Conto anterior: Insubmissa, Parte 2


Das várias mentiras que ela recitara para o Barão de Vernot, o processo de adicionar outra vida ao Arco Bestial não foi uma delas. A relíquia realmente tirava uma imagem dos moribundos, mas a feitiçaria imbuída nos ossos do Arco Bestial não parava ali, transformando cada memória em frangalhos de uma criatura prestes a morrer para o animal no seu ápice. Houve uma época em que Vivien, é claro, não era a única que sabia realizar o ritual. Xamãs como ela também tinham esse conhecimento.

Mas agora Vivien era a última sobrevivente de Skalla.

E o Barão não estava disposto a confiar em suas afirmações. Para a surpresa de absolutamente ninguém, o Barão recrutou uma pequena frota de secretários para seguir Vivien, com pergaminhos debaixo do braço e penas em suas mãos dominantes. Eles eram, por sua vez, seguidos por coroinhas que carregavam tinteiros. “Para a posteridade,” informou ele a Vivien, girando conhaque em uma taça de cor âmbar quase translúcida, e sua face era uma tempestade de desconfiança.

O que surpreendeu Vivien foi o equipamento que trouxeram até o salão de bailes em carrinhos: halos de fios com postes metálicos, artefatos de filigrana com gravações de feitiçarias que ela não reconheceu. Sua confusão não durou muito tempo. Rapidamente, os lacaios do Barão montaram o aparelho em torno do monstrossauro moribundo. Mais freiras foram chamadas para o cômodo, e cantarolando um par de acordes elas conjuraram uma barreira brilhante.

“Para dentro,” disse o Barão.

Vivien obedeceu.

Não haveria outra oportunidade de revisitar o processo - não como Vivien pretendia, não com a verdade que ela deixou escondida atrás dos dentes como os últimos ritos de um mundo morto há muito tempo. Ela tinha uma só oportunidade de fazer direito. A planinauta passou seus dedos levemente pela superfície da barreira mágica. Apesar de ser quase translúcida, pelo tato ela parecia uma cortina de aço.

Vivien se agachou ao lado do monstrossauro, o réptil agora tão fraco que mal se mexeu com o toque, apenas expirou chacoalhado e letárgico; seu hálito moribundo fedia a bile e ferrugem e carniça e muito, mas muito levemente, uma essência de açafrão e lavanda. Ele fechou e abriu olhos úmidos para Vivien, e seus dutos lacrimejavam uma emulsão cálcica.

“Anestesia,” disse ela, com voz baixa.

As freiras se entreolharam, e os escribas também.

“Ou álcool. O que sua generosidade permitir.” Vivien apertou os lábios. “Eu sei que não é parte do seus credos pessoais, mas o Arco Bestial é preciso e excruciante. Se ele levar esta coisa no ápice da dor, a invocação terá uma condição similar. Como pode imaginar, é difícil lutar quando está semi-enlouquecido de dor.”

O Barão bebeu seu conhaque, serviu-se novamente, e gesticulou irritado para as freiras. “Façam o que ela pede.”

As freiras obedeceram. Enquanto a magia delas se entranhava pelo monstrossauro, ele suspirou e se deitou bruscamente, parecendo se afundar em si mesmo, retirando-se na nova dormência. Seus olhos voltearam e fecharam lentamente, e a interrupção entre cada respiração começou a ficar mais pausada.

“Agora sim,” disse Vivien, murmurando uma oração para as cinzas de Skalla, com voz tão baixa que nem os mortos-vivos de Luneau conseguiriam discernir seus louvores. Um último carinho no focinho largo do monstrossauro, e Vivien se levantou, apoiando seu peso no Arco Bestial contra uma rachadura no piso.

Ninguém mais tentava fingir apatia. Todos os presentes se inclinavam para a frente, assistindo; cada nobre, cada cortesão, até mesmo as damas de copa sob o fardo de sua função. Eles observavam, ávidos como cães. Vivien formou um elo com os dedos indicador e médio, acariciando o Arco Bestial como a um amante. Ela tinha exatamente um truque restante, só mais uma coisa para tentar. Vivien fez uma mesura para seu público, extraindo risos.

Era hora.

A planinauta tocou o chão com o Arco Bestial três vezes, e na terceira vez o som ecoou. Energia turbilhonou e rolou pelo salão de bailes, trepidando pelas paredes, sibilando pela ligadura dos candelabros, em um brilho transparente de luz que se refletiu em cada rosto expectador. Então, como em qualquer outra explosão, o poder veio uivando até o ponto de parturição, e o piso sob os pés de Vivien irradiou de tal maneira que parecia que a realidade estava esfacelando, deixando apenas uma luz branca tão intensa que não havia espaço para o conceito de sombra.

Vivien bateu o Arco Bestial no chão novamente.

O artefato se abriu. Ele se dividiu em cascas e galhos metálicos, florescendo aos poucos, com configurações geométricas em uma liga brilhante e misteriosa. O Arco Bestial se dividiu até a medula, revelando um entalhe de luz tão intensa que fez Vivien lacrimejar. Mas ela viu tudo, sem nem piscar. O monstrossauro merecia ao menos aquela dignidade.

Ela conseguia sentir os resquícios do espírito do monstrossauro, um emaranhado de nervos errantes e uma fúria exausta demais para ser saciada. Cuidadosamente, Vivien enleou o poder do Arco Bestial por seu esqueleto arruinado, atraindo a última fagulha de consciência para ela, com promessas cantaroladas por aquela ligação. O monstrossauro não resistiu. Ele veio a ela como uma torrente, seguindo o caminho para dentro do Arco Bestial com um guincho jubilante. Vivien teve um arrepio quando suportou o momento, desorientada pelo tamanho diminuto de seu próprio físico, e a presença do monstrossauro foi diminuindo até formar uma protuberância no fundo da mente dela. Seu corpo ficou, enfim descansando, agora coberto com a mesma liga estranha que cobria o Arco Bestial.

“Foi tudo muito bom e bem dramático. Realmente, uma apresentação excelente.” A voz do Barão. “Acabou, então?”

Vivien piscou uma vez, atônita. Havia luz pingando das pontas de seus dedos e de sua língua. Para ela, tinha gosto de cal, de uma fúria diferente de tudo o que ela sentira, fúria suficiente para comer o mundo todo. Isto era novidade.

“Sim.”

“Muito bem.” Ele gesticulou, floreado. “Agora, vejamos os resultados.”

“Sim,” disse Vivien novamente, sentindo-se lenta - a palavra parecia melaço entre seus dentes. Ela puxou a corda do Arco Bestial, sentiu o zunido sob seu polegar, e o monstrossauro tão próximo da superfície que ela teve de se controlar muito para mantê-lo imóvel. Sua avidez sangrava pelo contato, transbordando para os ossos dela. O que estava acontecendo? As essências dentro do Arco Bestial ficavam normalmente tão quietas, semidormentes, contentes por estarem a salvo, silenciosas dentro do artefato escuro. Mas o monstrossauro, não.

A planinauta engoliu o impulso de lançar-se contra o Barão, ralhou consigo mesma para se manter firme, e ergueu o Arco Bestial apenas para ouvir o Barão pigarrear.

“Não. Outra pessoa fará as honras.”

Ele fez um sinal para um guarda que podia ter sido um touro transformado em algo mais conveniente. O homem tinha um pescoço tão espesso que não havia diferença entre sua garganta e seu maxilar. Ele fechou a cara para Vivien ao caminhar pesadamente na direção dela, e o campo de força foi erguido para dar-lhe entrada. O Barão gesticulou para as freiras, e suas vozes ressoaram novamente fechando o guarda dentro da área de contenção junto com Vivien.

“Agora, mostre a ele como se faz.”

Vivien passou o Arco Bestial para o guarda de cenho franzido. Robusto como era, o homem demonstrou uma destreza que Vivien não esperava, com dedos rápidos apesar de grossos como linguiças. O Arco Bestial cantou quando ele ergueu a relíquia, e o guarda o colocou na mira como um especialista, com a flecha de Vivien encaixada e pronta. Um espasmo mínimo de digitais carnudas, e o corpo dele explodiu de dentro para fora.

A planinauta olhou plácida para o Barão. “Eu avisei.”

“Não aceitarei isto,” sibilou ele. “Conseguimos invocar o urso. Deve haver um processo. Algo que você não está me contando. Você está fazendo isto tudo intencionalmente? Deve estar.”

“O Arco Bestial é meu. Não obedece a outras mãos.”

“Mentirosa.”

Vivien ergueu o artefato em desafio. “Fique à vontade para tentar.”

O Barão cerrou o punho e Vivien decidiu com prazer mórbido que o olhar dele agora seria o suficiente. Não importa o que acontecesse a seguir, não importa o que viria a acontecer, aquela memória da frustração óbvia do Barão seria uma luz onde ela se prenderia. Ela sorriu. “Eu avisei.”

“Cale-se.”

Vivien deu uma olhadela para o que sobrou da carcaça do guarda. O Arco Bestial arrebentou com ele. Quase que por acidente, Vivien notou movimento. Ela se abaixou.

Uma aranha. Vivien assistiu em silêncio enquanto o aracnídeo saiu cuidadosamente do bolso do guarda, chegando aos poucos para perto da barreira. Era pequenina o suficiente para que a magia ignorasse sua existência, pequena o suficiente para que os vampiros ignorassem sua presença.

Vivien teve uma ideia.

“O problema,” começou a planinauta. “O problema com pessoas como você é como vocês ignoram coisinhas pequenas com frequência, como supõem que as engrenagens dos mundos funcionam sem esforço, apenas com o poder da sua vontade. Vocês supõem que as engrenagens não existem. Vocês nem sabem vê-las.”

“Que tagarelice é essa?” Disse o Barão, ríspido, voltando na direção da barreira de luz que os separava.

“Me conte,” Vivien sentiu os contornos do mundo com seus pensamentos, sentiu a aranha se arrepiar e inchar sob a atenção dela. “Você já se perguntou como deve ser a sensação de ser tão pequenino e insignificante quanto uma aranha?”

Ela não deu oportunidade ao Barão para responder, e o poder dela perpassava o mundo todo, latejando com arabescos de verde se espalhando em torno dela, formando um halo. O Barão olhou rapidamente para cima, arregalando os olhos.

“O que você fez?”

Abarrotada na magia de Vivien, a aranha ficou do tamanho de um pequeno cão, de uma onça, de um urso. Cresça, pensou ela com ferocidade para a aranha, rabiscando um símbolo no ar com seus dedos, em movimentos rápidos e imundos. Alarmado pelo próprio crescimento, o aracnídeo se virou e se jogou contra o rei. As freiras e nobres soltaram gritos com a visão, virando sua atenção para o regente. Em meio ao caos, as freiras afrouxaram a prisão de Vivien.

Foi como ela esperava. Sem perder uma batida de coração, ela encaixou uma nova flecha e liberou o projétil enquanto as paredes cediam. A flecha queimou o ar, evaporou-se em brasas, em ossos e em penas vívidas entalhadas em magia, em um corpo não mais coxo por ferimentos, um corpo perfeito e imaculado, maravilhosamente preparado para agir naquele último e desesperado desejo.

A flecha se enterrou na parede, e o monstrossauro etéreo se soltou dela, rugindo, com os poderes de Vivien lançando-se em torno da forma recém-nascida do réptil. Ele girou sua cabeça, piscando, e nem mesmo o choque de estar vivo foi o suficiente para distrair o monstrossauro de sua intenção. A criatura morrera com fome de vingança. Não iria embora sem satisfazer aquela vontade.

Vivien se jogou no chão para um lado enquanto o dinossauro trovejou na direção do Barão de Vernot, cortesãos aos berros corriam dele, com alguns desamparados já sob suas patas e garras, corpos tão pressionados que poderiam ser dobrados ao meio. Os poucos guardas leais o suficiente para ficar no caminho foram golpeados para o lado, lançados contra as paredes com um movimento da cabeça da criatura.

A forma cintilante do monstrossauro se esticou até o teto, partindo a abóbada como se fosse a casca de uma fruta. Escombros e cinzas caíram como fitas. O edifício rangeu. Estruturas, agora soltas, cederam em pedaços com a gravidade, partindo a alvenaria. Não que alguma dessas coisas fosse dissuadir o monstrossauro, com olhos selvagens.

Apesar das chances, o Barão de Vernot não fugiria. Mesmo depois de abandonado por seus consortes, e com o salão de bailes já em colapso, ele manteve sua posição com dentes à mostra e sabre em riste, sua forma diminuta como um boneco em justaposição contra a enormidade do monstrossauro. Ele turvou-se como sombra, ziguezagueando para cima, e a cauda de cometa de seus movimentos acelerados formavam uma trajetória para cima, pelos escombros que caíam. Vivien viu um clarão de prata quando o Barão golpeou, mas não importa a habilidade, ou o diferencial em poderes oferecidos por treinamento - a natureza tinha favoritos empíricos.

No fim das contas, a vida sempre fora uma competição de poder bruto.

A espada do Barão passou sem causar danos pelo sulco sob o olho direito do lagarto, erodindo até formar um monte de ligas. Antes de conseguir voltar o golpe, o monstrossauro lançou sua cabeça para o ar, jogando o Barão para cima. Vivien viu o olhar de surpresa passar como um dardo pela face do vampiro, óbvio até mesmo de longe. E mais rápido o que o Barão ou qualquer pessoa pudesse antecipar, o monstrossauro fechou o maxilar para frente como se fosse uma cascavel, sobre o torso do vampiro.

Vivien fitou imóvel e desconcertada.

O monstrossauro olhou para ela melancolicamente, tão ridiculamente meditativo, tão humano em sua incerteza que ela quase riu. O Barão encarava seu captor, com um terror animalesco se formando em sua face. E então, com uma serenidade considerável e bastante cerimônia, o monstrossauro mordeu novamente e as duas metades do que fora o Barão de Vernot caíram destrambelhadas e em silêncio ao chão.


A maior parte das invocações de Vivien eram de natureza transiente, e raramente persistiam por muito mais de um minuto; as criaturas se contentavam em dissipar após um galanteio descuidado com o caos. Mas o monstrossauro não queria dissipar. Depois de lidar com o Barão de Vernot, o réptil agora estava sem rumo, mas não permaneceu assim por muito tempo. Ele farejou o ar uma vez antes de escolher uma rota simples pelas portas, para dentro do palácio, desatento com os cortesãos que ainda estavam tangenciando de seu caminho. Vivien o seguiu, ignorada pelos demais.

Sua trajetória os fez passar pelo Bestiário Real, que agora estava repleto de uma fauna agitada, e seus cativos estavam energizados pela proximidade do monstrossauro ou simplesmente empolgados com o fedor de destruição no ar. Vivien não precisou de muito tempo para tomar uma decisão. Quando o monstrossauro dobrou outra esquina, Vivien passou sua magia por uma família de gnus, tocando suas jaulas até que as criaturas crescessem o suficiente e arrebentassem seu confinamento. Ela fez o mesmo em todas as coisas pelas quais ela passou. Malhocéfalos e coatls e ursos de ombros largos, com poder saltando sob todos como relâmpago.

Alguns dos animais se uniram em grupos frenéticos, carnívoros e presas arrancando pedaços uns dos outros, mas a maior parte deles não o fez. Assim como o monstrossauro enfurecido, eles pareciam absorvidos pela ideia de vingança. Seus cuidadores, antes seguros do conhecimento de estarem inoculados das consequências de sua própria crueldade, rapidamente se viram entre a vida e a morte. Gritos se assomaram pelo ar.

E ainda assim, o monstrossauro manteve sua forma, com alguma espécie de energia. Talvez sua fúria? Ou a de Vivien? A planinauta decidiu que talvez não importasse. Ao invés disso, ela contou os minutos entre a forma corpórea e a desintegração. Toda vez que o monstrossauro cintilou para a inexistência, ela lançou uma nova flecha pelo ar. Os corredores se ampliaram para dentro de uma galeria. Aqui, o monstrossauro parou com a cabeça inclinada para um lado. Homens em perucas em camadas e mulheres pintadas com pós perolados, seus corpetes altos e antinaturais, estavam boquiabertos com a visão.

Uma menina magra como trigo, mal atingindo a adulteza por qualquer estimativa, titubeou à frente. Havia uma guia em suas mãos; Vivien seguiu a corda até onde ela estava presa à coleira de um pequeno raptor. Alguém maquiou suas escamas esmeralda, vestiu seu pescoço com uma gola de babados tão grande que estava claro como o dia que a decoração de palhaço impedia seu campo de visão. Vivien franziu o cenho para a criatura. Ela parecia miserável.

Naquele momento, o monstrossauro começou a esvanecer, diminuindo em pontos brilhantes, e um contorno da criatura degradou em uma névoa indistinta. Vivien cerrou o punho, com a congregação ainda em silêncio, sem palavras com o que acabara de acontecer. Atrás dela, ainda havia o rugido do Bestiário Real em motim, e a algazarra de seus habitantes era periodicamente interrompida por gritos aterrorizados.

“Suponho,” Vivien começou. “Que é neste ponto que se começa um discurso dramático.”

O raptor saltitou para a frente, primeiro em uma direção e depois para a outra, em movimentos rápidos parecidos com os de aves. Ele deu um trinado inquisitivo para Vivien.

“Ou ao menos informar o que está acontecendo.”

Os sons foram aumentando.

“Eu não sei muito bem qual o protocolo da situação.” Sem convite, um sorriso se ancorou no rosto dela. “Mas eu continuo com a sensação de que alguma exposição de informação é necessária.”

Ela soltou a mão.

“O que isto tudo significa?” Começou um homem com ar patriarcal e barba aparada, com físico ainda formidável apesar de aparentar estar na meia-idade. Ele pausou dedos longos sobre a empunhadura de seu sabre, com um olhar frio. “Quem é você? E o que está acontecendo no palácio?”

“Uma vez alguém descreveu para mim a morte de um lugar como ‘misericórdia.’ Na época eu não compreendi o que ele quis dizer, ou de onde vinha aquilo. Mas agora... Agora eu compreendo perfeitamente.” Vivien volteou com seus dedos, formando círculos preguiçosos, e a magia começava a se coletar na palma de sua mão, formando raios de poder cintilante. “Enfim. Isto é uma misericórdia. É a última visão que vocês terão de Luneau. Até amanhã, a mata selvagem terá retomado este lugar e vocês não serão nada além de uma memória a ser esquecida.”

Vivien cerrou o punho novamente, e o raptor sibilou confuso, com o corpo tomado por convulsões repentinas. Diferente dos habitantes do Bestiário Real, ele não cresceu de maneira uniforme. Ao invés disso, a criatura foi inchando em surtos, crescendo de acordo com os movimentos da mão de Vivien e os movimentos do poder dela, desenrolando verde e serpentino da silhueta dela. Primeiro as pernas, a cauda, depois sua cabeça, antes de finalmente o torso acompanhar. Durante o processo, sua dona apenas olhava, embasbacada em uma perplexidade sem palavras.

Gigantosaurus
Gigantossauro | Ilustração: Jonathan Kuo

Dentro de segundos, o raptor ficou maior do que sua mestra, abaixando-se para observá-la com um olho ametista e luminoso. Em resposta, ela ficou boquiaberta como um peixe, em silêncio, e um som agudo e trêmulo eventualmente escapava dela. “O- o q- qu-”

Seu antigo bichinho de estimação não compartilhava da sua confusão. Ele se ergueu, chilreando várias notas cristalinas, com sua curiosidade sobre a dona claramente caldeada. E então, sem cerimônia alguma, ele fechou o maxilar em torno da cabeça da vampira, e seus dentes trituraram vértebras.

A decapitação da jovem vampira deslocou algo na multidão. Um pandemônio se formou entre a burguesia em ondas, se espalhando e crescendo até a completa histeria, e todo o fingimento de um comportamento iluminado foi esquecido face a face com a carnificina. Quem tinha ao menos um comando passável de suas faculdades mentais se aproximou de Vivien, sibilando, mas a planinauta apenas observou a todos com minúcia e uma vaga indiferença.

Algo estava se aproximando.

Um segundo antes do estouro irromper pelas portas, Vivien deu um passo para o lado. Seus adversários só tiveram tempo de olhar para cima e notar as feras atropelando como trovões pelos corredores. Enquanto os fugitivos do Bestiário Real transformaram seus antigos torturadores em uma polpa, Vivien se viu sorrindo.


O Palácio Real sacudiu como uma carcaça despedaçada por cães. Foi aos poucos, sem sequência convincente, com a arquitetura lutando para se manter na vertical. Entretanto, a gravidade tem um apetite insaciável. Logo o Palácio Real caiu, lançando plumas de poeira para o ar.

Mas Vivien Reid não tinha terminado de lidar nem com a metade de Luneau.

Tinha mais caos para criar.


O café era indistinguível dos outros em várias maneiras, enfeitando o distrito cultural de Luneau. Ali, museus e matinês chamativas compartilhavam a mesma calçada. A arte tem várias formas - algumas menos palatáveis do que outras - mas Luneau raramente se inclinava a tecer julgamentos. Os restaurantes mantinham negócios rápidos, como resultado desta ideologia generosa. Sempre tinha clientela. Às vezes, havia acadêmicos e especialistas famintos por um lugar para discutir e dissecar o dia. Às vezes, eram indivíduos de mau gosto, lascivos por bebida e simplesmente desesperados por uma mesa. Não importa sua natureza - eles eram inevitavelmente pesados pelo dinheiro e, para o deleite do proprietário deste café em particular, costumavam dar gorjetas excessivamente generosas em frascos de sangue.

O homem em questão estudava seu reflexo no espelho. Ele era alto, esguio, com ombros estreitos demais para dar peso à sua silhueta. Mas não era feio. Pelo menos era isso que ele conseguia inferir ao interagir com sua clientela feminina. O proprietário corrigiu a posição de sua peruca. Não seria ideal estar desarrumado.

A noite era sedutora, alinhada por algo que mal lembrava uma brisa, e o ar estava sentado sobre Luneau como uma toalha molhada mantinha um cadáver aquecido. Não que muitos parecessem se importar. A elite da cidade, especialmente quem era parte da Legião do Crepúsculo, parecia preferir o clima e se refestelava no calor enquanto humanos esmoreciam.

Ele escolheu um caminho lento até onde seus clientes mais recentes estavam. Ambos eram oficiais condecorados, magros, arrumados de maneira impressionante apesar de passar a maior parte do seu tempo em expedições para territórios estrangeiros. O proprietário gostava deles por isso. A maioria dos exploradores eventualmente perdia o truque da higiene, junto com o interesse em se reconciliar com o conceito.

“Seu desjejum,” disse o proprietário.

Eles o receberam com um olhar e sorrisos mornos. O proprietário pousou na mesa um arranjo de mantimentos.

Luneau tremeu sob os pés dele.

Um terremoto? Era possível. Apesar de ser pouco frequentemente atingida por tremores, não era um fenômeno desconhecido e o proprietário viu pouco motivo para se preocupar. Ele precisaria prender sua estante de temperos, garantir que a pequena adega estivesse segura, abrigada em sua alcova. Pequenos detalhes. Tarefas simples. Ficaria tudo bem.”

“Não fique amuado,” disse um dos homens. O proprietário deu passos mais lentos para ouvir a conversa dos outros. A fofoca de caserna era sempre boa.

“Como se você estivesse mais animado do que eu. Você sabe que o Barão de Vernot está estudando o objeto agora mesmo,” disse o companheiro.

O primeiro homem fez um ruído exasperado. “Espero que ele falhe, então. Se ele conseguir decifrar aquele artefato idiota, ficamos sem trabalho.”

“Cuidado com a sua língua,” replicou o amigo. “Você está falando em traição.”

“Não é traição. É verdade. Se Luneau descobrir como usar algo assim, estaremos na sarjeta. Escreva o que eu digo. A realeza não liga para pessoas como nós, condecorados ou não. Se conseguirem fazer seus próprios animais, por que se preocupar em pagar para encontrarmos mais?”

Antes que seu amigo pudesse responder, o tremor sob seus pés - que até ali era constante mas inofensivo - de repente ficou impossível de se ignorar. Ainda mais impossível, ela lembrava o proprietário de algo da sua juventude. Uma vez por ano, como se fosse compensar o mundano, o pequenino povoado de onde ele veio se refestelava em uma tradição inesperada:

Eles mandavam um estouro de raptores pelas ruas.

Como um costume tão bizarro veio a ser criado, e por que alguém acharia necessário mandar adolescentes coletar penas dos lagartos destruidores eram coisas que o proprietário nunca compreendeu. Mas como todo imigrante na cidade, como todo homem e mulher nascidos naquelas colinas, ele carregava consigo a memória de como o mundo tremia e sacudia todo ano, sob os pés do estouro anual.

Isso era pior.

Muito pior.

O café no outro lado da rua sem saída abriu-se como uma perna fraturada no mesmo momento em que corpos de animais inundaram as ruas, atropelando umas às outras em uma enxurrada de peles e garras e gargantas aos uivos. Sob outras circunstâncias, o proprietário talvez tivesse se deleitado com a visão, mas não deu tempo. Não houve palavras para descrever o que ele via. Lêmures se balançavam entre as sacadas, caçados por gaviões. Bovinos de tamanhos variados, felinos com dentes de sabre e outros mais mundanos. O som de porcelana quebrando chamou a atenção do proprietário.

Ele olhou e riu, meio histérico, meio fascinado pela situação. Havia touros na loja de louças, e sua clientela de pele hidratada fugia pelas ruas. E por todas as partes, havia humanos usando as roupas mais sujas, atendentes de bares e açougueiros e marujos descamisados, pulando e gritando jubilosos enquanto corriam entre o caos, mal conscientes do perigo. Diferente de proprietários de lojas eles tratavam tudo como um festival, celebrando de modo tão primevo quanto todas as memórias do dono do café.

Em meio a tudo aquilo, estavam os dinossauros:

Sim, os raptores da juventude do proprietário, crescidos e com penas radiantes. Bandos de egidossauros lentos que mugiam como touros. Espinodorsos e gladiodontes, tentando ficar à frente dos monstrossauros, os tiranos, os carniceiros escuros como a noite. Eles não tinham interesse algum pelas ruas. Eles entalhavam caminhos novos para si, rompendo a cidade toda, derrubando edifícios e os demolindo. Os herbívoros levaram sua profanação de Luneau um passo à frente. Eles paravam para comer os jardins suspensos da cidade, mordiscando flores até as raízes.

Enquanto o distrito cultural de Luneau evacuava seus lares e negócios, o dilúvio de vida selvagem demolia rapidamente tudo em seu caminho, e o proprietário soltou uma gargalhada em delírio e confusão. Ele então percebeu o que era: aquelas criaturas não estavam apenas inesperadamente por todos os lugares, elas também estavam com o triplo do tamanho usual, gigantescas demais para serem plausíveis. Como isto estava acontecendo? Nada disso parecia real.

Outro ruído chamou sua atenção. Ele se virou para ver um par de monstrossauros cambaleando entre os corpos abundantes. Um novo casal de procriação, trazido a Luneau para substituir o anterior. Mas não foi aquilo que chamou a atenção dele. Não mesmo, era a mulher sentada sobre o crânio da fêmea, com a face fixa em uma satisfação sombria.


Vivien decidiu friamente que se Luneau decidisse reconstruir, levaria décadas. Ela se agachou, se equilibrando sobre a cabeça da monstrossaura, e saltou quando passaram por uma sacada. Vivien deu um salto mortal como se não fosse nada, ficando de pé em um movimento fluido. Ela tirou a poeira do vestido. Ela precisaria encontrar couro de verdade, algo que não se prenda na mata e rasgue facilmente. Até os gostos mais humildes de Luneau eram pouco práticos.

Um brontodonte passou pesadamente por onde Vivien estava. Seria o mesmo de sua viagem marítima? Difícil dizer. A passagem pelo oceano parecia ter sido há uma vida inteira. Certamente ela tinha esperança de ser o mesmo brontodonte. Por mais que o perigo carnívoro do Bestiário Real possa apresentar, ele ainda seria uma entidade a ser temida. Especialmente se sua espécie tivesse inclinação ao rancor, guardando longas memórias. Talvez encontrasse um par na mata selvagem de Luneau. Não importa o caso - levaria muito tempo até que os vampiros desta cidade incomodassem o restante do mundo. Agora haveria dinossauros nas selvas deles, mais do que eles conseguiriam lidar.

Vivien se inclinou pela sacada, observando toda a anarquia que ela libertou em Luneau. O Bestiário Real, ou o que ainda restava, começou a descobrir os jardins suspensos da cidade. Ela sorriu, mais contente com a situação do que esperava. Mas a visita a Ixalan fora uma experiência de abrir os olhos.

Quase sem convite, suas mãos foram até o Arco Bestial. Vivien não tinha considerado como era genuinamente simples tirar a relíquia de perto dela, ou o risco iminente de ser sequestrado para o uso de outrem. Algo precisava ser feito. Vivien não poderia tolerar uma reprise. Mas talvez a resposta estivesse com os habitantes do Arco Bestial.

O monstrossauro se fez extremamente útil. Até mais do que as outras aquisições de Vivien. E como não seria? Era maior e mais feroz do que tudo o mais em seu arsenal. Se Vivien continuasse a encontrar presas maiores para caçar, talvez ela tenha uma resposta.

Ela cerrou seus olhos. A membrana que separava os planos de existência era fina aqui, quase tão fina quanto pele. Por essa membrana, Vivien quase podia ver o mundo ao lado. Dragão. A palavra saltou pelo seu cérebro, se acomodando na imagem de seres colossais, antiquíssimos e assustadoramente estranhos, seres com pulmões cheios de fogo e gargalhadas zombeteiras. Nicol Bolas não era o único dragão no Multiverso. Havia mais. Menores, menos astutos, mas ainda assim, dragões. Se ela aprendesse a domar seus poderes, se ela aprendesse como eles funcionavam, talvez ela conseguisse descobrir o segredo da destruição de Nicol Bolas.

Mas primeiro ela precisava de um alvo.

Vivien lembrou-se de conversas distantes sobre dragões de Shiv, com nomes apenas sussurrados em vozes baixas. Por medo, como os anciões Ghitu diziam, que eles aparecessem em seus povoados, atraídos pelo som dos seus nomes.

Mas se um dragão de Shiv mordesse sua isca, não seria pelo bem maior?

Ao longe, Luneau se mobilizava contra a insurreição.

Nada passava pelo crepúsculo, nenhum som além da algazarra distante de homens de armas raivosos, e de animais elefantinos berrando em desafio. Vivien vincou sua sobrancelha antes de gargalhar de coração cheio.

A planinauta endireitou os ombros e inspirou fundo. Ela ergueu uma das mãos, tocando o ar, sentindo a estrutura do universo sob sua pele. E quando ela pressionou, o Multiverso viscoso como mel cedeu à sua pressão, engolindo-a a partir do braço. Vivien deu a Ixalan um último olhar antes de lampejar para dentro do outro plano de existência, e sentir o ar quente e seco de Shiv em sua pele.


Perfil da Planeswalker: Vivien Reid
Perfil do Plano: Ixalan