Por muito tempo, Pé-de-Limo não conhecia nada além do casco quentinho do Bons Ventose o sol quente de Bogardan. Enquanto ele passava da esporidade para sua fase micelar, ele tinha consciência de sons, das vozes de outras coisas vivas. Estas vozes eram, às vezes, altas ou suaves, e gradualmente ele passou a diferenciá-las para cada forma de vida individual.

Um dia, duas destas formas de vida usaram cordas para descer pelo casco com uma ferramenta, um cabo longo de madeira com uma lâmina na ponta. “Acho que esse aqui ficou tempo demais,” disse um deles. “Vai ser difícil de arrancar.”

“Dê algumas boas batidas primeiro,” disse o outro. “Pra soltar.”

Pé-de-Limo não achava que uma batida seria algo muito bom. E então o rugido das chamas vieram do céu, e vozes gritaram alarmadas. As duas formas de vida largaram sua ferramenta e desceram apressadas pelas cordas, até o chão.

O som e o aroma do fogo eram alarmante o suficiente para impulsionar Pé-de-Limo até o próximo estágio de seu desenvolvimento. Ele puxou seus caules parcialmente crescidos de suas capas, e depois hesitou. Ele não tinha se desenvolvido por tempo suficiente para enxergar muito longe, e ele não sabia discernir de onde o fogo e os gritos vinham. Mas este casco quentinho fora a vida inteira de Pé-de-Limo até agora, e ele teve medo de deixá-lo. Ele começou a subir, com muito trabalho.

Saprófita (ficha) | Ilustração: Steve Prescott

Seus caules estavam fracos, ainda pouco desenvolvidos, e eles tremiam com o esforço da subida. As ondas de calor no ar secavam sua pele e dificultavam para que ele se segurasse. Quase mole de tão exausto, ele chegou na beirada do convés, e se esgueirou sob a barra mais baixa do guarda-mancebo.

O calor acabara, mas as vozes continuavam. Pé-de-Limo sabia que ainda não era seguro, e se arrastou pelo convés, procurando abrigo. De repente o convés desapareceu. Ele mergulhou pelo ar vazio e escuro, estatelando-se ruidosamente.

Ele ficou ali por um tempo, atordoado com a escuridão e com a queda, até notar que conseguia sentir uma presença. Uma estrela branca e quente, que brilhava dentro do ninho de tubos e metais, preenchendo o espaço escuro. Ela deu ao Pé-de-Limo a força para se arrastar mais, encontrar uma passagem e subir até um espaço vazio onde finalmente pôde descansar.


Pé-de-Limo crescia na escuridão, e o brilho da estrela branca lhe dava toda a nutrição que ele tiraria do sol. Depois de algum tempo, ele sabia que seu lar se erguera e se movia pelo ar, mas não tinha certeza do que isso significava. Ao crescer mais, seus sentidos ficaram mais apurados. Ele começou a ouvir vozes carregadas pelos tubos que ligavam a estrela branca até o coração do navio e ao restante de sua estrutura Thran.

“Espero que estejam bem lá embaixo,” disse uma voz. “Esse agente da Cabala conseguiu enganar uma academia de magos inteira — não parece coisa boa.” A estrela branca cercava esta voz com seu brilho cálido, e Pé-de-Limo tinha certeza de que já a ouvira antes, antes de sua fase micelar. Esta era a voz de quem tinha guiado o renascimento do navio. Tiana. Seu nome era Tiana.

Outra voz disse: “Tudo o que o agente teve que fazer era ficar na surdina, fingindo não ser um assassino sanguinário.” Este era Arvad, que a estrela branca tinha chamado pelo mundo para ser o amigo e ajudante de Tiana. “Cultistas da Cabala são bons nisso.”

“Espera, aquela é a coruja da Jhoira? Ela disse que a mandaria subir quando eles terminassem.”

“É a coruja... Vou começar o jantar.”

Pé-de-Limo sabia que estava perto do começo de sua fase emergente quando seus caules ficaram mais fortes. Em algum ponto ele teria que se aventurar e sair, mas o mundo exterior fora tão assustador. Parecia muito mais sensato ficar aqui e começar um ciclo de reprodução precoce. Pelo menos depois disso haveria companhia.

Pé-de-Limo hibernou durante a reprodução, para concentrar suas energias, mas quando pôde perceber novamente, era uma sensação de calor no casco do navio. O ar estava seco como poeira. Com certeza era mais sensato ficar aqui no escuro, onde era seguro, sob a guarda da estrela branca.

Mas ele ouviu vozes novamente. Uma delas disse: “Gostei da sua filha.” Esta era Jhoira, uma voz que o navio conhecia com seus ossos Thran.

O navio reconhecia a risada de Teferi. “É claro que gosta. Queria que você tivesse conhecido a Subira.”

“Então... Você não se arrepende? De ter cedido sua centelha?”

“Eu me arrependo de muitas coisas. Mas não disso.”

Pé-de-Limo passava a maior parte do tempo em comunhão com seus novos brotos, aproveitando a sensação de companheirismo, mas ele escutava as vozes e aprendia sobre os outros habitantes do navio.

O aroma de Yavimaya passou pelas frestas nas paredes de madeira. Quase fez Pé-de-Limo considerar sair e dar uma olhada. Mas os brotos ainda não sabiam se mover, e o aroma fresco e verde de Yavimaya estava mesclado com o fedor assustador de fumaça. Pé-de-Limo se amontoou com seus brotinhos e não se moveu.

E então, outra voz disse: “O Bons Ventos está tão igual e tão diferente...”

Karn, sussurrou a estrela branca. Pé-de-Limo sentiu a estrutura Thran zunir em resposta.

“É estranho estar a bordo novamente?” Esta era Shanna, que tinha padrões em seu sangue iguais aos que estavam entrelaçados nos ossos do navio. “Depois de tudo o que aconteceu com você?”

Um traço de diversão passou por sua voz que ressoava enquanto Karn respondia: “Depois de tudo o que aconteceu comigo, tudo é estranho.”

Raff era outro com um sangue familiar. Pé-de-Limo via as duas outras com suspeita, Chandra e Jaya, que tinham cheiro de fogo; mas a estrela branca não parecia se importar com elas.

Jhoira disse: “O Jodah me falou de você. Ele sabe que você voltou?”

Jaya respondeu: “Hm. Eu não sabia que ele tinha voltado.”

“Ele está na Academia em Tolária Ocidental. Quando isso tudo acabar, podemos levar você lá. Se você quiser.”

“Agradeço pela oferta. Mas eu não tenho certeza se estou tão de volta assim, se é que você me entende.”

Os outros dois à bordo não eram conhecidos pelo navio, mas a estrela branca não teve objeção alguma à presença deles. Nem a daquela com morte escrita por toda a pele.

Liliana disse: “Você não contou nada do Josu para a Chandra.”

Gideon a respondeu: “Não, e eu nem vou. Não é minha história, para compartilhar, não é?”

“Se você tivesse contado, poderia ter usado isso para que ela se sentisse . . . sentisse no dever de nos ajudar a matar Belzenlok.”

Gideon parecia exasperado. Mas Gideon parecia exasperado com frequência, então Pé-de-Limo não tinha certeza se isso significava alguma coisa. “Liliana . . .  se é isso o que você quer, por que você não contou a ela?”

“Eu não preciso, não é? Ela já quer nos ajudar a matar Belzenlok.”

“Porque ela concorda conosco que isso tem que ser feito antes de enfrentarmos Nicol Bolas novamente. Eu nem sei o que você está me pedindo. Você está tentando descobrir por que meu primeiro instinto não é usar informação confidenciada a mim por uma amiga para manipular outra?”

“Não, claro que não!” Liliana saiu.

Pé-de-Limo ouviu Gideon murmurar: “A capacidade dela de mentir pra si mesma é quase infinita.”

Pé-de-Limo começou a considerar seriamente se deveria sair do seu lugar seguro. Os brotos chegaram em suas fases pedunculares incipientes, e Pé-de-Limo já lhes dera o sinal químico que explicava como chegara o momento de completar suas transições. Eles soltaram seus pedúnculos do solo e praticaram caminhar pelo cômodo, e subir pelas paredes. Pé-de-Limo precisava usar seus próprios pedúnculos antes de voltar a uma fase de hibernação. Ele considerava a questão quando a porta se abriu.

Uma figura ficou parada na porta. Fazia muito tempo desde que Pé-de-Limo vira outro ser vivo e ele estava mais curioso do que sobressaltado. Depois de um longo momento, a figura disse: “Tiana, acho que descobri de onde está vindo aquele cheiro.”

Era Arvad! Pé-de-Limo liberou um caule-de-braço do micélio em seu corpo, e acenou.

“No compartimento de carga, ao lado do compartimento do motor principal,” adicionou Arvad.

Pé-de-Limo e Arvad ficaram se olhando até que Tiana apareceu. “Ah, minha santa Serra,” disse Tiana. Pé-de-Limo acenou para ela.

“Ele acenou pra mim?” Indagou Tiana.

“Acho que sim.” Arvad hesitou. “Se você consegue entender o que eu digo, acene para cada um de nós.”

Pé-de-Limo liberou um segundo caule-de-braço e acenou para cada um deles.

“Hã...” Tiana não pareceu se afetar. “Tá bom, então.”

“Acho que é talídia,” disse Arvad.

“Provavelmente.” Tiana ficou quieta por um momento. “Ei, você é talídia?”

Pé-de-Limo não tinha o aparelho vocal para responder, mas usou seus caules-de-braço para gesticular. Ele não tinha total certeza do que era ainda, apesar de sentir que saberia logo, em uma próxima fase de desenvolvimento. Era difícil explicar isso com gestos.

“Obviamente está tentando te responder,” disse Arvad.

“Eu não diria obviamente,” discordou Tiana.

“Porque não tem um rosto?” Indagou Arvad.

Tiana parecia estar tentando inclinar a cabeça para o lado, para ver Pé-de-Limo de outro ângulo. “Bom, sim, mas está falando com a gente, então com certeza . . .  espera, o Raff talvez consiga falar com ele.”

Tiana saiu. Pé-de-Limo e Arvad ficaram se olhando por mais um tempo. Arvad disse: “Olá. Eu sou Arvad. Às vezes me chamam de O Amaldiçoado.”

Pé-de-Limo gesticulou que entendeu e apontou para o tapete pegajoso entre seus pedúnculos, tentando explicar seu próprio nome.

“Aham,” disse Arvad.

E então Tiana apareceu, com Raff. Raff disse: “Ah, sim, é talídia. Oi, talídia.”

Pé-de-Limo liberou um terceiro caule-de-braço para acenar.

“Ajudou muito, Raff,” disse Tiana. Seu tom de voz sugeria que não ajudou nada. “O que está fazendo aqui?”

“Bom, talídeas são de Yavimaya, e têm algum parentesco com cogumelos,” explicou Raff. “Eles foram criados originalmente para . . . Hã... Eu conto mais tarde. É meio esquisito falar nisso tudo na frente dele. Ele provavelmente veio à bordo como esporo, preso na semente do elemental arbóreo que a Jhoira usou para o casco crescer. Ah, opa, e ele tem tipo uns dez bebês, já.”

“O QUÊ?” Indagou Tiana.

Pé-de-Limo olhou em volta para seus brotos, todos em fase micelar agora. Ele os chamou, e todos eles acenaram para seus novos amigos.

“Aham, essas são talidiazinhas. Oi, talidiazinhas,” cumprimentou Raff. Ele virou-se para Tiana. “O que você vai fazer com eles?”

Tiana não respondeu, mas suspirou profundamente. Pé-de-Limo não tinha certeza de como interpretar aquilo.

Arvad disse: “Ele—eles não mostraram sinal algum de querer atacar, ou de estragar o navio . . .  Precisamos fazer algo com eles?”

“Podemos levá-los até Yavimaya,” sugeriu Raff.

“Acabamos de sair de Yavimaya.” Tiana colocou as duas mãos no crescimento castanho-avermelhado sobre sua cabeça, como se fosse puxá-lo. “Tá, vamos deixá-lo aí onde está agora. Eu vou lá falar com a Jhoira.”

Arvad fechou a porta e Pé-de-Limo ouviu seus passos se afastando. Suas vozes diminuíam, e Raff disse: “Diz pra Jhoira que Serra disse que tudo bem ele ficar aqui—Ai! Eu tava brincando!”

Pé-de-Limo considerou a situação e depois olhou para seus brotos. Instintivamente ele sabia que era hora de se mover e ver o mundo. Bom, melhor começar.

Pé-de-Limo deu os sinais químicos para seus brotos, explicando que era hora de partirem deste lar. Depois que todos estavam dando passos firmes pelo chão, Pé-de-Limo foi até a porta. Empurrando, Pé-de-Limo a abriu e saiu, chamando os brotos para virem junto.

Ele seguiu o caminho que Tiana e Arvad fizeram. Eles desceram por um grande corredor curvo, e Pé-de-Limo percebeu que estava no interior do casco do navio. Passou pela primeira abertura e encontrou Tiana e Arvad de pé em um cômodo no centro do navio, que tinha aberturas para outros corredores.

Arvad disse: “Seguiu a gente. Com os bebês.”

“Tô vendo.” Tiana olhou para Pé-de-Limo, e Pé-de-Limo olhou para ela.

Liliana veio a passos largos, parou e exigiu saber: “O que é isso?”

“São talídias, provavelmente de Yavimaya,” disse Tiana.

Arvad falou com Pé-de-Limo: “Talídias, esta é a Liliana.”

Pé-de-Limo acenou para cumprimentá-la, e solicitou que todos os brotos fizessem o mesmo.

Tiana adicionou: “Parece que eles estavam à bordo desde a construção do navio—”

Liliana franziu o cenho para Pé-de-Limo. “Tá, tanto faz. O que eles fazem?”

Tiana deu uma olhadela para Pé-de-Limo. “Até agora eles olham para as pessoas.”

“Bem, isso é inútil.” Liliana virou-se para Arvad e perguntou: “Como que você decidiu não comer gente?”

Arvad conseguia comer gente? Que alarmante. Pé-de-Limo e todos os seus brotos se viraram para encarar Arvad.

Arvad também parecia surpreendido. “Não foi uma decisão. Eu não queria ser um vampiro. Fui transformado contra minha vontade.”

Liliana fez um gesto de dispensa. “Sim, isso eu entendo, mas depois que você foi transformado, beber sangue não seria a coisa natural a se fazer?”

“Não.” Arvad parecia confuso. “Você está tentando me convencer de que beber sangue é uma boa ideia?”

“Não, claro que não.” Liliana pareceu reconsiderar. “A não ser que seja conveniente, daí—”

Tiana cruzou os braços, observando-a especulativa. E então ela disse: “Você está perguntando a ele como ele resistiu a vontade de ser egoísta.”

Liliana se virou para olhar para ela friamente. “Não, não estou perguntando isso.” Ela olhou novamente para Arvad. “Mas já que ela falou no assunto, como foi?”

O olhar de Arvad ficou pensativo. “Não foi fácil. Eu tive que me prender a uma imagem de mim mesmo, como eu era antes de ser transformado. Como eu queria ser.” Ele adicionou: “Com o efeito da Pedra de Energia é muito mais fácil. Mas eu sei que poderia sair de perto de sua influência se precisasse, e manteria o controle.”

Liliana não parecia ter gostado do que ouviu. “Então não tem truque.”

Tiana coçou a cabeça e perguntou: “Tem alguma coisa que você quer conversar? Eu sou um anjo. Supostamente a gente sabe como lidar com esse tipo de coisa.”

“Não, claro que não.” Liliana se retraiu horrorizada. “Esquece. E se contarem para alguém que tivemos essa conversa, os dois vão se arrepender.” Ela saiu por outro corredor.

Que interessante. Pé-de-Limo sentiu-se melhor sobre sua decisão de vir explorar. Depois de crescer no escuro por tanto tempo, o mundo exterior certamente parecia ser um lugar interessante. Havia, obviamente, tanto para ver. Depois de escolher um corredor diferente, ele começou a ir até ele.

Atrás dele, Arvad disse: “Hmm, melhor avisarmos aos outros que está aqui.”

Tiana disse: “Eu vou à proa, você vai à popa.”

Pé-de-Limo explorou por algum tempo. Os caminhos dos corredores serpenteavam, e as formas arredondadas dos cômodos eram agradáveis e familiares. As pessoas disseram que o navio crescera da semente de um elemental, e era provavelmente por isso que era tão familiar a ele, e era por isso que ele abrigara Pé-de-Limo e acelerara seu ciclo de crescimento, e por que Pé-de-Limo parecia saber e compreender tantas coisas sobre seus outros habitantes.

Ele encontrou a abertura de um cômodo e olhou para dentro. Teferi estava em um canto da sala lendo um livro, e do outro lado Gideon afiava uma arma. Gideon olhou para cima e viu Pé-de-Limo. Pé-de-Limo acenou. Gideon disse: “Teferi.”

Teferi olhou para cima brevemente. “Ah, talídias. Sim, a Tiana mencionou ter encontrado alguns vivendo no compartimento do motor.”

Gideon ficou quieto por um momento, e então disse: “Parece ser o problema de outra pessoa,” e voltou a afiar a lâmina.

Pé-de-Limo os observou por algum tempo, mas como eles não fizeram mais nada, ele seguiu seu caminho. Então ele encontrou um compartimento grande, onde Jhoira estava sentada em uma mesa. Jhoira era a favorita do navio.

Jhoira tinha colocado uma lente perto de seu olho direito para examinar os componentes de artífice feitos de metais e cristais, espalhados pela mesa. Ela tateou para pegar uma ferramenta fora de seu alcance, e Pé-de-Limo usou um caule-de-braço extra para pegá-la e entregá-la para ela. Ela disse: “Obrigada, Shanna.”

“Não fui eu.” Shanna entrou no cômodo e sentou-se de frente para Jhoira. “E eu vou tentar não levar para o lado pessoal.”

“O quê?” Jhoira olhou para cima, piscando. Ela conseguiu fechar seu foco em Pé-de-Limo. “Ah, desculpe. Sim, a Tiana disse que tínhamos um clandestino.”

Raff seguira Shanna. “Olá, talídias.” Ele sentou e continuou a falar com Shanna: “Só digo que a maioria dos guerreiros famosos tem um passado trágico.”

“Eu não tenho,” disse Shanna, com um ar de quem quisesse encerrar o assunto.

“Eu sei, eu só acho estranho,” insistiu Raff.

“Estranho é você,” replicou Shanna.

Pé-de-Limo pensou em como quase foi morto por uma pá, tendo que usar seus caules ainda moles para fugir com sua vida até o abrigo no compartimento do motor talvez seria um passado trágico, mas tudo fora muito bem depois daquele ponto. Seus brotos exploravam o cômodo cuidadosamente, estudando os livros e as ferramentas e todas as prateleiras que conseguiam alcançar. “Por favor, peça a eles que não toquem em nada,” disse Jhoira, para o Pé-de-Limo.

Pé-de-Limo disse aos brotos para não chegar muito perto de nada, apesar de eles ainda não terem seus caules-de-braço.

Raff aparentemente ainda queria falar de passados trágicos. “Não, sério, tem certeza que não é nem um pouco trágico?”

Shanna suspirou. “Teve aquela vez que a minha irmã mais nova queimou o pão de mel na manhã do Solstício, porque ela estava paquerando os vizinhos, e a minha irmã mais velha disse que ela tinha arruinado o feriado. Teve lágrimas e tudo.”

Jhoira ajustou a ferramenta em seu olho. “Sabe, Raff, você também não tem um passado trágico.”

“É porque ele mal tem passado,” disse Shanna.

Raff melhorou sua postura. “Vocês não sabem se o meu passado foi trágico ou não.” Jhoira ergueu suas sobrancelhas. Ele tentou: “Não é fácil estudar na Academia Tolariana, sabe.”

“Ela sabe,” notou Shanna.

Jhoira apoiou o queixo na mão, encarando-o pela lente. “E em quantas fendas temporais você se prendeu?”

Raff desinflou. “Eu tinha esquecido disso.”

Arvad parou na soleira e disse “Ah, eles estão aqui.”

Jhoira olhou para o Pé-de-Limo, que tinha se inclinado para examinar os objetos na mesa. “Sim, estão.”

Arvad entrou. “Eles parecem inofensivos. O que você planeja fazer com eles?"

Pé-de-Limo torceu sua parte superior para olhar bem para Jhoira. Ela o observou por um longo momento, e depois sorriu. “Eu devo ter trazido ele com a semente do Molimo, então vamos ter que levá-los de volta a Yavimaya quando tivermos a chance.”

Pé-de-Limo não sabia ao certo como expressar sua gratidão, então ele a entregou outra ferramenta.

Um rugido abafado ressoou de cima, e foi cortado abruptamente. Pé-de-Limo reconheceu o som do fogo, e ordenou que seus brotos ficassem perto.

Raff se endireitou na cadeira, sobressaltado. “O que foi isso?”

“A Chandra e a Jaya, no convés.” Shanna apontou para cima.

“Piromantes lançando bolas de fogo em um navio voador de madeira?” Raff não parecia contente. “É mesmo uma boa idéia?”

Pé-de-Limo achava que era uma ideia terrível.

Arvad parecia resignado. “Não, não é, mas as duas disseram que a Chandra precisa se encontrar, e isso parece envolver bastante fogo.”

“Karn está de olho nelas.” Jhoira ajustou sua lente e pegou outra ferramenta.

Que curioso. Pé-de-Limo ordenou que seus brotos ficassem com Raff, e partiu atrás de mais informações. Ao sair pela porta, Raff chamou: “Ei, onde você vai? Você deixou seus bebês!” Os brotos obedeceram e se amontoaram bem perto da cadeira de Raff.

“Acho que você ficou de babá, Raff,” comentou Shanna.

Pé-de-Limo encontrou a escadaria para o convés e subiu até a luz forte do sol. A primeira coisa que ele viu foi que o navio sobrevoava água. Havia água para todos os lados. Pé-de-Limo sempre teve alguma noção distante de estarem sobrevoando água, mas ver tudo era bem diferente. Ele atravessou o convés e foi até o guarda-mancebo, lembrando-se de quanto tempo parecia ter passado desde que era um broto que mal conseguia se mover, fugindo para salvar sua vida.

O sol aqueceu o chapéu e os poros do Pé-de-Limo, e o calor inundava. O céu era azul e as nuvens deslizavam por ele, e ao longe os sentidos do Pé-de-Limo notaram algum terreno.

Alguém ao lado lhe disse: “Olá, talídia. Eu sou Karn.”

Pé-de-Limo virou-se e acenou. Karn gesticulou na direção da popa. “Não se aproxime das piromantes; elas estão trabalhando, e precisam de muita concentração. Além disso, apesar de não terem feito desde que subiram à bordo, elas são conhecidas por gritar muito alto uma com a outra.” Karn se inclinou para perto, e falou mais baixo. “É irritante.”

Pé-de-Limo se estabeleceu no convés, demonstrando não ter intenção alguma de chegar perto das piromantes. Karn sentou-se ao lado dele e disse: “Estamos a caminho de Urborg, para destruir o demônio Belzenlok na Fortaleza da Cabala.”

Pé-de-Limo observou Karn seriamente. Ele não tinha certeza do que aquilo tudo significava, mas era assustador.

Karn continuou: “Nosso sucesso não é garantido, mas somos um grupo formidável.” Ele hesitou, e depois disse: “Peço desculpas por ter de perturbar a terra de Yavimaya para recuperar o Cílix. Eu sei que atrapalhou todo ser vivo na floresta perto dali. Mas eu imagino que tenha sido necessário. Preciso levá-lo até Nova Phyrexia e destruir o plano de existência deles, de uma vez por todas. Pretendo acabar com eles, para sempre.” Ele olhou atentamente para Pé-de-Limo, esperando uma resposta.

Algo na palavra Phyrexia fez a estrela branca no coração do navio pulsar com— raiva? Medo? Expectativa? Pé-de-Limo não tinha certeza, e sua pele se contraiu reativamente. Karn ainda esperava, e Pé-de-Limo gesticulou com seus caules-de-braço, sinalizando ter entendido.

Karn assentiu, e olhou para longe, para a água. “Os outros crêem que os phyrexianos não são mais uma ameaça, e talvez tenham razão.” O cenho pesado de Karn desceu, e Pé-de-Limo pensou que ele parecia triste e preocupado ao mesmo tempo. Karn adicionou: “Mas eu sinto que quanto mais rápido eu agir, melhor.”

Pé-de-Limo encarou Karn, mas ele não disse mais nada; então Pé-de-Limo ficou ali sentado ao lado dele, observando a água sem fim.


Chandra estava sentada no convés, e trinta e sete bolas de fogo individuais flutuavam acima de sua cabeça. Manter todas elas contidas e em movimento não era fácil, mas Chandra estava conseguindo. “Estou indo bem?” Perguntou ela.

Andando pelo convés atrás dela, Jaya disse: “Se você precisa perguntar, não deve estar indo muito bem.”

Chandra não deixou nenhuma das bolas de fogo escorregar. Não importava o que Jaya achava do seu temperamento; ela tinha bom senso suficiente para não perder o controle em uma aeronau de madeira. E havia coisas que ela precisava saber. “Por que você mudou de ideia e decidiu me ajudar? É por causa do que eu fiz pelo Multani?”

“Em parte.” Jaya se moveu até ficar de frente para ela. “Foi o primeiro indício que eu vi em você de ter a capacidade de se concentrar em alguma coisa por algum período de tempo.”

Chandra manteve sua atenção nas bolas de fogo, e nenhuma delas titubeou. Ela abriu o sorriso. “Eu sei o que você está fazendo. Você está sendo maldosa pra me testar.”

Jaya riu pelo nariz. “Estou sendo honesta pra te testar, garota.”

Chandra teve a impressão de que não era uma piada. “Eu era tão ruim assim?”

Jaya suspirou e voltou a caminhar. “Não tanto assim. Eu vi piores. Teimosos, impacientes, igual a falar com uma porta de pedra, sem ideia alguma do que querem—”

Chandra não se lembrava das coisas desse jeito, apesar de conseguir admitir que era terrível na hora de ouvir a Mãe Luti. Ela pensou sobre como teria se sentido no lugar de Jaya. Eu talvez tivesse comprado uma briga comigo, e me ensinado uma lição dolorosa. Era um pouco intimidante ver quanto autocontrole parecia ser necessário para ser uma piromante poderosa. “Ei, eu não era tão ruim assim. Eu meio que sei o que quero. Às vezes, no caso, mais ou menos.”

“Você sabe o que acha que quer,” corrigiu Jaya. “Igual a mim, antes.” Ela continuou caminhando. “Eu achava que queria minha liberdade. Levei muito tempo para perceber que o que eu realmente queria era ajudar um monte de monges e guiar jovens piromantes. Até os teimosos, como você.”

Chandra abriu um sorriso largo. “É por isso que você não desistiu de mim?”

Jaya suspirou. “Digamos que eu não gosto de negócios inacabados.” Ela deu de ombros, um pouco. “Você não se conhece ainda, então não pensa direito nas coisas. O jeito que você ajudou o Multani me mostrou que você tem alguma ideia de como se ligar com seu eu verdadeiro.” Ela olhou para Chandra novamente, com um olhar sério. “Se você sabe o que realmente quer, você não comete erros.”

Chandra deixou aquelas palavras assentarem em seu coração, pensando sobre o que ela achava que queria, sobre os erros que cometera. Como ela se sentia de verdade. Uma das bolas de fogo mais ao longe fulgurara um pouco, e Chandra a estabilizou. “Minha amiga Nissa nos deixou quando chegamos aqui. Ela não confia na Liliana, e não achava que devíamos matar o Belzenlok, e . . .  eu sei que ela precisava voltar ao seu próprio plano de existência, depois de tudo o que aconteceu por lá. Mas eu me senti como se . . . ”

Jaya a observava. “Como se ela tivesse abandonado você.”

“Aham, e eu acho que é em parte por isso que eu fiquei tão chateada,” admitiu Chandra. “E daí eu gritei contigo quando pensava que você era a Mãe Luti, e gritei contigo pra valer quando descobri quem você é.” Chandra sabia que parecia que ela estava arranjando desculpas. Ela não queria mais depender de desculpas. “Eu sei que não melhora o jeito que eu agi. Mas eu superei isso agora, e estou pronta para queimar Belzenlok e a Cabala deste plano de existência. É isso o que eu quero.”

“Hmm,” disse Jaya.

Chandra arriscou olhar para Jaya, e viu seu olhar fixo no horizonte. Uma mancha escura marcava o céu azul naquele ponto, como se fosse uma nuvem. Como a nuvem de cinzas sobre um vulcão. Chandra apertou os olhos. Eles estavam chegando em Urborg.

Jaya olhou para ela e disse: “Você vai ter sua chance para provar isso, garota.”


Pé-de-Limo conseguia sentir o cheiro de fumaça no vento marinho, e os aromas distantes de podridão e de queimado. Sua pele sentiu um calafrio e ele desceu a escadaria de volta para buscar seus brotos. Era hora de voltar para a segurança do compartimento do motor, para a luz da estrela branca. Por ora.


Perfil da Planeswalker: Liliana Vess
Perfil do Planeswalker: Gideon Jura
Perfil da Planeswalker: Chandra Nalaar
Perfil do Planeswalker: Teferi
Perfil do Planeswalker: Karn
Perfil do Planeswalker: Jaya Ballard
Perfil do Plano: Dominária