História anterior: Ousadia

Anos antes da chegada das Sentinelas à Amonkhet, o destino e o futuro de três crianças teriam efeitos inesperados no destino daquele plano.


Ela o encontrou à beira d'água.

O farfalhar das garças decolando anunciou a presença dela. Ele se virou e lá estava ela, de pé entre os juncos, com as mãos na cintura e as pernas separadas uma da outra, exibindo um sorriso cheio de dentes.

"Você pode se esconder dos outros, mas não pode fugir de mim." A brisa fazia a voz da jovem atravessar a distância.

O garoto aviano agitou suavemente as asas, sentindo-se banhado pela felicidade transbordante dela.

"Não consegui dormir", ele disse, deixando as águas do rio.

Ela fez que sim com a cabeça. "Eu sei. Eu também não."

Nakht bufou ao chegar até ela. Seus pés descalços afundavam na lama das margens. "Sem essa. Eu ouvi você roncando como um vorme de areia quando passei pela sua cama."

Ela riu. "Ei! Eu estava apenas, ahn, fingindo que dormia, seu bobo."

Nakht a encarou com sua melhor imitação de vizir austero. "Samut: rainha dos roncadores, a pior mentirosa de todas."

Samut o empurrou de brincadeira, derrubando-o de volta à agua, com as asas batendo em busca de equilíbrio. Seu breve grito de surpresa se dissolveu em uma gargalhada embaixo d'água. Ele se ergueu em uma posição defensiva, com a água até os joelhos. Os olhos de Samut brilharam com o convite. Ela posicionou os pés e os braços instintivamente, pronta para lutar.

Os dois tinham a mesma idade, mas Samut era quase uma cabeça mais alta que Nakht. Ela era mais rápida, mais forte, e sua posição era mais elevada. Se fosse qualquer outro adversário, Nakht sabia que seria tolo tentar lutar.

Mas ele também conhecia Samut.

Ela avançou contra ele, cruzando a distância entre os dois com uma velocidade surpreendente. Ela saltou para agarrá-lo, fazendo espirrar água por toda parte. Nakht se abaixou, com o corpo mergulhando na água, mantendo o peso equilibrado e os pés firmes no chão. Samut cambaleou, abrindo os braços ao perder o equilíbrio no solo lamacento do rio. Nakht agarrou e puxou a perna dela por baixo d'água. Samut desapareceu com um grito e um som de pancada na água, submergindo.

Mas a vantagem de Nakht durou pouco, pois ele sentiu uma mão forte agarrando seu braço e acabou caindo na água também. Por um momento, tudo eram bolhas e o rebuliço da água. Depois, duas cabeças emergiram na superfície. Nakht sacudia a água das penas, enquanto Samut gargalhava. Ela se levantou na água, com seu curto cabelo escuro emaranhado e molhado, emoldurando seu rosto redondo.

"Não é possível, Nakht! Qualquer dia desses eu consigo te pegar de primeira!"

"Duvido." Nakht pagou pelo sarcasmo com um banho d'água em cheio no rosto.

"Você o teria derrubado de primeira se parasse pra pensar antes de saltar direto à ação."

Samut e Nakht se viraram, surpresos. Na margem do rio, Djeru os observava, e sua tentativa de parecer austero contrastava com o sorriso nos olhos do jovem.

Samut jogou água na direção dele. "Pare de tentar ser tão maduro, Djeru."

Djeru se esquivou com agilidade, dando um passo para trás, fora do alcance da raiva de Samut. "Deveríamos estar nos preparando, e não brincando na água."

"Ei, ninguém pediu para nos seguir até aqui", disse Samut.

"Alguém precisa evitar que vocês dois se metam em encrenca."

Samut virou os olhos enquanto caminhava para fora da água. Nakht voou à frente dela, batendo as asas uma ou duas vezes.

"Eu só  . . . queria me afastar um pouco para pensar", ele disse, pousando. "Pra ficar sozinho, só por um tempo." Ele caminhou pelos juncos para buscar as sandálias onde as havia deixado e, quando se virou de volta, viu Samut de pé, com uma expressão levemente desapontada.

"Ah", ela disse. "Desculpa. Não quis interromper—"

"Não, tudo bem! Não foi isso que eu quis dizer. Não me importo de vocês dois estarem aqui. Sério. É . . . bom saber que posso contar com vocês." Nakht balançou a cabeça. "É que—hoje é a nossa Colheita." Seu olhar cruzou o rio, flutuando em direção ao resto da cidade.

Nactamon se estendia diante deles, com seus orgulhosos monumentos e elevados edifícios assomando ao longe. A luz avermelhada do segundo sol, baixo no horizonte, refletia nas estruturas. Pequenos barcos falucas flutuavam pelo rio, com velas brancas que formavam ângulos acentuados ao longo do horizonte. O primeiro sol surgia discretamente acima do horizonte distante, ainda escondido atrás do templo de Hazoret, com seus raios dourados formando uma auréola iluminada ao redor da silhueta escura do templo.

Todos os dias, os cuidadores ungidos levavam Nakht e as outras crianças aos jardins altos para contemplarem a cidade. Todos os dias, os professores vizires davam aulas para eles. "Apreciem a beleza e as maravilhas de Nactamon", diziam os vizires. "Testemunhem as bênçãos dos deuses que tornaram isto possível." Todos os dias, aparentemente, um novo templo ou santuário grandioso era concluído, em homenagem aos deuses e às tão esperadas Horas. As lições dos vizires sempre abordavam o verdadeiro propósito das pessoas. E agora, no Dia da Colheita, ao completarem doze anos, ele, Djeru e Samut dariam os primeiros passos em direção aos seus caminhos destinados, para descobrirem seus papéis naquela cidade grandiosa.

Samut bagunçou as penas na cabeça de Nakht. "É um dia empolgante, Nakht! Finalmente chegou nossa vez! Hoje, deixamos a infância para trás e seguimos adiante para nos juntarmos àqueles que já deram esses passos. É um dia de inícios, de propósito e de unidade!"

Nakht assentiu com a cabeça, reconhecendo as palavras do vizir Ahmose. Contudo, ele não conseguia se livrar da persistente sensação de preocupação que tomava conta de seu estômago, desde que havia deixado o dormitório no início daquela manhã.

Djeru suspirou. "Deveríamos voltar, pessoal. Os outros já devem ter acordado. Imagino que ainda haja preparativos a serem feitos." Ele se esquivou rapidamente da bola de areia que Samut atirou na direção dele e se virou, subindo as margens de volta ao coração da cidade.

Nakht ficou para trás por alguns instantes. Samut caminhou até ele, com os dedos ainda cheios de areia, e o olhou nos olhos. "Você está preocupado", ela declarou.

Nakht riu. "Você é direta."

"Você pensa demais."

"Você é impulsiva demais."

Os dois se dedicaram às melhores imitações que puderam fazer do vizir Heqet, balançando a cabeça com o dedo no ar.

"Espero que você encontre mais foco no seu treinamento."

"Espero que você aprenda a confiar nos seus instintos."

"Espero que possamos ficar juntos." Nakht deixou escapar um de seus medos, e os dois ficaram em silêncio. Samut parou com o dedo no ar, erguendo as sobrancelhas, surpresa. Nakht tentou se corrigir. "Você, Djeru e eu. Acho que somos um bom grupo. E . . . eu sentiria falta de vocês dois."

Samut ajeitou a postura e concordou com a cabeça. Nakht sentiu o peso dentro dele diminuir um pouco.

"Eu também." Samut olhou de relance para a cidade. "Quero competir pela glória após a vida com você e Djeru ao meu lado. E mesmo que não seja possível . . . se terminarmos em safras diferentes, Oketra nos guiará. "Eu tenho fé nos deuses, cuja fé reside no Deus-Faraó."

Nakht assentiu com as palavras familiares. "Que ele retorne prontamente, e que sejamos considerados dignos", ele disse. Em seguida, as palavras escaparam da boca de Nakht, como que fugindo de seu outro medo. "Mas e se . . . e se eu tiver dúvidas?" Ele desviou o olhar, evitando os olhos questionadores de Samut.

"E se minha fé fraquejar?"

O silêncio entre eles se estendeu, e Nakht se perguntava se havia cometido um erro terrível. Por fim, Samut falou.

"Você não é um dissidente, Nakht." A voz de Samut era baixa e tranquila. "Todos nós tememos. Todos nós fraquejamos. Eu também tenho tido dúvidas." Samut apontou para as dunas de areia a pouca distância dali. "Nem mesmo o grande Hekma é impenetrável. Ouvimos histórias de monstruosidades errantes que acabaram entrando." Nakht assentiu, com os olhos percorrendo o brilho da barreira que os protegia da vastidão além. Areia escaldante, em redemoinhos de tempestades incontroláveis, contidas do lado de fora da barreira, detidas por aquela magia poderosa. A apenas alguns passos das dunas mortas e secas, a exuberância verde florescia, alimentada pelo rio Luxa.

Samut respirou fundo. "Mas eu sei que os deuses são verdadeiros. Eles nos protegem desses horrores. E nos guiam em direção à glória. É como o vizir Heqet diz. Quer dizer, é como ele diz, quando não está gritando conosco. 'Ter fé é questionar, é encarar a dúvida e encontrar a verdade renovada'."

Nakht balançou a cabeça. "Você prestava mais atenção nas aulas do que eu imaginava."

Um sorriso se abriu lentamente no rosto de Samut. "Como eu disse antes: Eu só finjo que durmo."

Nakht a empurrou e correu para alcançar Djeru, que havia parado na ponte à frente, esperando pacientemente por eles. Samut apressou os passos para ultrapassar os dois, enquanto o primeiro sol surgia acima dos templos distantes, e até Djeru se juntou à corrida. As ansiedades de Nakht derreteram sob o calor solar.


"Psiu. Nakht."

Nakht abriu os olhos.

"Nakht. Ei, Nakht." A voz se tornou um pouco mais alta e mais urgente. Ele continuou parado em silêncio.

"Nakht. Nakht. Nakht. Eu disse, Nakht." A cama de Nakht começou a sacudir, até que ele se virou, com as asas fechadas atrás dele, e se deparou com o rosto ansioso de Samut.

"Está acordado, Nakht?"

Nakht se segurou para não rir da seriedade na pergunta de Samut. "Não", ele disse, e voltou a se virar de barriga para baixo.

"Ah, anda", ela disse, puxando o braço dele. Nakht rolou de volta, sentando na cama.

"Não consegui dormir", Samut disse, sentando-se ao lado dele.

"Nenhum de nós conseguiu, graças a você, Samut", resmungou uma voz no escuro. O rosto mal-humorado de Djeru surgiu na semiescuridão, se contorcendo em um bocejo.

Outra voz de uma cama próxima murmurou: "Shh, pessoal", como se estivesse tentando apoiar Djeru. Outras vozes murmuraram concordando e, atrás de Djeru, Nakht viu as formas de vários ungidos caminhando lentamente em direção a eles. Ele fez um gesto de silêncio e agarrou a mão de Djeru e Samut. O trio se abaixou e engatinhou por baixo das camas e baús, pausando para deixar os pés enfaixados passarem. Quando chegaram bem perto das portas principais, rolaram e correram para a liberdade. Os cuidadores ungidos não notaram as portas se abrindo, e um clarão de luz vermelha noturna dançando sobre as fileiras de camas, enquanto os três fugiam.

Atrás deles, o Pavilhão Infantil parecia grande e levemente sinistro. A luz rubra do segundo sol projetava sombras profundas sobre a faixada do edifício. Os três entraram rapidamente em um beco e chegaram a um chafariz adornado com uma estátua de Kefnet—o local onde costumavam se esconder nas noites frescas quando fugiam do dormitório.

Djeru bocejou outra vez, e Samut deu um tapa na cabeça dele. "Você estava dormindo mesmo? Como pode não estar empolgado?" Ela olhava para ele, incrédula.

"Para sua informação, eu consigo dormir mesmo estando empolgado", respondeu Djeru.

Samut virou os olhos. "Você é tão chato, Djeru."

"Desculpa, Samut, mas eu concordo com Djeru dessa vez", disse Nakht. "Amanhã começamos nosso treinamento como discípulos. Temos que estar bem descansados."

"Dormir é para quem não tem ambição! Somos Djeru, Nakht e Samut da safra Tah!" Samut estufou o peito. Os garotos resmungaram, mas por trás da atitude blasé, os dois vibravam de empolgação. Samut continuou. "Setha e Besetha também estão na nossa safra. Mal posso esperar para conhecer todo mundo e começarmos a treinar juntos!"

Djeru assentiu com a cabeça. "Tudo bem, mas imagino que Nakht tenha treinamentos separado de nós."

Samut fechou a cara. "Quer dizer, lições de voo e coisas assim?"

"Você não estava prestando atenção durante a Colheita? Nakht recebeu um cajado, e nós recebemos espadas khopesh." Djeru sorriu para Nakht. "Parece que você escondeu um segredo de nós."

Samut lançou um olhar inquisidor para Nakht, e as penas na cabeça dele se atiçaram com o leve embaraço. "Não é segredo nenhum. É que ainda não tive chance de contar pra vocês. E é algo que ainda nem consigo controlar, na verdade." Depois de olhar de relance para Djeru, Nakht direcionou o foco para o chafariz atrás deles.

Ele ergueu uma mão, respirou fundo e fechou os olhos. Na escuridão, ele ouviu o borbulho da água, seguido pelas exclamações de surpresa de Djeru e Samut. O aviano fez um gesto com a mão e puxou mentalmente, abrindo os olhos quando um pequeno jorro de água saltou rodopiando do chafariz e dançou ao redor de seus dedos. A água fluía sem tocar de fato a pele de Nakht, rodopiando e formando uma pequena esfera na palma da mão dele, tremendo brevemente e explodindo como uma uva rechonchuda.

Samut soltou um assobio baixo. "Isso é incrível! Como você—quando você descobriu?"

Nakht mergulhou a mão na fonte, desfrutando do frescor da água. "Apenas recentemente. Descobri quando me movia no rio, o rio às vezes . . . escutava e seguia meus pensamentos."

Djeru sorriu. "Todos dizem que é importante ter magos em uma safra. Você deixará todos nós mais fortes com suas habilidades."

"Fico tão feliz por termos ficado juntos. Nós três seremos invencíveis!" Samut agarrou Nakht em uma chave de braço e bagunçou as penas dele. Nakht riu e se debateu para se libertar, mas acabou esbarrando em Djeru e derrubando-o dentro do chafariz. Djeru saiu do chafariz, encharcado, com uma expressão séria e contrariada. Samut se curvou, rindo de Djeru todo molhado, até que Djeru a arremessou dentro do chafariz também. Os três deram início a uma série de brincadeiras envolvendo empurrões e agarrões, tentando prender o riso no silêncio da noite.

Depois de se cansarem, os três se sentaram à beira do chafariz, recuperando o fôlego. De repente, Samut ficou de pé e se virou para os dois garotos.

"Eu também tenho um segredo", ela declarou.

E partiu correndo, no meio da noite. Djeru e Nakht se entreolharam, deram de ombros e correram atrás dela.


Nakht nunca havia estado naquela parte da cidade. Samut os guiou por uma série de curvas e esquinas, passando por becos estreitos até chegarem a um distrito abandonado, longe do centro e dos monumentos principais. Nakht imaginou que a área costumava abrigar alojamentos, mas quando os novos pavilhões foram erguidos, grande parte das antigas construções foram abandonadas e esquecidas. Os edifícios que ainda restavam de pé naquele distrito eram antigos, desgastados pelo sol e pelo tempo. Camadas mais recentes de cômodos e telhados escondiam os vestígios mais dilapidados das estruturas do passado. À medida que iam avançando, até os hieróglifos nos muros pareciam diferentes dos que Nakht havia estudado, com vários símbolos que ele não reconhecia.

Ele levantou voo para alcançá-los. Samut corria com velocidade e resistência quase incomparáveis, mesmo entre as crianças mais velhas. Djeru era um dos poucos que se equiparavam a ela. Nakht sabia que Samut havia reduzido a velocidade por causa dele e, mesmo assim, chegou sem fôlego quando eles pararam na estreita passagem que se abria para uma pequena praça.

“Que lugar é esse, Samut?” Djeru respirava um pouco ofegante, limpando o suor da testa.

Samut apontou para um mural imenso em uma parede antiga em ruínas, no outro lado da praça. As pinturas estavam esmaecidas, e as partes entalhadas já quase sem relevo. “Não sei bem, mas é antigo. Muito antigo. Provavelmente mais velho do que qualquer pessoa que conhecemos.”

Nakht se aproximou do mural, apertando os olhos para tentar decifrar o significado. A pintura ilustrava figuras em diversas poses. Algumas pareciam quase familiares, como as poses de combate ensinadas pelos vizires, mas várias outras não faziam nenhum sentido. Também havia mais glifos e runas que Nakht não conseguia ler, entrelaçados com outros que ele conhecia. Mesmo aqueles que ele conseguia ler tinham floreios e variações estranhas, resultando em um estilo muito diferente.

“Que estranho”, ele murmurou.

Djeru parecia um pouco desconfortável. Os deuses nos ensinam a não perder tempo com o que é antigo e já passou. As Provas e a glória após a vida estão à nossa frente, não atrás de nós."

"Mas olhem—os deuses estão aqui também! Nestes murais antigos. Aqui está Hazoret." Samut apontou para uma figura alta em uma pintura, e Nakht percebeu que era de fato Hazoret—mas ela parecia diferente, representada em um estilo diferente de tudo que ele já havia visto. Hazoret observou as figuras menores: humanos, avianos, ainok, minotauros e naga, todos nas mais variadas poses.

"O que você acha que estão fazendo?" Eu perguntei, apontando para as poses estranhas.

Samut sorriu. "Esse é o meu segredo. Eu andei tentando descobrir. Acho que são antigas posições de luta, formas de movimentação ou algo assim."

E com isso, Samut assumiu a primeira posição no mural: uma pose vigorosa e familiar, com os pés firmes no chão para manter o equilíbrio. Mas quando ela começou a se mover, seu corpo fluía com ritmo e pulsação diferentes de qualquer forma de luta, fluida e ágil, forte, porém flexível, como um junco se curvando ao vento. Ela repetiu cada pose representada no mural, com os pés arrastando a terra do chão, enquanto seus gestos começavam a despertar um reconhecimento na mente de Nakht. Ela se move como eu voo, ele percebeu—músculos guiados por instintos primários, mais do que pelo pensamento. Memórias ancestrais transmitidas por algo mais profundo do que apenas palavras ou sangue.

Samut parou subitamente, estremecendo em sua posição de estátua. "Eu só cheguei até aqui por enquanto", ela confessou.

"Isso foi . . . lindo." Nakht sorriu. Samut ficou ruborizada. Djeru tossiu.

"Será que este é um templo antigo de Hazoret?", Samut mudou de assunto. "Ele parece . . . importante, de alguma forma, sabe?"

"Não sei", interveio Djeru. Ele se aproximou de Samut, olhando para o mural, com uma expressão de suspeita, em vez de curiosidade. "E se for, por que foi abandonado? Por que as figuras e os glifos parecem tão estranhos? Talvez . . . talvez não devêssemos estar aqui."

"Você é sempre um estraga-prazeres." Samut deu um soco no braço de Djeru.

"Só acho que deveríamos ter cuidado", ele disse, esfregando o hematoma que já se formava no braço.

Samut bufou. "Você podia relaxar um pouco, Djeru. Kefnet exige que os iniciados façam perguntas e tenham uma mente questionadora."

"Oketra ensina que uma safra deve ter disciplina."

Os dois começaram a discutir, citando os deuses e xingando um ao outro com nomes infantis. Nakht os ignorava enquanto percorria o mural esmaecido com os dedos, parado aos pés da representação de Hazoret.

"Quase nos faz pensar", ele pensou em voz alta, "se houve uma época antes dos deuses."

O silêncio repentino trouxe Nakht de volta à realidade. Ele se virou e se deparou com Djeru e Samut olhando para ele.

"O Deus-Faraó é eterno." Djeru ergueu uma sobrancelha para ele.

"É claro", disse Nakht.

Os três permaneceram em um silêncio constrangedor.

". . . que ele retorne prontamente, e que sejamos considerados dignos", Samut disse.

"Obrigado. Sim." Nakht agitou as asas. Djeru fechou a cara.

"É que—bem, se o Deus-Faraó se encontra ausente, será que houve uma época antes da primeira chegada dele?" Nakht podia sentir o desconforto crescente de Djeru e Samut, mas continuou. "Se ele ensinou aos deuses, e os deuses nos ensinam, quem ensinou a ele antes?"

"O Deus-Faraó não precisa ser ensinado. Ele é a origem de tudo", Djeru respondeu. "Essa é a primeira coisa que aprendemos em nossas lições."

Samut grunhiu em voz baixa. "Por favor, não o incentive, Nakht. Mal pude sobreviver a essa lição do vizir Heqet, não acho que poderei sobreviver depois de ouvir Djeru explicando porcamente."

A tensão se aliviou e Djeru riu enquanto Nakht sorria timidamente.

". . . De qualquer forma, agora vocês sabem meu segredo." Samut deu um soco no peito de Djeru. "Sua vez."

Djeru piscou. "Minha vez?"

"Nakht e eu compartilhamos um segredo." Samut acenou com a cabeça solenemente. "Nada mais justo do que você compartilhar um também."

Djeru parecia perplexo. "Eu não tenho nenhum segredo", ele disse.

"Mentira", disse Samut. "Eu sei que nem você pode ser tão chato assim, Djeru."

Djeru pensou por alguns instantes, e então seu rosto se iluminou.

"Bem", ele disse, "não é de fato um segredo. Quer dizer, é sim, mas só porque não tive chance de contar ainda."

"Pare de mistério e mostre logo!" Samut cutucou Djeru no peito. Djeru sorriu e apressou os passos, deixando a praça. Samut o seguiu rapidamente.

"Então . . . acho que não vamos dormir hoje", Nakht disse, ficando para trás.


Nakht olhava com os olhos arregalados, sem acreditar no que via. Ele esticou a mão e sentiu a barreira semitranslúcida do Hekma, brilhante e incandescente. Apesar de ser criada com uma poderosa magia de água, a barreira era sólida, impenetrável, uma muralha resistente o bastante para deter a areia e as sombras que espreitavam o deserto.

Do outro lado, Djeru acenava, sorrindo de forma travessa.

Samut e Nakht assistiram aos esforços do amigo se arrastando para passar pelo buraco quase invisível no Hekma. Em pouco tempo, ele estava de volta ao lado deles, e a única evidência da passagem dele era um pequeno rastro deixado na areia, e o ar escaldante que soprava nas canelas dos três.

"Temos que ir lá fora", disse Nakht.

As palavras dele apagaram o sorriso no rosto de Djeru instantaneamente.

"Sem chance", disse Djeru. "Temos que contar aos vizires de Kefnet, para que eles possam consertar o buraco."

Para que serve um segredo se você contar logo de cara?" Nakht perguntou.

Djeru balançou a cabeça com veemência. "Como eu disse, não é de fato um segredo. Eu achei o local ontem, quando estava procurando vocês dois, e simplesmente não tive chance de contar a ninguém ainda."

"Então mais uma hora ou duas não farão diferença." Até Nakht estava surpreso com as palavras que saíam do bico dele. Mas o mural de Samut havia despertado algo dentro dele. "Eu quero saber o que tem do outro lado."

Os olhos de Djeru se estreitaram. "Nós sabemos o que tem do outro lado. Monstros, mortos perambulantes, vazio e deserto. É para onde os anjos levam os dissidentes, para que nosso foco e devoção permaneçam puros."

"Nós sabemos o que nos contaram sobre o outro lado", argumentou Nakht. Ele sentiu o peso das próprias palavras, mas continuou. "Eu quero ver com meus próprios olhos. Antes de começarmos nosso caminho nas Provas."

"Não sei bem se você compreende o que está dizendo." Os olhos de Djeru se arregalavam à medida que Nakht falava, e ele balançava a cabeça fervorosamente. "Você está parecendo um, um—"

"Um dissidente. Eu sei." Nakht piscou e ficou surpreso em perceber que haviam lágrimas se formando em seus olhos, de medos suprimidos emergindo à superfície. "Eu não sou. Pelo menos não acho que eu seja. Eu amo os deuses—quando Oketra caminhava entre nós durante as lições eu me sentia tão feliz. Quando Rhonas assistiu ao nosso treinamento naquela tarde, eu senti um orgulho e uma força como nunca havia sentido antes."

Ele olhou para além da barreira e sentiu o vento quente batendo nos pés. "Mas meu coração ainda está cheio de perguntas. Aquele mural me encheu de dúvidas. Enquanto os deuses e vizires nos dão respostas, eu só enxergo mais perguntas à nossa volta. Estou prestes a explodir e . . . preciso saber. Preciso ver, encontrar, por conta própria."

"O que você espera encontrar?" Djeru tentou soar austero, mas Nakht percebeu a hesitação na voz dele.

"Não sei." Nakht riu e esfregou os olhos. "Provavelmente algo tolo, provavelmente nada, mas . . . quando teremos outra chance de vermos com nossos próprios olhos?"

Os três permaneceram às margens do Hekma, observando a agitação da areia. Por fim, Samut se pronunciou.

"Você é a pessoa menos tola que eu conheço, Nakht. E . . . eu quero saber também." Ela se virou para Djeru. "Teremos cuidado, seremos rápidos e voltaremos bem antes do amanhecer. Quem sabe, até poderemos achar algo que seja útil para o início do nosso treinamento como discípulos da safra Tah."

Ela apertou o ombro de Nakht, sorriu e se abaixou para começar a engatinhar até o outro lado da barreira. Djeru a observava, com uma expressão preocupada, mas não fez nada para detê-la. Nakht colocou a mão no ombro do amigo. "Você não precisa vir, Djeru. Eu jamais culparia você." Ele se virou e engatinhou atrás de Samut.

De trás dele, Nakht ouviu Djeru suspirar. "Vizir Heqet nos mataria se soubesse."

"Que bom que não teremos mais aulas com ele", Samut gritou à frente.


O calor implacável oprimia o trio. Mesmo ainda sendo noite, o efeito do sol solitário ainda fazia com que os três se afogassem em suor.

Estavam andando pela areia há cerca de uma hora, sempre com Nactamon à vista atrás deles. Djeru parecia tenso, mas Samut estava realmente empolgada, e a energia dela ajudava a aliviar a crescente intranquilidade do grupo. Inicialmente, tudo que os vizires haviam ensinado parecia ser verdade. Eles caminhavam por um mundo morto, com nada além de areia entre os pés e ventos escaldantes nas costas. Mesmo assim, eles ficavam alertas, pois as histórias de monstros e mortos-vivos amaldiçoados tentando atravessar o Hekma passavam pela mente dos três repetidamente.

Até que eles encontraram.

Nakht foi o primeiro a avistar o que parecia ser apenas uma formação rochosa na areia. Uma pedra qualquer, se sobressaindo como uma farpa rebelde. Eles caminharam até ela, basicamente porque era a única opção além de andar em direção a nada. Quando chegaram, Samut subiu na pedra, percorreu o comprimento dela, pulou para o outro lado e deu um breve grito de surpresa. Djeru e Nakht correram até lá e viram o que a havia surpreendido—um enorme olho que surgia sobre a areia, o rosto semienterrado de uma estátua gigante de pedra, olhando eternamente para o nada.

Além da estátua enterrada, um verdadeiro campo minado de ruínas surgia da areia. A maior parte das pedras estava desgastada pelo sol e pelo vento. Em algumas, ainda havia vestígios de glifos e escritas. Os três andaram entre elas, parando em diversas pedras, tentando adivinhar o que foram. O telhado de um edifício, talvez um quartel de treinamento. Uma espécie de templo abandonado de algum deus, com a figura ainda entalhada em uma coluna quebrada, mais alta que os humanos abaixo, mas a face já desfigurada pelas intempéries. Muitos fragmentos e partes salientes de pedra eram impossíveis de serem reconhecidos. Samut logo começou a adivinhar histórias excêntricas para cada ruína que encontravam.

"Bem", disse Djeru, balançando a cabeça quando Samut sugeriu que uma laje de pedra era o chão de um sala composta inteiramente por penicos, "Uma coisa é certa: esta é a prova de que sem o abençoado Hekma do Deus-Faraó, tudo definha e desaparece."

Olhando em volta, Nakht não pôde refutar a alegação de Djeru.

De repente, Samut os empurrou para trás das ruínas de um muro, pressionando-os com força contra a pedra quente. Os protestos dos dois se calaram com o horror nos olhos dela, e o inesperado som de areias se movendo. Nakht se inclinou lentamente até a beira do muro e deu uma olhada em volta.

Ao longe, a silhueta de uma  . . . criatura se movia pela areia. Mais alta até que os deuses, com membros bizarros que pareciam não ter fim, ela achatava as duna e remodelava a areia ao redor enquanto perambulava no horizonte. Um estranho gemido grave reverberava pelo ar, enviando ondas de choque que agitavam a areia e ressoavam nos estômagos e nos ossos dos três.

Nakht virou de costas para Samut e Djeru. “O que, em nome dos deuses, é essa coisa?”, ele sussurrou, com os olhos arregalados.

“Não sei e não quero saber.” Samut olhava por trás da outra beira do muro, observando os movimentos da criatura. De repente, ela avançou adiante. Djeru e Nakht correram atrás dela, e os três deslizaram por uma duna em direção a uma poça rasa de água fétida—vestígios do que deveria ter sido um oásis.

Eles não pararam de correr até atravessarem para o outro lado e se agacharem no interior das ruínas de um santuário. A pequena estrutura de pedra ainda tinha suas quatro paredes, mas havia perdido o telhado há tempos, destruído em alguma calamidade no passado. Samut e Djeru ficaram perto da entrada, segurando a porta de madeira deteriorada para que ficasse aberta apenas o bastante para espiarem na direção da criatura monstruosa.

“Certo. Calor infinito. Areia. Destruição. Desolação. Demônios e monstros doidos. Djeru listava os itens contando os dedos. “O deserto tem tudo que nos ensinaram. Estão felizes agora? Podemos voltar?”

Nakht começou a responder, mas algo chamou a atenção dele atrás de Djeru. Os hieroglifos naquele santuário estavam muito mais legíveis, com um estilo mais parecido com as escritas que eles haviam aprendido no treinamento. Na parede atrás de Djeru, o símbolo do Deus-Faraó aparecia como uma coroa, emoldurando sua expressão preocupada. Diferente de tudo que eles haviam visto naquelas ruínas, o símbolo parecia recém-talhado, tosco e inacabado, como se fosse feito por uma mão desesperada. Logo abaixo do símbolo, uma única palavra aparecia gravada em garranchos trêmulos:

Intruso.

Samut também viu e virou-se para Nakht com um olhar interrogativo. Nakht deu de ombros. A palavra parecia um mau agouro, uma maldição que atravessava o tempo, vindo do próprio Deus-Faraó. Não deveríamos estar aqui, ele pensou.

“Me desculpe, Djeru. Você tinha razão. Não deveríamos ter vindo.” Outro calafrio subiu pela espinha de Nakht, apesar do calor opressivo.

Samut voltou a atenção para o lado de fora novamente. “Vamos voltar para Nactamon antes—o que são essas coisas?!

Samut abriu um pouco mais a porta para que eles pudessem ver. No mesmo instante, Nakht preferiu não ter visto. Da água estagnada e da areia ao redor, começaram a surgir cadáveres apodrecidos. Humanos, chacais, avianos. Suas gargantas secas e definhadas emitiam grunhidos furiosos, enquanto saíam da água cambaleando, formando uma horda em direção às três crianças.

“Dissidentes”, Djeru se afastou da entrada, com um verdadeira máscara de horror no rosto. “Ressurgidos pela maldição dos andarilhos.”

Samut fechou a porta com força assim que o primeiro cadáver avançou contra eles. A madeira envelhecida estalou e rangeu com o impacto, e Djeru rapidamente se posicionou para ajudar a manter a porta fechada. Garras e mãos mortas arranhavam e despedaçavam a madeira, e os grunhidos se tornaram um rugido intenso à medida que mais deles se juntavam do lado de fora.

“Estamos encurralados!” Samut exclamou. Nakht se afastou da porta assim que uma garra conseguiu atravessá-la. Djeru gritou e se abaixou, enquanto a mão se agitava violentamente no ar, em busca de carne.

Nakht abriu as asas e levantou voo. Rapidamente ele se viu acima do santuário, enxergando claramente a multidão de mortos ressurgidos abaixo.

São tantos.

Ele olhou para baixo, vendo cada vez mais ressurgidos avançando em direção ao pequeno santuário de pedra. Samut e Djeru jamais conseguiriam resistir por muito tempo. Ele precisava fazer algo. Em meio ao medo, à dúvida e ao pânico, um breve esboço de plano passou pela mente de Nakht, e ele o colocou em prática imediatamente.

Não era um bom plano. Mas o desespero não permitiu que ele tivesse tempo para buscar alternativas.

Nakht deu um mergulho, sobrevoando o amontoado de ressurgidos, perto o bastante para chamar a atenção deles. Garras definhadas e mãos apodrecidas se enroscavam para agarrá-lo. O jovem aviano voltou a sobrevoar a água, emitindo um agudo chiado e desviando a atenção da horda para ele. A horda mudou de direção e ele chamou os amigos, gritando.

"Djeru! Samut! Corram, agora!”

A porta se abriu com violência, derrubando os poucos retardatários que ainda estavam por ali. Samut e Djeru partiram correndo.

“Corram! Rápido!”

O primeiro dos ressurgidos entrou na água fazendo estardalhaço, e Nakht voltou sua atenção para a multidão que agora avançava contra ele. Ele batia as asas com força contra o ar seco do deserto, mantendo uma distância calculada das mãos e garras que queriam pegá-lo.
Quando a maioria da horda já estava dentro d’água, ele respirou fundo, ergueu as mãos e fechou os olhos.

Abaixo dele, a água rasa se agitava e começava a girar.

Kefnet, conceda-me sabedoria; Rhonas, conceda-me força, ele orava.

Nakht abriu os olhos e cerrou os punhos. A água estagnada abaixo dele girava em um redemoinho, produzindo tentáculos aquáticos que golpeavam os ressurgidos, derrubando alguns e puxando outros para debaixo d’água.

Nakht olhou de volta para os amigos e os viu parados do lado de fora do santuário, assistindo a tudo aquilo com um misto de terror e admiração. “Vamos, andem!”, ele gritou. Ele mantinha as mãos erguidas, tentando manter o foco enquanto voava mais alto, de volta para os amigos parados na areia. Finalmente, Djeru e Samut se viraram e começaram a correr em direção à cidade. Em um voo rasante, Nakht começava a se aproximar deles, deixando os insistentes grunhidos da horda para trás.

De repente, um súbito pavor tomou conta de seu corpo, e todos os seus músculos congelaram. Atrás dele, a água parou de se agitar, pois ele havia perdido o controle do feitiço, mas todos os ressurgidos também estavam paralisados. As asas dele continuavam batendo, mas ele não conseguia voar adiante.

O pânico o invadiu, sua mente gritava para continuar, fugir, fazer algo, mas seu corpo se recusava a obedecer. Lentamente, com um grito rasgando seus pensamentos e saindo de sua garganta em um fraco grasnido, ele virou a cabeça para olhar para trás.

O grande horror que ele havia visto antes estava lá, no alto de uma grande duna ao longe. O rosto da monstruosidade—ou onde deveria haver um rosto—estava virado na direção de Nakht. Ele sentiu um pavor completo, como pedras de gelo percorrendo seu corpo. Ele piscou, sentindo os músculos das asas ardendo com o esforço de voar sem sair do lugar.

Quando abriu os olhos, o horror estava bem diante dele.

Uma espécie de máscara óssea cobria sua face. No lugar do olho, apenas um orifício iluminado. O vazio infinito, um corpo de escuridão, o horror ambulante e a angústia desesperadora.

Um membro de comprimento impossível se esticou na direção de Nakht, em uma velocidade tediosa, quase flutuante.

A cacofonia dos gritos de avianos ressoava em seus ouvidos e, pelo canto do olho, ele viu formas aladas de mortos-vivos, pairando e voando, rodeando um cadáver, dando vozes eternas à sombra muda.

O grasnido de Nakht assumiu a forma de um grito mais forte.

E então a escuridão o consumiu.


Samut chegou ao alto da duna e parou, tentando enxergar Nakht. Seu corpo enrijeceu quando ela se deparou com a monstruosidade gigante e, boquiaberta, ela assistiu ao horror sombrio tocando seu amigo aviano. Ela ouviu seu último grito pungente, desesperado, e instantaneamente o toque monstruoso o fez murchar e definhar, transformando-o em uma carcaça sem vida. Um grito angustiado escapou dos lábios de Samut, mas Djeru a derrubou no mesmo instante com um salto, e os dois caíram rolando pelo outro lado da duna, em meio a uma profusão de areia. Quando terminaram de rolar, os dois ficaram parados, semienterrados, com os corações aflitos, ouvindo os sons dos horrores que haviam testemunhado, cada vez mais distantes. Somente quando o sol maior surgiu no horizonte, e o único som que chegava aos ouvidos deles era o assovio do vento incessante, os dois se levantaram e correram, à toda velocidade, desesperados, de volta à cidade.

O tempo passou em ondas furiosas, enterrando aquele momento no fundo dos corações das duas crianças. No entanto, das sementes daquela dor, cresceram pensamentos e perguntas divergentes, que produziram frutos muito diferentes.

Um coração, endurecido pelo sacrifício que havia testemunhado, encontrou uma fé mais profunda nas palavras dos deuses, nas proteções prometidas e na chance de uma morte gloriosa. O outro, despedaçado pela perda sem sentido, se cobriu de dúvidas e perguntas, buscando consolo e clareza no passado, em vez da marcha incessante em direção ao futuro e à glória após a vida.

E assim, o tempo passou, inexorável e constante como a correnteza do Luxa. As crianças tornaram-se jovens adultos. Discípulos tornaram-se iniciados, seguindo o caminho das Provas, como decretado pelo Deus-Faraó e conduzido pelos deuses. Mas em nenhum momento da jornada que deveriam seguir, eles se esqueceram da intrusão de quando eram crianças.

A busca pelas verdades há muito tempo esquecidas levou Samut de volta, repetidas vezes, ao mural que ela havia compartilhado com Nakht e Djeru. Quando a tristeza constante em sua memória chegava a causar dor física, quando o luto pela súbita perda do amigo voltava à tona, ela mergulhava mais fundo nas partes antigas e abandonadas de Nactamon. Fragmentos do que eles haviam visto do lado de fora do Hekma, vagas lembranças de glifos tentadores nas ruínas que ela não podia mais alcançar, arranhavam os limites de sua compreensão. A cada novo pedaço do passado que ela encontrava, aumentavam suas dúvidas sobre as Provas e a verdadeira natureza dos deuses.

E assim ela passava tanto tempo entre as pedras quanto passava com os outros iniciados, pesquisando com a curiosidade emprestada de Nakht, tentando desesperadamente materializar a dança e os movimentos de uma história secreta.

Foi isso que a levou, em um dia fatídico, quando o segundo sol se aproximava de seu zênite final entre os chifres do prometido Deus-Faraó, a uma câmara trancada nas profundezas do Monumento de Bontu. Ali, naquele lugar esquecido por Bontu, onde nenhum iniciado deveria estar, ela descobriu um glifo que não via desde sua jornada pelo deserto.

As paredes da câmara sombria falavam da primeira chegada do Deus-Faraó a Amonkhet, de sua eminência e poder. Seus chifres, o símbolo onipresente tão comum por toda Nactamon, reinavam absolutos. Mas os hieróglifos não o chamavam de Deus-Faraó, e sim de algum nome que ela não conseguia decifrar, escrito em uma grafia antiga e esquecida pelo tempo. Contudo, abaixo do nome impronunciável, havia um título que Samut reconheceu:

Intruso.

No mesmo instante, lembranças do santuário esquecido no deserto voltaram à mente da jovem. À medida que Samut estudava o resto da parede, que retratava uma grande e terrível destruição, a compreensão gelou seu estômago.

Nós não somos os intrusos, impedidos de pisar no deserto.

O Deus-Faraó é o Grande Intruso.

De um mundo diferente, nascido em outro lugar, ele chegou e depois partiu, e na ausência dele, nós buscamos significado.

Ele não nos salvou da calamidade.

Foi ele que a causou.

Todas as histórias contadas às crianças, todos os mitos do Deus-Faraó, de como ele nasceu do caos, como ele trouxe ordem após a destruição, e seu prometido retorno glorioso, ela enxergava agora com a mais dolorosa clareza; a verdade atravessava o coração de Samut, fazendo-o sangrar.

O povo havia sido enganado. A verdade havia sido abandonada. Os deuses foram ludibriados—ou de alguma foram obrigados a esquecer.

Ela precisava contar para todo mundo.

Ela deixou a câmara, correndo em uma velocidade sobrenatural, enquanto uma magia obscura lentamente dava vida às runas.

No lado de fora, o sol vermelho se aproximava cada vez mais de seu local de repouso final.


Amonkhet História do Arquivo