urrou Gideon, avançando—mas os mortos-vivos que estavam sob o controle de Liliana se viraram contra ele, fazendo-o sumir debaixo de uma pilha de monstruosidades.

Os zumbis dela se viraram contra nós—Liliana está morta.

Esse pensamento tomou conta da minha mente, apesar de eu tentar ignorá-lo e substituí-lo por algo útil, como um plano, uma ideia, qualquer coisa.

Sob os nossos pés, outros tremores das profundezas subiam pela minha espinha, em um estrondo que parecia cada vez mais perto. O medo e a dúvida permearam meu coração e transbordaram pela minha boca, com um gosto amargo e cáustico.

Respire. Aja.

Confie.

"Chandra, detenha aquele vorme! Tem outros vindo! Eu avancei adiante, segurando firme minha arma. Eu não podia extrair a mana necessária para o feitiço que eu queria, mas podia atacar os mortos-vivos que agora cercavam Gideon. Eu podia confiar que Chandra seria capaz de deter os vormes. Eu podia acreditar que Jace pensaria em um plano, onde quer que ele estivesse. Com um grito, eu me joguei sob o vorme que vinha para cima de mim, rolando e espirrando areia para os lados. Quando meus pés se firmaram no chão, saltei para perto da multidão de zumbis. Minha lâmina foi abrindo caminho por entre toda aquela carne apodrecida até eu chegar ao Gideon.

CHANDRA

COM MIL RIOS FLAMEJANTES DE REGATHA QUE DIABOS É ESSA COISA E ELA ACABA DE DEVORAR LILIANA NÃO PODE SER COMO ASSIM MORRA NUMA PIRA DE FOGO SEU GRANDE IDIOTA DE UMA ESPERA A NISSA DISSE QUE TEM MAIS VINDO AI CARAMBA É AÍ ESTÃO ELES SAI DA FRENTE EU VOU TORRAR TODOS VOCÊS DEVOLVAM A LILIANA SEUS MALDITOS FILHOS DE—

GIDEON

Dentes infindáveis. Mãos com garras de animais. O cheiro de carne podre ao meu redor. Tentei me mover para usar o sural, mas eles eram tantos que me imobilizaram. Minhas defesas cintilavam, o familiar brilho dourado dançava diante de meus olhos enquanto eles mastigavam e agarravam, pressionando meu rosto contra a areia e puxando meus membros, tentando me despedaçar.

Arte de Seb McKinnon
Arte de Seb McKinnon

Com muito esforço, consegui mover minha perna esquerda e levantá-la com toda força que consegui reunir, chutando alguns deles e me erguendo até metade da minha altura. Nesse momento, o assobio do metal cortando o ar zuniu perto do meu ouvido. Eu me virei e vi o vulto da espada de Nissa. De repente, os membros do zumbi que segurava meu braço direito não estavam mais ligados ao torso dele. Deixei escapar uma risada triunfante e extraí mana para o meu sural. Com um simples gesto, as finas lâminas em forma de tiras chicotearam, golpeando uma multidão de zumbis em arcos reluzentes. Em poucos instantes, Nissa e eu concluímos nossa dança mortal. Ela com seus giros elegantes e golpes precisos, perfeitamente entrelaçados nos caminhos concêntricos do meu sural. Deixamos a área coberta de partes decepadas dos mortos mumificados, que mais uma vez descansavam em paz, e corremos para junto de Chandra, que havia afugentado os vormes com seus jatos de fogo.

"Quatro?" Gritei para Nissa enquanto corríamos.

"Seis. Tem mais dois vindo", corrigiu Nissa.

Eu sentia um nó no estômago, mas prossegui, com uma pergunta mais urgente do que minha preocupação com esses números.

"Liliana—ela—"

Nissa apontou para um dos vormes que tentava flanquear Chandra. Eu apressei meus passos.

O reino de Nicol Bolas reservava muito mais horrores do que eu poderia imaginar.

LILIANA

.

.

.

CHANDRA

"Raaaaaargh!" O grito rasgou minha garganta, enquanto eu canalizava meu poder nas chamas, engolindo um dos vormes em uma pira flamejante. Finalmente, ele caiu, carbonizado, jogando areia para todos os lados.

Minha respiração estava pesada e irregular. "Próximo?" Eu chamei, mais para mim mesma do que para os vormes, porque eles são vormes e provavelmente não entendem nenhuma palavra e não devem saber nada de nada. Algo se movimentando à minha direita e um rugido estrondoso—com um salto, eu me afasto de um dos vormes que vinha para cima de mim. Como um vorme gigante é capaz de atacar uma pessoa de surpresa?

Meu coração quase parou de bater quando me virei e vi um colossal escorpião azulado e brilhante, surgido do nada, bem na minha frente. Eu saltei de novo, e Jace apareceu logo em seguida ao meu lado. Ele pegou minha mão, fez um gesto de silêncio e nós dois sumimos, enquanto a o escorpião ilusório vagava pela areia, atraindo um dos vormes, que foi atrás dele, e mergulhando pelas dunas como se fossem ondas de água, em vez de areia sólida.

"A comida favorita deles", murmurou um Jace invisível, com a mão ainda segurando a minha. Senti a pulsação dele frenética e desordenada, e resisti à tentação de perguntar o que mais os vormes gigantes pensavam.

Gideon e Nissa vinham correndo em nossa direção, e Gideon empunhava o sural e gritava, tentando atrair a atenção dos vormes. Os dois que restavam (espera, quatro, de onde vieram os outros dois?!) se viraram e avançaram contra o Gideon em uma velocidade inesperada, e o som de escamas se arrastando contra a areia cortava o ar seco e sem vida. Meus olhos seguiram um deles, e soltei a mão de Jace para correr atrás do vorme. Lancei duas flechas de fogo nele, que não causaram nem um arranhão, mas fizeram com que ele se separasse dos outros e viesse na minha direção. Atrás de mim, Jace gritava algo provavelmente tolo. Cerrei os punhos, concentrando pontos de chama branca entre os dedos.

Mas antes que eu pudesse lançar minha rajada, o vorme freou bruscamente. Com isso, fui pega de surpresa e perdi o foco, e as chamas nas minhas mãos se apagaram. O verme recuou e começou a convulsionar. Eu me afastei porque quando vejo humanos fazendo isso, geralmente é seguido de vômito, e eu não queria tomar um banho de vômito de vorme de areia, obrigada.

O vorme não vomitou. Em vez disso, o tórax dele se desmorona e começa a virar poeira. Horrorizada, vi Liliana saindo de dentro do vorme, banhada em ácido estomacal e vísceras, com uma corrente esquisita flutuando na frente dela, e o rosto brilhando com uma luz roxa. Ela colocou os pés na areia, e o vorme estremeceu e caiu ao lado dela, com as entranhas vazando pelo buraco de onde ela saiu, e o corpo acizentado e morto. Liliana deu mais alguns passos pela areia como se estivesse em um transe. A pele dela tinha marcas que brilhavam com a mesma luz roxa da corrente, e seus olhos estavam vidrados e sem expressão. As feridas pelo corpo da necromante pareciam se costurar sozinhas, e a secreção do vorme continuava se dissipando, como se algum calor a secasse, mas eu não sentia nada vindo dela. Ela parecia apenas mais fria e distante do que nunca, como uma estrela invertida cruzando o deserto.

"Liliana?" Dei um passo à frente, e o brilho roxo dela desapareceu, e ela desabou sobre um monte de areia.

JACE

Isso não é nada bom. Isso realmente não é nada bom.

GIDEON

O primeiro vorme de areia avançou contra mim, com a bocarra aberta, para me devorar inteiro.

Perfeito.

Eu corri na direção dele e saltei enfiando a mão na mandíbula aberta do monstro, fazendo meu sural girar em círculos pela garganta do vorme. As lâminas cortaram seu interior macio, e eu terminei de eviscerá-lo com um rasgo de cima a baixo que expôs suas entranhas à luz do dia, em um jorro de sangue e fluidos.

Menos um.

O vorme desabou, em um grande baque na areia, e eu caí para o outro lado. Eu mal havia me levantado, quando a cauda de um segundo vorme me atingiu no peito com a força de um rhox enfurecido, me jogando para trás contra uma duna e me fazendo rolar até o chão.

Deitado de costas para a areia, apertei os olhos e tentei recuperar o fôlego.

Acho que eu iria precisar de uma abordagem diferentes com os vormes restantes.

Gideon. Precisamos partir e nos reagrupar. Eu me sentei, assustado. Nunca vou me acostumar a voz de Jace surgindo do nada na minha mente. Olhei de relance ao redor e me levantei rapidamente, pois um dos vormes restantes vinha para cima de mim.

Acho que podemos dar conta disso, Jace. Preparei meu sural, tentando dividir minha atenção entre o vorme e a voz de Jace na minha cabeça. "A Liliana está—

Viva. Mas não está bem.

Eu fiz uma careta. O vorme avançou com a bocha fechada, jogando a cabeça como um aríete. Eu rolei para me esquivar e senti uma cascata de areia sobre mim, vindo do potente golpe do vorme. A areia se revolveu quando o vorme emergiu, avançando do subterrâneo para cima de mim novamente.

Aguente firme. Nissa e eu estamos a caminho. Eu me agachei e, quando o vorme atacou, saltei para trás, com o sural girando sobre a minha cabeça, rasgando as escamas do ventre dele e interrompendo seu movimento. O vorme deu um grito estridente e enfurecido. Rolei para a direita quando o vorme caiu, se contorcendo sobre a areia, ferido mas não exatamente morto.

Perto dali, vi Nissa saltando em cima de um vorme que havia surgido da areia, e pousando com agilidade sobre a cabeça dele. O vorme se debateu para derrubá-la, mas ela foi rápida. Em um piscar de olhos, a elfa agarrou a espada com as duas mãos, atravessou o crânio do monstro e continuou montada nele até ele cair pesadamente no chão.

"Nissa!" Eu chamei. "A Liliana precisa—"

"Jace me falou. Nissa puxou a espada do crânio do vorme e, em um breve lampejo verde, a arma voltou à forma de cajado. Começamos a correr juntos até Jace e Chandra, ajoelhados diante de uma figura encolhida que deveria ser Liliana, e o cadáver inerte de um vorme atrás deles.

Jace olhou em nossa direção, com os olhos brilhando. Precisamos bater em retirada. De volta a Kaladesh. Bolar um plano melhor, outra abordagem.

Estamos indo, Jace. Franzi as sobrancelhas diante da preocupação que ecoava da mente dele e tentei avaliar a situação. A surpresa dos ataques sem dúvida foi cruel para nós, mas nós sobrevivemos e conseguimos eliminar as ameaças. Liliana estava seriamente ferida, mas estava viva. Nissa poderia cuidar dos ferimentos dela, e então seguiríamos adiante. Ir embora agora, só para voltarmos depois e termos mais problemas ainda, não me parece a melhor opção—

Foi aí que reparei que o vorme atrás de Jace se mexia.

NISSA

Eu senti antes de entender o que era—uma súbita mudança no ar, como a calma antes da chegada de uma tempestade. Só que essa mudança era mágica, uma oscilação nas tensões etéreas, um aumento na pulsação e nas sombras das linhas de força do mundo. Algum poder—antigo e profundo deste mundo—despertava. Eu diminuí a velocidade dos meus passos, distraída e curiosa, olhando ao redor para ver o que havia mudado. Os gritos de alarme de Gideon atraíram minha atenção de volta para o Jace, e foi então que eu finalmente vi, só que tarde demais.

Arte de Jose Cabrera
Arte de Jose Cabrera

O vorme morto atrás deles havia se erguido, com um imenso buraco ainda visível no tórax. Com uma velocidade sobrenatural, sua cauda chicoteou Chandra e Jace para longe. Assisti com horror os dois sendo arremessados na areia como pedrinhas em um lago, caindo por cima um do outro.

Os mortos estão amaldiçoados para caminharem após a morte.

A verdade parecia ressoar do próprio plano, ecoando das frágeis linhas de força e da alma do mundo. A estranha doença. A constante presença de decomposição que eu senti desde a nossa chegada.

Este mundo havia sofrido uma maldição antiga e poderosa. Ela inverteu e subsumiu o próprio ciclo da vida e da morte.

Fui tomada pelo pavor, uma repentina corrente gelada me causou arrepios pelo corpo todo, quando me virei para os outros vormes que haviam morrido.

GIDEON

Eu dobrei minha velocidade, correndo em direção do vorme morto-vivo que agora avançava sobre a forma inconsciente de Liliana, quando um arrepiante rugido estrondoso de areia atrás de mim desviou minha atenção. Dois vormes zumbis surgiram da areia. Nissa conseguiu se esquivar do primeiro, mas o segundo a envolveu com seu imenso corpo. "Não!" Eu gritei, vendo Nissa desaparecendo da minha vista, e as escamas do verme se mexendo enquanto ele a apertava.

O tempo parou.

O horror congelou meu coração.

Eu me via diante de duas escolhas impossíveis.

Salvar Nissa de ser esmagada.

Salvar Liliana da morte iminente.

De qualquer forma, outra pessoa do grupo morreria, mais uma vez devido ao meu orgulho arrogante.

Fiquei paralisado por uma fração de segundo, totalmente ciente de que não tomar um decisão resultaria na morte para as duas.

Eu dei um passo, mais por instinto do que pela racionalidade.

De repente, uma luz ofuscante irrompeu no horizonte.

Eu protegi os olhos com uma mão, por reflexo, quando uma força me fez voar pelos ares. No instante seguinte, minha mente tentava compreender o que eu havia visto.

Uma imensa flecha, com uma luz branca incandescente perfurou o vorme que se aproximava da forma inconsciente de Liliana. Eu vi, atordoado, o vorme definhando, e seu corpo se transformando em cinzas. A flecha sumiu, como se fosse um raio de sol iluminando a areia, enquanto os vestígios do vorme eram varridos pelo vento.

Os vermes restantes, vivos e mortos-vivos, rugiram e começaram a fugir. Aquele que havia envolvido Nissa a deixou para trás, inconsciente, e eu corri até ela. Enquanto eu corria, um vulto gigante dourado e vermelho avançava pela areia, deslocando-se com tamanha velocidade e empenho que eu mal pude acompanhar seus movimentos. Apenas quando ele alcançou os vormes eu pude ver sua forma.

Arte de Chase Stone
Arte de Chase Stone

Ela projetava uma sombra sobre mim e tinha a altura de uma dezena de homens, com um adereço dourado e reluzente na cabeça, e um imenso cajado de duas pontas que perfurava um dos vormes mortos-vivos. Seu corpo irradiava poder e parecia humano em todas as partes, menos na cabeça, que se assemelhava a de um chacal. Olhos prateados insondáveis me examinavam. e eu senti como se aquele olhar me atravessasse. Ela retirou a arma do vorme e, assim como o outro que havia sido atingido pelo arqueiro invisível, esse também se transformou em cinzas. O vorme morto-vivo restante correu para debaixo da areia, mas com uma velocidade sobrenatural, ela saltou e fincou o cajado no solo. A terra estremeceu, e um grunhido abafado reverberou pelas dunas. Depois, tudo ficou em silêncio.

O uivo solitário do vento era o único som que se ouvia, enquanto a figura estava ali parada. Comecei a caminhar até ela, que se virou na minha direção e me olhava atentamente. Senti meu coração se enchendo com um fogo dourado, meus pés tremiam e me senti sem fôlego diante da presença dela. Em seguida, com o mais sutil dos acenos, ela partiu, avançando em direção ao horizonte e aos misteriosos chifres, até desaparecer atrás de uma imensa montanha de areia ao longe.

Eu caí de joelhos, cercado por meus amigos inconscientes e espalhados, com a mente tão exausta quanto meu corpo.

Há deuses em Amonkhet.

De todas as coisas que eu já havia visto neste mundo; tempestades de areia implacáveis, hordas de zumbis, vormes de areia gigantes e mortos voltando à vida, isso foi o mais inesperado e o mais estranho.

Minha mente e meu coração estavam perdidos em infinitas direções. Eu era criança em Theros novamente, ouvindo contos sobre deuses poderosos e divindades vingativas. Um adolescente rebelde, vendo o caos semeado pela temível força e cruel vaidade desses deuses. Um jovem homem, sujeito aos caprichos e à ira inexorável dos deuses, testemunhando casuais intromissões divinas nos assuntos terrenos e plena indiferença pela vida mortal. A fé, o medo e a esperança que eu tinha neles se entrelaçaram em um nó sobre o qual eu não pensava há anos, por negligência e fuga proposital.

Contudo, eles estavam aqui em Amonkhet.

Eles estavam aqui no mundo de Nicol Bolas.

E meus amigos estavam todos vivos graças a eles.

E ela emanava um inegável senso de justiça. A luz dourada, o cajado fulminante e ajuda das flechas de outra presença invisível, banindo os mortos-vivos e a escuridão.

Não sei por quanto tempo fiquei ajoelhado na areia. Lentamente, meus pensamentos retornaram ao meu corpo, aos meus amigos que precisavam de ajuda, e eu tive que me levantar. Lentamente, eu reergui e reuní meus amigos. Lentamente, cuidamos de nossas feridas e nos curamos da melhor forma possível.

Eu tentei explicar o que havia acontecido. O que eu havia testemunhado. Eles não compreenderam totalmente. Eu notei o ceticismo de Jace, o descaso de Liliana e a confusão de Chandra. Somente Nissa foi receptiva, alegando que pensou ter sentido uma presença antes de perder a consciência, mas a crença dela nas minhas palavras se originou mais da curiosidade do que da fé.

Argumentos surgiram sobre o nosso próximo passo, mas eu sabia que precisávamos seguir em frente.

Ainda tínhamos uma missão para cumprir, como Sentinelas.

Eu precisava saber.

Como um mundo supostamente controlado por um antigo dragão maligno também poderia ser o lar de divindades?

Depois de descansarmos o máximo que pudemos, nos reunimos e continuamos nossa caminhada em direção aos chifres, vigilantes e em guarda. Encontramos mais alguns mortos-vivos perambulando, mas Liliana os despachou facilmente. A maioria das feras selvagens e hienas fugiam de nós, provavelmente graças às chamas de Chandra. Em pouco tempo, subimos a montanha onde vi a divindade desaparecer. E quando chegamos ao topo, todos se surpreenderam.

Arte de Jonas De Ro
Arte de Jonas De Ro

Diante de nós, as areias infinitas davam lugar a uma terra reluzente e fértil. Exuberantes plantas ladeavam um grande rio que corria ao longe. O primeiro sol queimava bem acima de nós, com sua luz refletida na água. O segundo sol parecia não ter se movido desde a nossa chegada, ardendo lentamente e bem distante em sua posição perto dos grandes chifres.

Muito mais perto que os chifres, havia outros monumentos reluzentes e estruturas elevadas, formando uma grande cidade que ia até onde a vista alcançava. As linhas verticais dos obeliscos e torres formavam ângulos perpendiculares aos templos expansivos e geométricos. Embarcações pontilhavam o rio, e a voz dos pássaros e os sons de uma metrópole cheia de vida chegavam até nós.

Havia gente lá.

Jace foi o primeiro a indicar o brilho mágico ao redor da cidade. Olhando com atenção, uma barreira translúcida cobria toda a área, detendo a areia do deserto indomado e até mesmo refratando as nuvens acima. As aves dentro da redoma eram obrigadas a interromper a trajetória, sem poder ou sem querer atravessá-la.

Nissa falou primeiro, com a voz cheia de espanto. "Que lugar é esse?"

Eu limpei a garganta. "Liliana, você . . . ?"

Liliana balançou a cabeça. "Eu não vi muita coisa de Amonkhet durante minha última visita. Não fazia ideia de que esse lugar existia".

Jace franziu as sobrancelhas. "Que lugar é esse? O que está havendo aqui?"

Nenhum de nós pôde responder. Por fim, Chandra deu de ombros. "Só tem um jeito de descobrir". Com isso, ela começou a descida em direção à cidade e à barreira.

Nós a seguimos, com nossas mentes repletas de perguntas.


Enquanto os cinco desciam pela areia, o sussurro do vento solitário roçava de leve pelo caminho, fazendo a areia dançar por onde passavam, apagando as pegadas deles, formando novas dunas e também áreas planas. Acima de nós, o primeiro sol caminhava em direção ao seu zênite no céu, enquanto o segundo continuava parado em sua posição no horizonte, com o olhar flamejante fixo no mundo abaixo. Depois de alguns minutos, o deserto havia ficado para trás, e apenas os dois sóis eram testemunhas do silêncio eterno.

O vento continuava, ignorando tudo o que havia antes.

Arte de Min Yum
Arte de Min Yum

Perfil de Planeswalker: Chandra Nalaar
Perfil de Planeswalker: Gideon Jura
Perfil de Planeswalker: Nissa Revane
Perfil de Planeswalker: Jace Beleren
Perfil de Planeswalker: Liliana Vess
Perfil de Planeswalker: Ajani Juba D'ouro